quarta-feira, 30 de março de 2011

I Seminário Internacional de Direito e Novas Tecnologias

Vale a pena
A Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPGP) e o Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) promovem, de 6 a 8 de abril de 2011, o I Seminário Internacional de Direito e Novas Tecnologias. O evento será realizado no auditório da Justiça Federal, em Campina Grande, e faz parte das atividades do Grupo de Pesquisa em Direito e Novas Tecnologias, do Centro de Ciências Jurídicas da UEPB.

O Grupo de Pesquisa em Direito e Novas Tecnologias dedica-se ao estudo e à investigação dos novos temas e das novas questões que conectam o Direito e a Tecnologia, a exemplo da proteção do consumidor na Internet, crimes praticados em meios eletrônicos, processos e leilões virtuais, direitos de personalidade, como privacidade, honra e imagem em meios digitais, monitoramento eletrônico de presos e atos processuais por videoconferência, nota fiscal eletrônica e tributação de produtos na Internet.

O evento pretende incentivar as atividades do grupo, contribuir para consolidar a sua importância dentro do centro e da instituição, desenvolver e aprofundar o debate sobre a temática objeto da atividade de pesquisa, além de estimular a troca de experiências e o contato da equipe com idéias, argumentos e temas cuja discussão encontra-se em estado mais avançado em outras instituições e países.

Temas relevantes estarão em debate durante o evento, como o Direito Fundamental ao Desenvolvimento Tecnológico, na exposição do Prof. Dr. Fabiano André de Souza Mendonça Doutor em Direito pela UFPE, Pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Procurador Federal e Professor da UFRN.

O Professor Ugo Pagallo, Ph.D em Filosofia do Direito pela Universidade de Pádua, e Professor Titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Turim profere conferência sobre O Futuro da Privacidade e os Desafios da Tecnologia. O Professor Ugo Pagallo ministrará, ainda, aos alunos e pesquisadores integrantes do Grupo de Pesquisa, o mini-curso Direito e Tecnologia: sobre a proteção de dados pessoais.

Debatendo Direito Tributário e Novas Tecnologias, como a Nota Fiscal Eletrônica e a Tributação de Produtos na Internet, estarão o Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa, Doutor em Direito Público pela Universidade Autônoma de Madrid, Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Coordenador do Curso de Direito da Asces e o Prof. Dr. Adilson Rodrigues Pires, Doutor em Direito, Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Para discutir o tema Proteção de Dados, vem a Campina Grande o Prof. Dr. Guillermo Orozco Pardo, Catedrático de Direito Civil, Diretor do Departamento de Direito Civil e Diretor do Curso de Máster em Direito e Defesa do Consumidor da Universidade de Granada, na Espanha (UGR).

Estarão ainda, entre os conferencistas, painelistas e debatedores do evento, os Professores da UEPB Dr. Félix Araújo Neto, líder do Grupo de Pesquisa, Dr. Ricardo Vital de Almeida, Dra. Rosimeire Ventura, Dra. Paulla Christianne da Costa Newton, Ms. Antônio Silveira Neto, Ms. Bruno Azevedo, Ms. Valfredo de Andrade Aguiar Filho, e Cláudio Lucena, pesquisadores ligados ao Grupo, os Professores e Delegados de Polícia Civil Herta de França Costa e Francisco Iasley Almeida, o Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor (MPPB) e Professor do UNIPÊ, Francisco Glauberto Bezerra, os Juízes Federais e Professores Gustavo Gadelha de Paiva e Francisco Eduardo Guimarães Farias, o Professor Marconi Pereira de Araújo, a Advogada e Professora Dra. Ludmila Albuquerque Douettes Araújo, o Advogado e Professor Dr. Breno Wanderley Cezar Segundo e a Advogada e Professora Dra. Sabrinna de Sousa Correia.

O evento será aberto pela Professora Dra. Marcionila Fernandes, Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba e pelo Prof. Ms. Ailton Elisiário, Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). As inscrições custam R$ 20,00 (vinte reais) para estudantes, R$ 40,00 (quarenta reais) para profissionais, e serão realizadas pelos alunos da turma do 4º ano A (manhã) da UEPB. O valor será revertido para o tratamento de saúde de José Eduardo Lopes, filho da servidora Vanuza Lopes Vieira, lotada na Secretaria da Coordenação Institucional de Projetos Especiais (CIPE), da Universidade Estadual da Paraíba, que sofreu um grave acidente, em função do qual teve que passar por uma onerosa cirurgia. É a forma do Grupo se solidarizar com a servidora e contribuir na campanha para arrecadar recursos que ajudem nas despesas necessárias para a reabilitação de seu filho.

O evento será reconhecido para efeito de atividade complementar, e terá carga horária reconhecida pela UEPB, de 20 horas.

Fonte: A Barriguda

terça-feira, 29 de março de 2011

Constituição sintética dos EUA permite embates

Direito comparado
O direito constitucional norte-americano ocupa-se com o controle de constitucionalidade (judicial review), com interpretação constitucional, com a relação entre governo central e estados ( federalismo vertical) e com direitos individuais, a exemplo da chamada discriminação reversa (reverse discrimination), decorrente dos modelos de ações afirmativas (affirmative action). Com base em perspectiva que nos diz que direito constitucional é estudo das decisões da Suprema Corte[1], os temas acimas elencados encontram-se nos chamados watershed cases[2], a propósito das discussões em Marbury vs. Madison, Roe vs. Wade, McCullogh vs. Maryland, Plessy vs. Ferguson, Brown vs. Board of Education, Bakke vs. University of California. A força do precedente[3] formatará o entendimento constitucional. A Suprema Corte ditará os cânones do American way of life[4]. Direito e política assumem influências mútuas[5] sem constrangimentos epistemológicos.

O controle de constitucionalidade (judicial review) é exemplo da criatividade constitucional norte-americana. Trata-se do poder que o judiciário tem de rever as ações dos outros corpos governamentais, constatando (ou não) compatibilidade constitucional[6]. Radica concretamente no caso Marbury vs. Madison[7], julgado em 1803. Não há previsão constitucional quanto ao exercício do controle de constitucionalidade[8]; a atividade não fora originariamente outorgada à Suprema Corte norte-americana[9]. Não se cogitou do controle de constitucionalidade como inerente ao poder judiciário[10].

Já se escreveu que o controle de constitucionalidade teria sido ato de usurpação de poder por parte da Suprema Corte[11]. Já se afirmou que o judicial review afronta a clássica tripartição dos poderes, potencializando a oligarquia da toga[12]. Há quem acredite que o controle de constitucionalidade presta-se tão somente a legitimar variáveis políticas[13].

Em 1801, em fim de mandato presidencial, John Adams apontou juízes vinculados a seu partido, para postos vagos no judiciário federal norte-americano[14]. Entre eles, William Marbury, que ocuparia um juizado de paz na capital federal, no distrito de Columbia[15]. Ocorre que a investidura do novo magistrado não se deu a tempo. Thomas Jefferson[16] (inimigo político de Adams ) tomou posse como presidente e recusou-se a aceitar a nomeação dos juízes indicados pelo desafeto. Sentindo-se prejudicado e acreditando-se no direito potestativo de exercer a magistratura para a qual fora legalmente indicado, William Marbury protocolou pedido junto a Suprema Corte norte-americana. Requereu que o judiciário ordenasse que Thomas Jefferson cumprisse a ordem legítima e acabada de John Adams. Processado o requerimento, citou-se James Madison, secretário de estado, para que apresentasse defesa em nome do governo.

