Marco Aurélio, 20
De todas as profissões, a de juiz guarda singular importância. O poder de decidir sobre o destino, a liberdade, o patrimônio pode levar as pessoas a um certo torpor autoritário. É por isso que alguns juízes brincam de Deus. Costumo dizer que o juiz tem que ter e exercer a autoridade pelo que ele é, pelo que representa, mas com a necessária humildade para não se tornar um déspota.
Tem que saber exercer seu poder sabendo que será respeitado se for justo. E tem que buscar incessantemente fazer justiça, fim último que almeja todo e qualquer operador do Direito. A coragem é outro atributo inerente ao juiz: coragem de ser coerente, de ficar só, de não se curvar. Há que se ter coragem e ousadia para julgar um semelhante, sem, no entanto, ser presunçoso. O poder é solitário e o seu exercício pode ser até mesmo angustiante.
Um juiz tem que saber que, ainda que suas decisões sejam recebidas no meio jurídico de uma maneira controversa, se elas representam a sua convicção íntima e segura, assim deve ser. Quando uma decisão de um juiz anula todo um processo para fazer valer um princípio constitucional que foi escamoteado, muitas vezes se critica tais decisões, em nome ou da celeridade, ou da economia processual. Mas se o juiz que exara a decisão que privilegia o texto constitucional afirma: "é o preço que se paga para se viver em um Estado Democrático de Direito, e é barato", tem-se a certeza de que tal decisão partiu de alguém que é essencialmente um juiz!
A priorização do respeito à Constituição e aos direitos individuais, o apego aos princípios humanistas, o amor à liberdade fazem a diferença na postura de um juiz. Como não lembrar Dom Quixote: "A liberdade Sancho; um dos mais preciosos bens que os céus deram aos homens. Pela liberdade, assim como pela honra, pode e deve-se aventurar a vida".
Um juiz deve ter a certeza íntima que está fazendo a coisa certa, em nome de sua formação humanística e de um olhar garantista do Direito, ainda que muitas vezes esteja errado, posto que humano. Seja em uma comarca do interior, seja no Supremo Tribunal Federal, a essência do homem é o que vale e o juiz deve se doar por completo ao seu oficio, lembrando Pessoa:
"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.
O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, é um juiz assim. Seu fino humor e, às vezes, sua particular ironia, denotam uma inteligência arguta e cativante. Não compartilho da sua amizade ou do seu dia-a-dia, mas acompanho o seu trabalho nestes 20 anos na Corte, pois já lá advogava quando ele foi empossado. E posso afirmar que para os advogados e, principalmente, para os jurisdicionados, é uma garantia vê-lo atuando, julgando com sabedoria, com destemor, com descortino, com coragem e com serenidade que honram o cargo e a tradição do Corte Suprema.
Quando, ás vezes, vejo-o sustentar uma posição contra todos os seus pares, penso: é o preço que se paga para que o direito avance, para que se instalem idéias novas. E é bom que seja assim. Sua independência, cultura jurídica e sua lucidez já fazem parte da história do Supremo. A lucidez é como uma lanterna a mostrar o caminho aos homens; caminho este, que sabemos todos, nunca está trilhado, pois não há caminhos, há caminhar.
Permito-me lembrar um poeta mineiro para ressaltar o difícil e grave ofício de julgar, no poema Sonetilha Existencial:
"O homem lúcido me espantamas
gosto dele na lírica.
A verdade metafísica
modela o verbo e a garganta.
O homem lúcido verifica
que a existência não se estanca
põe a baba ao pé da planta
eis que a planta frutifica.
O homem lúcido como quer,
seja lá onde estiver
ele está, sem aquarela.
Sabe que a vida é viscosa
sabe que entre a náusea e a rosa
foi que a ostra faz a pérola".
É bom saber, parafraseando o moleiro de Sans-soussi, que há juiz em Brasília!
Por Antônio Carlos de Almeida Castro
Fonte: Conjur
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