Quebra de braços
O exame de temas que contrapõem categorias de pessoas - mesmo que seja inspirado em propósitos sérios e construtivos - é sempre perigoso e gera o risco de não produzir o resultado esperado, de reflexão construtiva. Humanos que somos, embora possamos ter capacidade de autocrítica, nem sempre aceitamos bem o que entendemos como crítica vinda de terceiros. Daí para abandonarmos a relevância da discussão conceitual e enveredarmos para a defesa de interesses do grupo - muitas vezes apaixonada e até irracional - vai um passo.
E, quando essas categorias envolvem juízes e advogados, parece que o risco tende a aumentar ainda mais, quiçá pela circunstância de que, estando todos nós de alguma forma insatisfeitos com a solução judicial dos conflitos, tendemos, com relativa facilidade, a encontrar no outro - e não em nós mesmos - a responsabilidade para o inadequado estado de coisas. Não raramente, ouvem-se advogados reclamando de juízes e vice-versa. Entre nós, em suma, vem bem a calhar o dito popular segundo o qual "na casa em que falta pão todos brigam e ninguém tem razão"...
Na história do Direito Processual, a genialidade de Calamandrei foi capaz de contornar os riscos acima mencionados e de nos oferecer uma obra da grandiosidade do "Elogio dos juízes".
Sem a sagacidade nem a elegância do Mestre italiano, corro aqui os riscos acima descritos. Mas, para atenuá-los, adianto que a ocorrência de que aqui se parte serve apenas para ilustrar como uma mesma situação pode, dependendo da perspectiva de quem a examina, servir a discursos completamente antagônicos; e que o paradoxo pode ser o primeiro passo para a busca da coerência. O objetivo aqui, portanto, não é o de explorar confrontos que, embora possam até aflorar da realidade, não são construtivos.
Refiro-me, então, à notícia de recente decisão de primeiro grau, editada pela Justiça Comum paulista, na qual a sentença, em processo de ação coletiva em que se discute determinada controvérsia de consumo, adotou entendimento divergente daquele cristalizado em súmula do Superior Tribunal de Justiça, editada após longo e exaustivo debate, que se travou naquela e em outras Cortes do país. Mas, para que não nos centremos em um caso concreto e em andamento, tomemos o fato apenas como um exemplo. Ele, afinal de contas, servirá apenas para mostrar que o discurso que se segue não é apenas teórico ou até ficcional.
Não se tratando de súmula vinculante, ninguém poderá afirmar tenha uma sentença com aquele conteúdo incorrido em invalidade. Dir-se-á, em abono da decisão, que seu prolator atuou com independência e que formou seu convencimento com a liberdade que é inerente à regra de persuasão racional contida no art. 131 do CPC.
Com efeito, poucas coisas são tão essenciais ao exercício da judicatura quanto a independência do magistrado. Nem mesmo as decisões das Cortes superiores vinculam o magistrado (salvo na hipótese de súmula vinculante ou de controle concentrado de constitucionalidade). O juiz tem o poder de aplicar o direito ao caso concreto, conforme suas peculiaridades. Ademais, ainda que determinada orientação tenha se firmado em certo tribunal, é sempre possível argumentar que a prolação de decisão divergente pode contribuir para a modificação - quiçá evolução - da jurisprudência.
Mas, a questão apresenta outro lado, que não é menos relevante: é difícil estabelecer até que ponto, a pretexto de se garantir a independência de um juiz, corre-se o risco de quebra da unidade de um Poder. Quando o Judiciário emite decisões conflitantes em seu próprio seio, o prejuízo é generalizado. A insegurança daí resultante é indesejável e a instabilidade interna é fator de desprestígio para a Justiça. Mais do que isso: o sistema democraticamente estabelece um órgão encarregado de uniformizar a jurisprudência. Portanto, é preciso considerar até que ponto, em nome da independência de um magistrado, essa competência constitucionalmente estabelecida possa ser contrariada.