Do nome das partes a identificação do caso: Marbury vs. Madison. James Madison não contestou a ação. O executivo simplesmente não tomou conhecimento de que havia matéria pendente no judiciário. O presidente da Suprema Corte (chief justice) John Marshall (que fora secretário de estado de John Adams) viu-se em situação difícil. Se ordenasse que Jefferson empossasse Marbury, não teria como implementar o comando; a Suprema Corte seria desmoralizada. Se desse razão a Jefferson, sem que ele sequer tivesse se defendido, pareceria temeroso, fraco; a Suprema Corte sairia da contenda desmoralizada também. Porém Marshall, o grande chief justice[17], notabilizou-se como mestre em tergirversar em momento de perigo[18]. Marshall redigiu sua decisão (opinion) confirmando que Marbury estava correto, que estava intitulado a tomar posse e a entrar em exercício como juiz de paz em Columbia.

Aproveitou para criticar Jefferson e a política do partido que estava no poder. Porém, observou que o artigo de lei que Marbury utilizara para instruir seu pedido ( com base num ato judiciário de 1799 ) era inconstitucional, nulo (void)[19]. Segundo Marshall a Suprema Corte não tinha jurisdição originária para apreciar o pedido como formulado por Marbury[20]. Embora substancialmente correto, Marbury teria buscado remédio jurisdicional com base em regra inconstitucional. Marshall não enfrentou Jefferson, não deixou de dar razão a Marbury, salvou a Suprema Corte do descrédito e estabeleceu precedente que dá início ao controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América do Norte. Jefferson sentiu-se vitorioso e não criticou a decisão, que passou a valer desde então.

O judicial review ganhou mais espaço no constitucionalismo norte-americano a partir de 1865 com o término da Guerra Civil[21], em decorrência das questões que emergiram do sangrento conflito. Marbury vs. Madison encetara uma decisão seminal[22], que qualificou a Suprema Corte como efetiva guardiã da legalidade, detentora do poder de dizer o que é lei[23]. A prerrogativa foi ao longo do tempo apropriada por todo o judiciário, embora se reservando a última palavra à corte suprema .

O controle de constitucionalidade de leis e de atos governamentais[24] nos Estados Unidos é difuso, todo juiz pode exercê-lo[25]. Marshall é qualificado como um juiz ativista (activist)[26], impondo prudência pessoal na solução de problemas a ele encaminhados. Essa perspectiva conduz-nos a outro tema, sutilmente implícito e decorrente no controle de constitucionalidade, a saber, os contornos da interpretação constitucional nos Estados Unidos da América do Norte.

Lê-se a constituição norte-americana de forma pragmática[27]. Percebe-se que impressões mais conservadoras[28] decorrem de uma hermenêutica textual[29]. Observa-se que decisões mais liberais emergem de exegese mais funcional, estrutural. Falou-se também de uma interpretação econômica, tese de Charles A. Beard, identificada com uma historiografia realista[30]. A constituição refletiria a ideologia, a classe social e os preconceitos dos framers[31], proprietários de terras e de escravos, intransigentes defensores do liberalismo clássico[32]. De qualquer modo, a interpretação da constituição faz-se em meio a problemas concretos, cujo desate promove resultados políticos, não obstante reflexões em torno da relação entre a redação original da constituição e a soberania dos corpos políticos destinatários da norma maior[33]. E o conflito da Suprema Corte com a primeira administração de Franklyn Delano Roosevelt é disso prova mais eloquente[34].

O plano interpretativo do direito constitucional norte-americano desdobra-se nos debates entre os juízes da Suprema Corte. Reuniões são precedidas por simbólico aperto de mão (the symbolic handshake) na imagem de Phillip J. Cooper[35], que nos lembra o juiz Melville Fuller, para quem ( ainda em 1880 ) diferenças de opinião não devem macular a harmonia geral entre os magistrados[36]. Há intensa comunicação e barganha de votos entre os juízes da Suprema Corte norte-americana[37]. As decisões refletem opinião colegiada[38], não obstante o vedetismo dos grandes nomes do judiciário daquele país, como Oliver Wendell Holmes Jr., Felix Frankfurter, Louis Brandeis, Benjamin Cardozo, entre tantos outros. Sentido histórico informa mecanismos de interpretação.


O texto constitucional passa de dois séculos e expressões como liberty, due process, entre outras, suscitam conotações sociológicas e denotações políticas que se alteram com o tempo e com a realidade fática do país[39]. Chama-se o mecanismo de atualização da linguagem constitucional (updating the constitution)[40]. Tudo se faz sob manto ideológico que força a crença de que a lei é a suprema vontade do povo, de modo que seus intérpretes revelariam a alma do país[41]. Alexis de Tocqueville, no ceticismo típico da aristocracia francesa que representava, fora mais direto e percebera uma certa onipotência da maioria[42].

Flexibilidade interpretativa seria a referência exegética recorrente, por causa da eterna reserva de sentido que a constituição perfila, dado sua inegável característica sintética. Destacam-se dois grupos hermenêuticos cujos contornos são muito bem distintos. Os ativistas (political activists) ampliam a linguagem original para contemplar direitos e valores que se revelaram e que se alteraram no tempo[43], principalmente em âmbito de direitos coletivos.

Nesse caso, a chamada Corte de Warren, de 1953 a 1969 é o mais perfeito paradigma[44], promovendo cânones de integração racial e de igualdade civil[45]. Os constituintes de 1787, os framers, teriam os olhos no futuro[46]; o intérprete da constituição deveria revelar esse horizonte. Isso explica a volatibilidade que a leitura da constituição enceta. Difícil encontrarmos modelos hermenêuticos neutros[47]; a neutralidade é mera aparência de posição adrede tomada e carente de justificação.

Os ativistas são geralmente relacionados com o pensamento do partido democrata. Os juízes construtivistas teriam sido indicados por presidentes daquela agremiação. Exemplificando[48], o presidente Woodrow Wilson nomeou Louis Brandeis. Franklyn Roosevelt indicou Hugo Black, William Douglas e Felix Frankfurter. John F. Kennedy apontou Arthur Goldberg. Porém essa observação não é regra. O mais liberal e ativista de todos, Earl Warren, fora indicado pelo presidente Dwight David Eisenhower, do partido republicano. Eisenhower, ou Ike, considerava a nomeação de Warren como o mais estúpido erro que cometera[49].

No outro lado encontram-se os textualistas, originalistas, adeptos de interpretação literal da constituição (strict interpretativists)[50]. Essa a tendência contemporânea na Suprema Corte[51], dada maioria de juízes indicados por presidentes do partido republicano. Willliam Rehnquist, atual presidente daquela casa, fora apontado pelo presidente Richard Nixon[52]. Fala-se de um ativismo judicial à direita[53], metáfora que qualifica o conservadorismo de uma Suprema Corte majoritariamente republicana, e os episódios da eleição de George W. Bush em face de Al Gore ilustram e confirmam essa posição[54].

Diminuem-se direitos de presos[55], menoscabam-se liberdades e expectativas de homossexuais[56], mitigam-se posições ambientalistas[57], se aceita a hipertrofia do executivo[58], acredita-se que a jurisprudência referente ao aborto será em breve alterada (overruled)[59]. Triunfa um conservadorismo cujo referencial centra-se nas posições de Scalia[60], que se diz preso no texto e sentido originais da constituição.

A Suprema Corte não se perde em discussões teóricas. Só aprecia casos concretos, reais, controversos[61], exercendo absoluta discricionariedade ao escolher os processos em que pretende opiniar, depois de provocada, por meio do writ of certiorari[62] A hermenêutica constitucional presta-se a acudir a vida real. Para tal, pontos a serem esclarecidos carecem de implementar três exigências. Devem subsumir prejuízo concreto (standing) causado pela ré. Entre outros, é por isso que problemas provocados por receios abstratos obstruem o livre acesso à Suprema Corte de temas ambientais[63], quando a comprovação de danos concretos, reais, efetivos, é muito difícil. O dano não pode ser percebido em tese, deve ser real, o que qualifica o princípio da ripeness[64], da maturidade do fato. A matéria não pode perder o objeto ao longo da discussão, o que indica o princípio da mootness[65], que sugere idéia de ficção . A discussão é fictícia (moot) quando ultrapassada pelo tempo, esse devorador de coisas, quando se dizem esgotados os limites cliométricos do processo (time frame)[66].

O caso Roe vs. Wade[67], julgado em 1973, cuja decisão deferiu pedido referente a possibilidade de prática de aborto por decisão da mãe[68] ilustra os contornos inversos do princípio da mootness. Trata-se de uma exceção a tal conceito. Um caso dessa natureza não pode ser julgado em menos de nove meses, tempo normal de uma gestação. Os advogados do estado do Texas, que defendiam a constitucionalidade de lei local que proibia o aborto, invocaram o princípio da mootness. Como a autora da ação não estava mais grávida (a criança nascera ), não havia matéria concreta, real , fática, a ser apreciada pela corte suprema[69]. Ponderou-se que a decisão era referente a específica lei do Texas, e que os efeitos da decisão seriam futuros.

Não se tratava, evidentemente, do clássico caso do aluno que tem matrícula indeferida em faculdade, que obtém ordem judicial para estudar na aludida escola, e cuja decisão do feito dá-se no momento da colação de grau[70]. Nesse último exemplo não há ( em tese ) o que se decidir, dado o implemento de condição, que não poderia ser contrariada por decisão do judiciário.

Mas vamos ao caso Roe vs. Wade. Norma McCorvey, de pseudônimo de Jane Roe, tinha vinte e um anos, era divorciada e cuidava de uma filha de cinco anos. Vivia com dificuldades financeiras, estava desempregada e engravidou do namorado. Preocupada com a situação nova, procurou abortar, no que se viu proibida pelas leis do Texas, onde vivia. Essas leis datavam de 1859. O aborto era ilegal naquele estado, exceto quando necessário para salvar a vida da mãe[71]. Duas advogadas muito jovens, Linda Coffee e Sarah Weddington, interessaram-se pelo caso e decidiram levá-lo às últimas consequências[72].

Mesmo sabendo que a matéria não seria decidida antes do nascimento do bebê, Morma McCorvey concordou em ajuizar a ação, que seria usada como um teste, com o objetivo de alterar tendência jurisprudencial. Atacou-se a constitucionalidade da lei anti-aborto do Texas, porque a norma violentava cláusulas da emendas nove e quatorze à constituição norte-americana[73].

Argumentou-se em prol da defesa do aborto que direitos não especificamente listados na constituição são retidos pelo povo (retained by the people). Entre eles, o direito à privacidade (right to privacy)[74]. Esse direito à privacidade protegeria o direito da mulher decidir pela continuidade da gravidez, circunstância natural inserida na sua esfera mais íntima de escolha[75]. O acórdão foi proferido em 22 de janeiro de 1973. Criava-se uma fórmula a ser a partir de então seguida. Até o terceiro mês da gravidez a decisão quanto ao aborto é da mulher com apoio de seu médico.


Em relação ao segundo trimestre da gravidez, os estados podem produzir normas, com o objetivo de assegurar-se a saúde da mulher, regulamentando-se o procedimento de aborto. Quando ao último trimestre, leis estaduais poderão autorizar aborto quando necessário para a salvaguarda da saúde da mãe[76]. A discussão desafiou o anunciado princípio do mootness. Alterou substancialmente os contornos do direito de família[77]. Considera-se Roe vs. Wade o mais controverso caso apreciado pela Suprema Corte[78], provocando a abertura de uma caixa de Pândora na observação de Peter Irons[79], historiador do constitucionalismo norte-americano.


Dada a maioria republicana que controla contemporaneamente o poder nos Estados Unidos, observa-se uma certa guinada à direita, que resulta na limitação concreta do direito ao abordo, como definido na célebre decisão do caso Roe vs. Wade, prolatada em 1973. As legislaturas estaduais podem confeccionar regras referentes à utilização e destino de recurso públicos em matéria de saúde pública. Observa-se que as legislaturas estaduais têm proibido o uso de tais valores na cobertura de práticas abortivas. Essa atitude limita concretamente o alcance de Roe vs. Wade, indicando que a autorização jurisprudencial para a prática do aborto tem alcance limitado, na medida exata da intervenção normativa local.


Um terceiro tema de direito constitucional norte-americano vincula-se a relação entre governo central e estados, o chamado federalismo vertical[80]. Essa relação é historicamente o resultado de conflitos políticos[81], de compromissos e de consenso[82]. O pacto federalista limita o poder entre as unidades da federação[83] mesmo quando o governo central regula relações entre estados, a exemplo do comércio interestadual[84]. Três cláusulas orientam o pacto federativo norte-americano, a saber : a) os estados foram preservados como fontes de poder, com autoridade e natureza de órgãos da administração, b) aos estados foram reservados importantes poderes quanto à composição do governo federal e, c) os poderes governamentais foram distruibuídos entre o governo central e os governos estaduais[85].

O federalismo norte-americano despreza a idéia de município. O federalismo concebe imunidade tributária recíproca no modelo dos Estados Unidos[86], como resultado de interpretação constitucional extensiva. No caso McCulloch vs. Maryland[87], julgou-se[88] inconstitucional tributo que o estado de Maryland lançara em face de banco federal[89], com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), que outorga ao governo federal mecanismos e meios para a consecução de seus fins[90] .

O movimento para desegragação racial nos Estados Unidos, a exemplo da integração nas escolas públicas, fora o grande teste para a relação entre estados e poder central. Com o término da Guerra Civil (em 1865 ) formatou-se um modelo legislativo segregacionista no sul dos Estados Unidos, chamado de Jim Crow[91]. As leis de segregação racial chamam-se de Jim Crow, nome de personagem popular de circos, geralmente um branco que pintava a face de preto, para ridicularizar os afro-americanos.

Em 1896 no caso Plessy vs. Fergusson[92] consolidou-se a segregação racial mediante o triunfo da doutrina do iguais, porém separados ( separated but equal )[93], que prevê modelo de apartheid, no qual deve-se garantir igualdade de tratamento, porém em estabelecimentos e locais diferentes. A cláusula jamais se implementou faticamente, dadas as notórias condições inferiores impostas aos negros, em restaurantes, hotéis, escolas, banheiros públicos.

Identifico agora o caso Plessy vs. Fergusson. Em sete de junho de 1892 Homer Plessy sentou-se em setor reservado para brancos em trem do estado da Lousianna. Plessy era “um oitavo negro”; sua ascendência em relação a negros era pequena. Porém, as leis do estado da Lousianna o consideravam como negro[94]. Instado pelo supervisor do trem a dirigir-se ao setor reservado às pessoas de cor, Plessy recusou-se a cumprir a ordem. Foi preso, julgado e condenado em todas as instâncias locais. Plessy apelou para a Suprema Corte requerendo providências contra Ferguson, juiz da Suprema Corte da Louisianna. A Suprema Corte em Washington manteve as decisões inferiores, valendo-se da seguinte linguagem :

Uma lei que meramente implique distinções legais entre as raças branca e negra, uma distinção que é baseada na cor dessas raças, e que deve existir tanto quanto homens brancos são distintos de outros em razão de cor, não tem a tendência de destruir a igualdade jurídica entre essas raças[95].