Mas a questão posta nestas linhas nem é essa, embora ela seja das mais relevantes. O que aqui é objeto de reflexão é o seguinte: se o sistema admite, em nome da independência, que um magistrado singularmente contrarie a jurisprudência consolidada de uma Corte Superior (cujo papel é exatamente o de uniformizar a interpretação da lei), como pode esse mesmo sistema aceitar que a parte inconformada com uma decisão que se afina com a jurisprudência dominante esteja agindo de forma eticamente reprovável? Por outras palavras: como é possível afirmar que a conduta do magistrado é exercício de independência e a conduta da parte, voltada afinal de contas para o mesmo resultado prático, é exercício abusivo de um direito? Então, como é possível exigir da parte um dever ético de abstenção (não recorrer) que não se exige do próprio magistrado? Por que, afinal de contas, um juiz que decide contra a jurisprudência dominante é tido como independente e, de outro lado, aquele que insiste em levar o tema aos tribunais é tido como litigante ímprobo e, por isso, corre o risco de ser sancionado?
Como foi dito acima, as presentes reflexões não se voltam a exacerbar confrontos, que, insiste-se, não são construtivos.
Mas é lícito esperar do sistema - como tal - que seja coerente. Não há dúvida de que são inconfundíveis as posições jurídicas do juiz e das partes, dentro da relação jurídica processual. O juiz exerce poder e as partes são titulares de direitos, faculdades, ônus e deveres. Mas, é indiscutível que todos os sujeitos daquela relação jurídica estão submetidos ao mesmo substrato ético.
Reflexão dessa ordem é relevante nos dias que correm, em que cada vez mais se preconiza conter o emprego de recursos mediante a aplicação de sanções pecuniárias, fundadas em afirmada litigância de má-fé. Pior do que isso: ao que tudo indica, vai infelizmente ganhando corpo em parte da jurisprudência a tese de que as sanções não são aplicáveis apenas às partes, mas aos advogados - a pretexto de que, afinal de contas, são eles os responsáveis pelas manifestações nos autos.
Assim como não é possível aperfeiçoar o sistema com base na limitação da independência do juiz de primeiro grau, não parece desejável combater o volume de recursos com medidas sancionadoras das partes e de seus advogados. Há de existir instrumentos mais coerentes e democráticos para tanto. Quando menos, é preciso enxergar o sistema com coerência.
Por Flávio Luiz Yarshell
Fonte: Jornal Carta Forense
E, quando essas categorias envolvem juízes e advogados, parece que o risco tende a aumentar ainda mais, quiçá pela circunstância de que, estando todos nós de alguma forma insatisfeitos com a solução judicial dos conflitos, tendemos, com relativa facilidade, a encontrar no outro - e não em nós mesmos - a responsabilidade para o inadequado estado de coisas. Não raramente, ouvem-se advogados reclamando de juízes e vice-versa. Entre nós, em suma, vem bem a calhar o dito popular segundo o qual "na casa em que falta pão todos brigam e ninguém tem razão"...
Na história do Direito Processual, a genialidade de Calamandrei foi capaz de contornar os riscos acima mencionados e de nos oferecer uma obra da grandiosidade do "Elogio dos juízes".
Sem a sagacidade nem a elegância do Mestre italiano, corro aqui os riscos acima descritos. Mas, para atenuá-los, adianto que a ocorrência de que aqui se parte serve apenas para ilustrar como uma mesma situação pode, dependendo da perspectiva de quem a examina, servir a discursos completamente antagônicos; e que o paradoxo pode ser o primeiro passo para a busca da coerência. O objetivo aqui, portanto, não é o de explorar confrontos que, embora possam até aflorar da realidade, não são construtivos.
Refiro-me, então, à notícia de recente decisão de primeiro grau, editada pela Justiça Comum paulista, na qual a sentença, em processo de ação coletiva em que se discute determinada controvérsia de consumo, adotou entendimento divergente daquele cristalizado em súmula do Superior Tribunal de Justiça, editada após longo e exaustivo debate, que se travou naquela e em outras Cortes do país. Mas, para que não nos centremos em um caso concreto e em andamento, tomemos o fato apenas como um exemplo. Ele, afinal de contas, servirá apenas para mostrar que o discurso que se segue não é apenas teórico ou até ficcional.