A doutrina do separated but equal será derrubada pelo movimento pelos direitos civís, que ganhou corpo nas décadas de cinquenta[96] e de sessenta[97]. A estratégia consistia em se denunciar a desigualdade[98], em momento em que a Suprema Corte mostrava-se tendente a consagrar igualdade real[99], fulminando a segregação[100], em ambiente propício, anunciador de uma década agitada[101].

O caso Brown vs. Board of Education[102], julgado em 1954, propiciará novos parâmetros de relação entre governo central e estados. Esses últimos deverão cumprir ordens daquele, que viam como nefasta interferência em negócios internos. Os fatos foram particularmente difíceis no estado do Alabama. O governador George Wallace opôs-se a medidas de desegregação nas escolas[103], no que foi contestado pela administração Kennedy que federalizou a guarda estadual, deixando-o sem muitas opções de resistência.

Alguns pais de alunos de escolas públicas da cidade de Topeka, estado do Kansas, liderados por Oliver Brown, insurgiram-se com o fato de que crianças negras eram impedidas de estudar nas melhores escolas públicas, que eram reservadas aos brancos[104]. Por força da doutrina do separated but equal, crianças negras deveriam estudar em escolas muito distantes de suas casas, frequentavam instalações escolares de qualidade inferior e eram educadas por professores que recebiam salários mais baixos.

Com apoio da NAACP- National Association for the Advancement of Colored People[105], a questão foi levada a Suprema Corte que em histórica decisão determinou o fim da segregação racial nas escolas. O governo federal encontrou inúmeras dificuldades em implementar o acórdão, dada resistência dos estados do sul, em confronto direto repleto de lances de heroismo, de violência, de mártires[106]. O famoso músico de jazz, Louis Armstrong, antes das medidas de fim de segregação, estava proibido de dormir nos hotéis em que tocava[107]. O fim da segregação engendrou uma segunda guerra civil entre sul e norte, focalizando o fim da resistência dos estados mais reacionários, dimensionando o federalismo vertical em bases mais contemporâneas.

Proteção de direitos individuais, mais outra característica do direito constitucional norte-americano de nossos dias, explicita individualismo que plasma a sociedade dos Estados Unidos da América. A constituição assegura direitos individuais[108] contra atos do governo, federal e estadual, concepção que identifica a doutrina do state action[109]. Entidades privadas no exercício de funções prioritariamente públicas (como educação e saúde) podem ser equipoladas à condição de pessoas jurídicas de direito público[110]. Direitos individuais são defendidos com base nas emendas cinco e quatorze à constituição norte-americana[111], e decorrente autorização dada ao congresso para implemento da cláusula da equal protection of the laws[112]. Exemplo de aplicação da cláusula deu-se em 1886 em São Francisco, Califórnia, quando do caso Yick vs. Hopkins[113]. A cidade de São Francisco dificultava outorga de autorização para que chineses operassem máquinas de lavar roupa (laundries), indiretamente vedando aos asiáticos a prática de lucrativo comércio. Como não podia prejudicar os chineses com critérios baseados em raça, a prefeitura daquela cidade da costa oeste norte-americana começou a proibir os laundries em estabelecimentos de madeira. Ocorre que todas as lavanderias chinesas eram operadas em barracões que não eram de alvenaria.

A questão chegou à Suprema Corte que invalidou a norma que indiretamente excluía chineses do mercado de lavanderias, dada a notória discriminação contida na lei de São Francisco. Hipótese semelhante deu-se quando no sul dos Estados Unidos exigiu-se que eleitores fossem alfabetizados. A norma excluía descendentes de escravos do processo eleitoral, dada o notório baixo índice de escolaridade entre aquelas pessoas[114].

Contemporaneamente direitos individuais são debatidos em âmbito das chamadas ações afirmativas (affirmative action). A expressão supostamente surgira com o ex-presidente John Kennedy em ordem executiva de 1961, proibindo discriminação no regime de contratação de pessoal de manutenção[115]. A locução também foi utilizada pelo ex-presidente Lyndon Johnson[116] em ordem executiva de 1965. Tenta-se eliminar resquícios do passado, fazendo-se historicamente justiça devida às minorias, mediante a reserva de vagas em escolas e empregos para membros dessas comunidades e grupos étnicos.

Críticos das ações afirmativas consideram tais procedimentos como discriminações reversas (reverse discrimination). O caso Bakke vs. University of California[117], julgado em 1978, indica os precedentes. Allan Bakke, branco, requereu vaga em faculdade de medicina em um dos campi da Universidade da Califórnia. Embora detentor de boas notas (good score), Bakke foi preterido porque a aludida universidade reservava dezesseis por cento de suas vagas para grupos minoritários[118]. Bakke ajuizou ação contra a universidade, alegando que o programa de proteção de minorias o discriminava[119]. A Suprema Corte decidiu que o modelo de ação afirmativa da Universidade da Califórnia era inconstitucional, usando-se inclusive a expressão reverse discrimination.

Porém a decisão não foi unânime e em voto vencido (dissent) o juiz Powell observara que em não havendo prejuízo para o interessado, as políticas afirmativas eram perfeitas. Bakke ganhou a ação e obteve a vaga na faculdade de medicina. Talvez pela primeira vez norma atinente a direitos civís (civil rights) fora utilizada na proteção de brancos. E com base no voto vencido do juiz Powell muitas escolas mantém políticas de ações afirmativas.

A Suprema Corte decidiu em meados de 2003 caso de affirmative action que envolve a Universidade de Michigan[120]. Voto importante, em favor de tais políticas poderá vem da juíza Sandra O’Connor. É que ela fora apontada para a corte suprema por Ronald Reagan, que cumpria promessa de nomear a primeira mulher para o importante cargo[121]. Sua nomeação é evidente medida de affirmative action, em que pese suas inegáveis qualidades. Ao votar contra tais modelos a citada juíza estaria votando contra sua própria indicação, no entender de setores da imprensa norte-americana[122]. Porém a retórica da indecisão marcou a recente decisão. O acórdão foi liderado pela juíza Sandra Day O’Connor que capitaneiou apertada maioria de 5 a 4, como previsto pela imprensa nortee-americana. Decidiu-se que a prática da Universidade de Michigan no sentido de admitir minorias não violou a XIV emenda da constituição norte-americana e que portanto não houve discriminação racial ao reverso, como pretende a ala mais conservadora. Porém a Suprema Corte determinou que o uso de cotas para admissão de minorias é inconstitucional e que práticas neutras devem ser adotadas o mais rápido possível.

Esses são em síntese, e como visto, os principais temas que informam o direito constitucional norte-americano contemporâneo: judicial review, interpretação constitucional, federalismo vertical e affirmative action. A nação acompanha essas discussões com curiosidade superlativa, aferindo movimentação que atesta a vitalidade da constituição dos Estados Unidos. Refratários a abstrações teóricas de duvidosa aplicabilidade na vida real e negocial, os norte-americanos formatam constitucionalismo pragmático, volátil, modulando uma constituição sintética na arena marcada pela liça e pela luta, típica de uma civilização pujante, destemida, individualista, tradicionalmente dada a embates jurídicos e a artimanhas políticas.


Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Fonte: ConJur

quinta-feira, 24 de março de 2011

90% dos processos no STF vêm do setor público

Principal freguês
Texto publicado no jornal O Globo nessa quarta-feira (23/3)]

Mais um exemplo do gigantismo do Estado brasileiro está revelado na pesquisa "O Supremo em números", realizada pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV), coordenada por Pablo Cerdeira, Diego Werneck e Joaquim Falcão: o Executivo é o maior usuário do Supremo, tanto como autor quanto como réu. Temos, portanto, uma Suprema Corte envolvida em questões do Estado, pois o seu maior usuário é o setor público, que representa a origem de 90% de todos os processos.

O Poder Executivo Federal, com 68%, é o maior usuário. Além disso, dos 12 maiores litigantes do Supremo, nada menos que 10 são estatais, à frente a Caixa Econômica, com 16%, e a União, com 14% dos processos.

Um dado em especial chama a atenção e demonstra, segundo Falcão, diretor da Escola de Direito da FGV do Rio, a grave deformação existente no sistema recursal no Brasil, responsável pela lentidão da Justiça e sobrecarga sobretudo do Supremo: entre os tribunais de origem dos processos, os Juizados Especiais aparecem com 5% dos casos que vão parar no Supremo, mais de 57 mil casos. Proporcionalmente é pouco, mas é o símbolo da deturpação absoluta de sua função, exemplo do que Joaquim Falcão chama de "cultura da processualização". Um tribunal criado para agilizar as decisões acaba entrando no mesmo sistema protelatório que marca nosso sistema judicial.

Para superar esse problema o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, está propondo que as decisões dos tribunais locais, estaduais ou federais, sejam não mais execuções provisórias, mas definitivas. Ele alega que 90% dos processos que chegam ao Supremo já tiveram, pelo menos, duas decisões em instâncias inferiores e estima em mais de 30% o ganho de tempo dos processos.


O vice-presidente Michel Temer, que é advogado, colocou algumas ponderações no debate ocorrido na FGV do Rio, a respeito do risco de um tribunal estadual tomar uma decisão, que será imediatamente executada enquanto os recursos continuam. Se a execução acaba e o réu ganha o recurso da última instância, como fazer? Pagar uma multa, uma indenização? O problema maior seria se for uma questão penal, se o réu já foi condenado e cumpriu ou cumpre pena.

O presidente do Supremo rebate lembrando que mais de 80% dos recursos são recusados no Supremo. O risco de uma eventual injustiça seria recompensado com a melhoria do sistema, o que evitaria protelações e mais injustiças que já ocorrem em decorrência. Joaquim Falcão diz que se o Supremo não criar diques, qualquer processo "só para na mesa do Cezar Peluso". Ele, aliás, comentou que houve dia em que teve que dar 900 despachos negativos porque as alegações de inconstitucionalidade "eram absurdas". Falcão diz que uma das paralisias do sistema judiciário é a excessiva processualização. E exemplifica com a questão da Ficha Limpa, que se perdeu em questões processuais, e o que o povo queria saber é se valeria ou não para a eleição, que passou sem que uma decisão final fosse tomada.

Somente hoje, com o voto do novo ministro do Supremo Luiz Fux, vai ser definida a questão. A Proposta de Emenda Constitucional do ministro Peluso vai ser discutida pelos três Poderes, e a ideia é ter um debate, a nível técnico, com o Ministério da Justiça representando o Executivo, até que se chegue a um consenso, e a partir daí criar um pacto em torno da aprovação.

Por Merval Pereira

Fonte: ConJur

quarta-feira, 16 de março de 2011

Processo civil dos EUA buscou excepcionalismo

Direito Comparado
A cultura norteamericana é caracterizada pelo excepcionalismo[1]. Essa perspectiva indica-nos que o modo de vida dos Estados Unidos (American way of life) seria simplesmente diferente. Identificando-se como perene exceção, o norteamericano procura colocar-se acima de tudo e de todos, além do bem e do mal, intervindo militarmente em todas as longitudes e latitudes[2], como um perene estandarte de destino manifesto de liberdade. Voltemos ao excepcionalismo. Ao contrário da maior parte do mundo, por exemplo, os norteamericanos medem a temperatura em graus Fahrenheit e não em Celsius. Distâncias são identificadas em milhas, e não em quilômetros. Compra-se um galão, e não um litro de gasolina. Muito mais do que curiosidade etimológica, a constatação chama a atenção para o fato de que o direito norteamericano, realidade cultural, também teria sido fixado nos parâmetros dessa excepcionalidade ontológica. A tradição da common law inglesa foi amalgamada e acomodada ao positivismo continental. O direito processual civil norteamericano presta-se a comprovar a assertiva, mesclando tradição e inovação, oralidade e formalismo, sentimentalismo e objetividade. É um direito processual que se pretende diferente, mas que se banaliza em uma sociedade em perene litígio, na qual um dia em juízo (a day in court) passa a ser ocupação de rotina.

O processo civil norteamericano orienta-se para garantir compensações monetárias ou ordens judiciais para que a parte faça ou deixe de fazer algo[3]. O procedimento implementado ainda na época colonial era inglês, e da Inglaterra o direito processual civil norteamericano assimilou seus institutos básicos : o writ (mandado, ordem judicial), a summons (citação), os limites do pleading (pedido), o depoimento oral (oral testimony) e o julgado pelos pares no júri (petit e grand jury)[4]. A tradição processual inglesa dividia-se em dois diferentes tipos de jurisdições: de common law e de equity[5]. O sistema de common law é mais antigo, garantia o tribunal do júri (trial by jury) e outorgava tão somente compensações monetárias ou devolução de propriedade[6]. Era a justiça do rei, resultante de enfrentamento com o pluralismo jurídico feudal, ocorrido no século XII, e que refletia o rancor para com a invasão normanda de 1066. A common law desdobrava-se em três cortes de justiça: a common pleas (em Westminster), a king’s bench (que era itinerante) e a court of exchequer (que também velava pela fazenda pública).

O formalismo e a rigidez marcavam essas jurisdições. Os tribunais de equity surgiram como tentativa de se implementar um modelo judicial mais dinâmico[7]. Pedidos passaram a ser dirigidos diretamente ao chanceler do rei (chancellor), que se encarregou a partir do século XIV de controlar uma corte de justiça, a court of chancery. Os feitos começaram a ser processados com mais informalidade e rapidez[8]. As decisões tornaram-se mais amplas do que ordens de compensação material ou devolução de bens[9].

O direito processual civil a ser desenvolvido nos Estados Unidos radica ordinariamente nos institutos ingleses de common law e de equity. O procedimento na equity lembra os modelos da Europa continental. O juiz conduz o julgamento e não há tribunal do júri. Assim, o magistrado aprecia todas as questões de fato (factual issues) e de direito (legal issues)[10]. Com exceção do júri (que é instituto de common law), a maior parte do moderno processo civil norteamericano radica na equity[11]. Essa intersecção qualifica o hibridismo e o excepcionalismo do processo civil nos Estados Unidos.

A revolução norteamericana de 1776 e seu desdobramento normativo, a Constituição de 1787, consagraram o dogma iluminista da separação de poderes[12]. A função judicial consubstancia-se como implementadora da regra, da lei, da ordem. Mecanismos de judicial review surgirão em seguida, por conta do embate do juiz Marshall com o presidente Thomas Jefferson, no caso Marbury vs. Madison[13]. Em 1848 David Dudley Field elaborou um projeto de código de processo civil para o estado de Nova Iorque, que mais tarde servirá de modelo para a confecção da maioria dos códigos estaduais de processo[14]. Field previu simplificação nos pedidos. Reforçou a importância do tribunal do júri, como reação à contaminação política do processo, decorrente da indicação dos juízes, por parte do executivo[15].

Porém foi somente em 1938 que se aprovou um código de processo civil federal, federal rules of civil procedure[16]. A ordem dos advogados nos Estados Unidos, a American Bar Association (ABA), pressionou o Congresso para que se delegasse poder à Suprema Corte, para que essa elaborasse um modelo de código de processo[17]. O Congresso cedeu à pressão, delegou poder normativo estrito à Corte, que reuniu comissão de juízes, advogados e professores de Direito, preparando um estatuto federal para normas processuais[18], hoje também referencial para os diplomas procedimentais estaduais. Dois terços dos estados norteamericanos adotaram o modelo do código federal de 1938[19]. Ainda não existe uniformidade entre os códigos processuais estaduais nos Estados Unidos[20] . De modo a formatar-se ideia geral sobre o processo norteamericano, o que segue fixa-se no código federal de 1938 e respectivas alterações.