Não se tratando de súmula vinculante, ninguém poderá afirmar tenha uma sentença com aquele conteúdo incorrido em invalidade. Dir-se-á, em abono da decisão, que seu prolator atuou com independência e que formou seu convencimento com a liberdade que é inerente à regra de persuasão racional contida no art. 131 do CPC.
Com efeito, poucas coisas são tão essenciais ao exercício da judicatura quanto a independência do magistrado. Nem mesmo as decisões das Cortes superiores vinculam o magistrado (salvo na hipótese de súmula vinculante ou de controle concentrado de constitucionalidade). O juiz tem o poder de aplicar o direito ao caso concreto, conforme suas peculiaridades. Ademais, ainda que determinada orientação tenha se firmado em certo tribunal, é sempre possível argumentar que a prolação de decisão divergente pode contribuir para a modificação - quiçá evolução - da jurisprudência.
Mas, a questão apresenta outro lado, que não é menos relevante: é difícil estabelecer até que ponto, a pretexto de se garantir a independência de um juiz, corre-se o risco de quebra da unidade de um Poder. Quando o Judiciário emite decisões conflitantes em seu próprio seio, o prejuízo é generalizado. A insegurança daí resultante é indesejável e a instabilidade interna é fator de desprestígio para a Justiça. Mais do que isso: o sistema democraticamente estabelece um órgão encarregado de uniformizar a jurisprudência. Portanto, é preciso considerar até que ponto, em nome da independência de um magistrado, essa competência constitucionalmente estabelecida possa ser contrariada.
Mas a questão posta nestas linhas nem é essa, embora ela seja das mais relevantes. O que aqui é objeto de reflexão é o seguinte: se o sistema admite, em nome da independência, que um magistrado singularmente contrarie a jurisprudência consolidada de uma Corte Superior (cujo papel é exatamente o de uniformizar a interpretação da lei), como pode esse mesmo sistema aceitar que a parte inconformada com uma decisão que se afina com a jurisprudência dominante esteja agindo de forma eticamente reprovável? Por outras palavras: como é possível afirmar que a conduta do magistrado é exercício de independência e a conduta da parte, voltada afinal de contas para o mesmo resultado prático, é exercício abusivo de um direito? Então, como é possível exigir da parte um dever ético de abstenção (não recorrer) que não se exige do próprio magistrado? Por que, afinal de contas, um juiz que decide contra a jurisprudência dominante é tido como independente e, de outro lado, aquele que insiste em levar o tema aos tribunais é tido como litigante ímprobo e, por isso, corre o risco de ser sancionado?
Como foi dito acima, as presentes reflexões não se voltam a exacerbar confrontos, que, insiste-se, não são construtivos.
Mas é lícito esperar do sistema - como tal - que seja coerente. Não há dúvida de que são inconfundíveis as posições jurídicas do juiz e das partes, dentro da relação jurídica processual. O juiz exerce poder e as partes são titulares de direitos, faculdades, ônus e deveres. Mas, é indiscutível que todos os sujeitos daquela relação jurídica estão submetidos ao mesmo substrato ético.
Reflexão dessa ordem é relevante nos dias que correm, em que cada vez mais se preconiza conter o emprego de recursos mediante a aplicação de sanções pecuniárias, fundadas em afirmada litigância de má-fé. Pior do que isso: ao que tudo indica, vai infelizmente ganhando corpo em parte da jurisprudência a tese de que as sanções não são aplicáveis apenas às partes, mas aos advogados - a pretexto de que, afinal de contas, são eles os responsáveis pelas manifestações nos autos.
Assim como não é possível aperfeiçoar o sistema com base na limitação da independência do juiz de primeiro grau, não parece desejável combater o volume de recursos com medidas sancionadoras das partes e de seus advogados. Há de existir instrumentos mais coerentes e democráticos para tanto. Quando menos, é preciso enxergar o sistema com coerência.
Por Flávio Luiz Yarshell
Fonte: Jornal Carta Forense
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