O primeiro artigo do código explicita que o propósito do estatuto é garantir justiça, velocidade e baixo custo na prestação jurisdicional[21]. Tenta-se uma justiça substantiva (decisões com base na lei), concreta (decisões com fundamento em fatos reais) e eficiente (velocidade no comando)[22]. Manteve-se o tribunal do júri para alguns casos, mesmo porque trata-se de garantia constitucional[23]. Simplificaram-se arcaicas formas de pedido. Emendas a requerimentos são aceitas com liberalidade. O litisconsórcio (ativo e passivo) é amplamente reconhecido, de modo a evitar-se a proliferação de ações com o mesmo objeto e partes.

Faz-se amplo uso de pré-conferências e de julgamentos sumários. O modelo de provas é elástico, volátil, multiforme, instrumental, propiciando às partes melhor preparo para o julgamento, com um mínimo de interferência do Judiciário nas fases preparatórias[24]. Concentra-se na oralidade. Eventos dramáticos desenvolvem-se como num imaginário teatro de justiça[25], marcado sob forte caráter emocional, com lances belicosos e com sabor militar, a exemplo de juramentos e posições de batalha. A liça lembra o direito germânico medieval, justificando-se a jocosa observação de que o processo norteamericano é mais tedesco do que o próprio processo alemão[26].

Prescreve-se uma forma básica de ação, a civil action[27]. Consubstancia-se um sistema de adversários. As partes litigam, investigam os fatos, apresentam provas, deduzem argumentos legais. O juiz é neutro, passivo. O interesse público reside no direito do próprio jurisdicionado, que dele pode abrir mão[28]. Ao ajuizar a ação, a parte prepara a citação (summon), com contra-fé, que será entregue ao clerk, funcionário da corte. A citação deve ser assinada pelo mencionado clerk, que também carimba o documento com o selo da corte, ao lado da identificação das partes e respectivos endereços[29]. A própria parte encarrega-se de citar o rival, vale-se do correio e até de formas eletrônicas, como e-mail com acusação de recebimento[30]. Assim,

O processo forma-se a partir da citação, que incita o réu a defender-se sob pena de revelia; isto é, a menos que o réu conteste o pedido, o julgamento será imediatamente contrário a ele (...). a citação é entregue ao réu ou deixada em sua casa pelo próprio autor ou seu advogado, por um oficial público, como um xerife ou um oficial de justiça federal. Se (...) vive em outro estado, conquanto que o juízo original mantenha jurisdição, a citação será enviada por carta registrada ou será pessoalmente entregue por agente do autor (...)[31].

A jurisdição (jurisdiction) consistiria no poder que determinado juizado tem para julgar um dado problema concreto[32], e nesse caso qualifica competência, no sentido dado pela processualística de tradição italiana. Leva-se em conta circunstância especifica do réu, tida como base para primeiro teste identificador[33]. Esse poder é exercido em espaço geográfico específico, chamado de venue, que determina onde a jurisdição será exercida[34]. Observa-se o local de residência ou o paradeiro do réu, e também onde parcela substancial dos fatos controversos teria ocorrido[35]. Fixados esses parâmetros, e citado, o réu pode preliminarmente arguir nulidade do ato por falibilidade de jurisdiction ou de venue. Esses argumentos poderão ser dirigidos para instância superior, não obstante imediato indeferimento (overruled)[36]. A contagem de prazos exclui o primeiro dia e inclui o derradeiro, exceto quando nesse último caso incidente em sábado, domingo, feriado[37], ou em dia de severas condições climáticas, quando o dies ad quem fica postergado para o próximo dia superveniente[38].

Autor e réu intitulam-se a anotar pleading, documento por meio do qual descrevem os fatos da disputa, entre si e para a corte[39]. A peça não suscita muitos pormenores. É redigida de forma curta, incisiva, direta[40]. Declara-se o conteúdo do pedido, mediante resumo dos fatos (plead the facts) e identificação das razões da demanda (state the cause of action), demonstrando-se titularidade do interessado para requerer intervenção judicial (relief)[41]. A peça chamada de pleading é também conhecida como complaint[42], com o sentido de reclamação, materializando o plaintiff, isto é, o autor, o detentor do direito de pedir intervenção judicial.

O réu é identificado como defendant ou respondent. A ação é conhecida pelos nomes do autor e réu, a exemplo de Jones vs. Miller[43]. O pedido não podia ser alterado no antigo modelo da common law[44], circunstância atenuada no processo norteamericano[45]. A petição (brief) traduz considerações do autor (pleading, complaint) , razões de defesa (denials), requerimentos diversos (motions)[46]. Os documentos são assinados por advogado ou pela parte, se a mesma atua em nome próprio[47]. As partes devem deter interesse e capacidade para atuar em juízo[48].

A defesa consiste em peça chamada de answer ou response, pela qual o réu nega (denial) as razões do autor, articula reconvenção (counter-claim, cross- claim)[49] ou postula inépcia da inicial (motion to dismiss)[50]. A answer é um ataque do réu em relação ao mérito e a motion to dismiss é um ataque do réu em relação ao procedimento[51], tocando especialmente jurisdição, nulidade da citação ou fixação de competência territorial (venue)[52]. O prazo para apresentação de defesa é de vinte dias contados da citação[53], ou de sessenta dias se houve concordância do autor[54] , ou de noventa dias se o réu não reside nos Estados Unidos[55]. Existe também a revelia (default)[56] .

Dá-se litisconsórcio (joinder of claims and parties)[57] com partes sob mesma jurisdição e similitude de interesses em contratos, danos pessoais, danos a propriedade, observando-se limitações de capacidade, sobremodo em relação a menores (minors), mentalmente incapazes (mental incompetents) e pessoas jurídicas não domiciliadas nos Estados Unidos (non-resident corporations).

Disputas entre vários interessados (multi-party actions) são previstas e aceitas pelo estatuto processual federal com ampla permissividade[58]. Terceiros podem ser chamados ao processo a qualquer momento[59], assim como qualquer interessado pode requerer admissão no pólo ativo da discussão[60]. O direito processual civil norteamericano contempla a figura do amicus curiae, isto é, o amigo da corte (friend of the court), que atravessa petição apenas opinando sobre a causa em disputa, uma vez que tem interesse indireto na decisão[61]. Há intervenção de credor do autor (impleader)[62], e há também intervenção em sentido estrito (intervention)[63], quando terceiro interessado (third-party) protesta para participar do feito[64].

Participação coletiva dá-se com a class action[65], que

(...) permite que um ou mais membros de um grupo definido, com queixas ou responsabilidades similares, ajuizem ou respondam ação em nome de todos os membros do grupo. A ação coletiva foi uma invenção da cortes de equidade da Inglaterra, utilizada quando pessoas afetadas por uma lei fossem tantas que seria impraticável trazê-las todas individualmente ao processo[66].

As class actions são muito comuns em discussões de relações de consumo, de proteção ambiental, de direitos civis, de disputas entre acionistas de empresa (corporate shareholders). É forma de se implementar disposição legal contra violadores institucionais, contra pessoas e empresas que podem ser responsabilizados por prejuízos causados a um grupo relativamente amplo de pessoas. Foram muitas utilizadas nas lutas contra a doutrina do separated but equal, durante o processo de desegregação racial[67] na década de sessenta. Classe é determinada por mínimo de vinte e cinco membros, abatidos por questões comuns, com pedido adequado a representar a classe como um todo, com interesses primários em recomposição financeira e material[68].

Todos os procedimentos passam por momento prévio de investigação e de levantamento de provas[69], chamado de discovery[70]. Salvam-se testemunhos, em caso de suposta idade avançada ou doença de depoentes. Evitam-se surpresas no julgamento final, a despeito de roteiristas de cinema e televisão insistirem em descrever cenas de júri com inúmeros lances inesperados, o que não se passa na vida real[71]. As partes clarificam pontos difíceis, limitam a disputa a termos específicos. Acordos são forçados. Advogados justificam honorários[72] mais polpudos. Intimidam-se opoentes. A finalidade primária do procedimento de discovery é providenciar aos litigantes uma oportunidade de revisão de todas as portas pertinentes antes do julgamento[73]. Advogados podem obter todas informações necessárias, em momentos que antecedem ao julgamento propriamente dito[74].

Colhem-se depoimentos[75], que são prestados a pessoas autorizadas para recebê-los, e que não são necessariamente servidores públicos[76]. Os depoimentos são produzidos em ambiente privado, geralmente em sala de reuniões em escritórios de advocacia. Tomam-se depoimentos também por telefone e por televisão via satélite. Investigam-se materiais, documentos e apetrechos relacionados à disputa[77]. Médicos psiquiatras examinam supostos doentes mentais[78]. Revelam-se as informações (disclosure), obrigatoriamente[79], trinta dias antes do julgamento[80]. Intimam-se testemunhas, informantes e peritos por um documento chamado de subpoena[81].

O autor pode desistir da ação (dismissal) antes do início do julgamento (before trial)[82]. De qualquer modo, realiza-se uma conferência que antecede o julgamento (pretrial conference). Essa é dirigida pelo juiz e tem como objetivo verificar se as partes estão prontas, se há acordo, desistência. A pretrial conference presta-se a apurar a qualidade do julgamento que se lhe segue[83]. A parte em seguida requer que data para o julgamento (trial) seja definida[84], indicada no law calendar[85]. Segue-se em dia marcado para a sala de julgamento (judge’s court).

Pequena parcela dos feitos civís é apreciada pelo tribunal do júri, que (a propósito) caiu no ostracismo na Inglaterra contemporânea[86]. São muito caros os custos com remuneração de jurados, procedimentos e investigações para seleção dos mesmos, mecanismos de instrução para atuação e votos. Casos complexos exigem jurados treinados e bem educados. Preconceitos (bias) de jurados atemorizam os jurisdicionados. Os jurados são questionados por advogados das partes em procedimento chamado de voir dire, que tem por objetivo levantar e revelar preconceitos desses julgadores leigos[87]. A parte tem direito constitucional ao julgamento pelo júri[88], mas tem disponibilidade sobre esse direito[89], que pode dispensar[90], e então o juiz é monocrático. O tribunal do júri deve contar com um mínimo de seis e um máximo de doze jurados[91]. Debates, testemunhos e provas reproduzem a síntese do discovery.

A decisão do juiz (ou dos jurados) põe fim ao processo em primeira instância[92] e submete as partes de imediato (binding effects)[93]. Emerge em primeiro grau a possibilidade de coisa julgada, a res judicata, formal (claim) ou material (issue), a ser confirmada em segundo grau e a instrumentalizar execução[94] penhora, leilão[95]. A parte derrotada tem trinta dias para apelar (appeal) após a decisão originária, sob premissa de que pretende assegurar a perfectibilidade e adequação do julgamento[96], corrigindo, clarificando[97]. Junta com a petição as peças essenciais. A corte superior mantém a sentença (affirm), altera parcialmente seu conteúdo (modify) ou anula e produz nova decisão (reverse)[98]. O acórdão é dado em bloco (en banc) refletindo opinião da maioria do colegiado, que não aprecia mais matéria de fato. Não há tribunal do júri em segundo grau. Um juiz redige a nova decisão em nome da maioria. Publicam-se também os votos vencidos (dissenting) e os votos que acompanham a maioria, porém por outros motivos (concurring)[99]. Também há apelo para a Suprema Corte, para a qual dirige-se peça chamada de writ of certiorari[100]. Tribunais de instância superior exercem discricionariedade, escolhendo as questões que vão julgar.

Essas são as linhas gerais do processo civil norteamericano. Muito menos do que lances de coragem e heroísmo ou de covardia e ganância dos caracteres imaginários (ou reais) de John Grisham, Scott Turrow, Sidney Sheldon e William Gaddis, o procedimento civil dos Estados Unidos vive a tensão comum das pessoas da rua, de carne e osso. Nessa ribalta marcada pelo embate, pela pretensão resistida, também desfilam juízes indicados por razões políticas ou eleitos, advogados sérios e competentes e também advogados que anunciam causas para clientes incautos, testemunhas compradas e testemunhas que confirmam o que viram, gente humilde e gente sofisticada, pessoas honestas e pessoas gananciosas, pequenos negociantes e gigantescas corporações que a ninguém temem. E pode até ser que são essas últimas que controlam esse personagem misterioso e ambíguo, chamado nos livros de introdução com o nome de legislador.

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur
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[1] Halle Porsdam, Legally Speaking, Contemporary American Culture and the Law, pg. 13.

[2] Samantha Power, A Problem from Hell, America and the Age of Genocide.

[3] Stephen N. Subrin, Martha L. Minow, Mark S. Brodin, Thomas O. Main, Civil Procedure- Doctrine, Practice and Context, pg.3.

[4] David S. Clark, Civil Procedure, in Tugrul Ansay e David S. Clark, Introduction to the Law of the United States, pg. 374.

[5] Kevin M. Clermont, Civil Procedure, pg. 49.

[6] Kevin M. Clermont, op.cit., loc.cit.

[7] Kevin M. Clermont, op.cit., pg. 51.

[8] Kevin M. Clermont, op.cit., pg. 52.

[9] Kevin M. Clermont, op.cit., pg. 53.

[10] Geoffrey C. Hazard, Jr. e Michele Taruffo, American Civil Procedure, pg. 15.

[11] Geoffrey C. Hazard, Jr. e Michele Taruffo, op.cit., pg. 16.

[12] David S. Clark, op.cit., pg. 375.

[13] Bernard Schwartz, A History of the Supreme Court, pgs. 39 e ss. Robert G. MacCloskey, The American Supreme Court, pgs. 35 e ss.

[14] David S. Clark, op.cit.,pg. 376.

[15] David S. Clark,op.cit.,loc.cit.

[16] Doravante o código de processo civil federal norteamericano sera referido como FRCP, isto é, federal rules of civil procedure.

[17] David S. Clark, op.cit.,loc.cit.

[18] David S. Clark, op.cit., loc.cit.

[19] David Clark, op.cit.,loc.cit.

[20] E. Allan Farnsworth, An Introduction to the Legal System of the United States, pg. 100.

[21] FRCP, Rule 1.

[22] David S. Clark, op.cit., pg. 377.

[23] Constituição dos Estados Unidos, Emenda Constitucional de número VI.

[24] David S. Clark, op.cit., pgs. 376 e ss.

[25] James Boyd White, The Legal Imagination.

[26] David S. Clark, op.cit., pg. 377.

[27] FRCP, Rule 2.

[28] David S. Clark, op.cit. pg. 378.

[29] FRCP, Rule 4.

[30] David S. Clark, op.cit.,pg. 380.

[31] FRCP, Introdução, pgs. XIII e XIV, Outline of a Civil Action . Tradução e adaptação livre do autor. The process typically consists of a summons, which directs defendant to appear and defend under penalty of default; that is, unless defendant answers the summons, a judgment will be entered against him. Services of process generally is achieved by personal service; the summons is physically delivered to the defendant to or is left at his home, sometimes by the plaintiff or her attorney, sometimes by a public official such as a sheriff or a United States marshal. If (…) lives in another state, but the circumstances are such that a court in (…) state may assert jurisdiction (…), the summons may be personally delivered (…) or some form of substituted service, such as sending the papers by registered mail or delivering the summons to (…) agent.

[32] David S. Clark, op.cit., pg. 386.

[33] Gene R. Shreve e Peter Raven-Hansen, Understanding Civil Procedure, pg. 70.

[34] David S. Clark, op.cit., loc.cit.

[35] David S. Clark, op.cit., loc.cit.

[36] David S. Clark, op.cit., pg. 389.

[37] Por feriado indicam-se : ano novo, nascimento de Martin Luther King Jr., nascimento de George Washington, dia da memória dos mortos em guerra, dia da independência, dia do trabalho, dia de Cristóvao Colombo, dia dos veteranos de guerra, dia nacional de ação de graças, dia de natal. FCRP, Rule 6 (a).

[38] FRCP, Rule 6.

[39] David S. Clark, op.cit., pg. 391.

[40] FRCP, Rule 8 (e).

[41] David S. Clark, op.cit., pg. 392.

[42] FRCP, Introdução, pg. XIV.

[43] Robert A. Carp e Ronald Stidham, Judicial Process in America, pg. 203.

[44] Richard L. Marcus e Thomas D. Rowe, Jr., Civil Procedure, pg. 91.

[45] FRCP, Rule 15.

[46] FRCP, Rule 8.

[47] FRCP, Rule 11 (a).

[48] FRCP, Rule 17.

[49] FRCP, Rule 13.

[50] David S. Clark, op.cit., loc.cit.

[51] William Burnham, Introduction to the Law and Legal System of the United States, pg. 226.

[52] FRCP, Introdução, pg. XV.

[53] FRCP, Rule 12 (a) (1) (A).

[54] FRCP, Rule 12 (a) (1) (B).

[55] FRCP, Rule 12 (a) (1) (B).

[56] FRCP, Rule 54.

[57] David S. Clark, pg. 395.

[58] Alan B. Morrison, Litigation, in Alan B. Morrison (ed.), Fundamentals of American Law, pg. 67.

[59] FRCP, Rule 14.

[60] FRCP, Rule 18.

[61] Steven H. Gifis, Law Dictionary, pg. 24.

[62] FRCP, Rule 22.

[63] FRCP, Rule 24.

[64] FRCP, Rule 24 ( c ) .

[65] FRCP, Rule 23.

[66] David S. Clark, pg. 400. Tradução e adaptação do autor. (...) permits one or more members of a definable group, with similar grievances or responsibilities, to sue or be sued as representative parties on behalf of all class members. The class was an invention of English equity courts, applicable where the persons affected by a decree were so numerous that is was impracticable to bring them all in as parties.

[67] David S. Clark, pg. 401.

[68] David S. Clark, pg. 401.

[69] FRCP, Rule 26.

[70] David S. Clark, pg. 402.

[71] James V. Calvi e Susan Coleman, American Law and Legal Systems, pg. 80.

[72] FRCP, Rule 54 (d) (2).

[73] Stephen N. Subrin et allii, op.cit. pg. 337. Tradução e adaptação livre do autor. The primary function of the discovery process is to provide litigants an opportunity to review all the pertinent evidence prior to trial.

[74] Stephen C. Yeazell, Civil Procedure, pg. 481.

[75] FRCP, Rule 27.

[76] FRCP, Rule 28.

[77] FRCP, Rule 34.

[78] FRCP, Rule 35.

[79] FRCP, Rule 37.

[80] David S. Clark, pg. 403.

[81] FRCP, Rule 45. Pronuncia-se “supina”.

[82] FRCP, Rule 41.

[83] William Burnham, op.cit., pg. 237.

[84] FRCP, Rule 40.

[85] David S. Clark , op.cit., pg. 410.

[86] David S. Clark, op.cit., pg. 410.

[87] Gene R. Shreve e Peter Raven-Hansen, op.cit., pg. 364.

[88] FRCP, Rule 38.

[89] FRCP, Rule 38 (d).

[90] FRCP, Introdução, pg. XVIII.

[91] FRCP, Rule 48.

[92] David S. Clark, op.cit., pg. 412.

[93] Davis S. Clark, op.cit., pg. 413.

[94] FRCP, Rule 69.

[95] FRCP, Rule 64.

[96] Gene R. Shreve e Peter Raven-Hansen, op.cit., pg. 417.

[97] David S. Clark, op.cit., loc.cit.

[98] David S. Clark, op.cit., pg. 419.

[99] David S. Clark, op.cit. loc.cit.

[100] Bob Woodward e Scott Armstrong, The Brethren, pg. XII.

terça-feira, 15 de março de 2011

Imprensa condena sem direito a apelação

Poder de fogo
Atualmente questiona-se muito o papel dos meios de comunicação e da mídia na sociedade contemporânea. Cada vez mais determinados grupos se apropriam dos meios de comunicação e acabam dominando a produção midiática. SHUDSON (1982) afirma que “o poder dos media reside não apenas no seu poder de anunciar as coisas como verdadeiras, mas no seu poder de fornecer a forma como as declarações aparecem”. Na grande mídia, um dos graves problemas é que o ritmo de produção é frenético, prejudicando a qualidade e o aprofundamento na produção da informação. As dificuldades aumentam de maneira exponencial quando as atividades jurisdicionais e os membros do Judiciário são objeto de notícia.

Não se afigura viável analisar todos os tópicos possíveis relacionados às dificuldades de comunicação entre a mídia e o Poder Judiciário, razão pela qual se opta pela avaliação tão-somente de três aspectos específicos: o excesso de informações pelos meios de comunicação a respeito dos fatos criminosos; a diferença temporal entre a produção da notícia e o processo judicial e a ponderação necessária quando presente o direito de informar e o direito à honra.

Neste contexto de responsabilidade dos meios de comunicação será avaliada a exorbitação do direito da imprensa de manter a sociedade informada a respeito dos crimes e da violência, em detrimento de informações diversas a respeito de temas socialmente relevantes.

A partir de um caso concreto, estudar-se-á a colisão entre o direito de informar e o direito a honra, e quais os limites para a aplicação da teoria da responsabilidade social dos meios de comunicação.

Finalmente, quanto à produção da notícia, adentraremos no aspecto temporal aparentemente inconciliável relacionado à duração do processo judicial e a necessidade de informações em tempo real.

Como substrato fático deste artigo, realizaremos a análise de um caso concreto que ocorreu na cidade de São Paulo e acarretou a condenação da Folha de S.Paulo a indenizar um juiz federal no valor de R$ 1,2 milhão, decisão ainda passível de reforma, em decorrência de uma reportagem ofensiva à honra do magistrado relativa à Operação Anaconda.

Estudo de caso
Em 30 de outubro de 2003, foi deflagrada uma operação pela Polícia Federal intitulada de Anaconda, com escutas telefônicas que teriam captado indícios das negociações ilícitas entre criminosos e membros do Poder Judiciário. Em 18 de dezembro de 2009, a Folha da Manhã S/A, que edita a Folha de S.Paulo, e o jornalista Frederico Vasconcelos, foram condenados pelo juiz Fernando Antonio Tasso, da 10ª Vara Cível de São Paulo, a pagarem ao juiz federal Ali Mazloum uma indenização por danos morais no valor de R$ 1,2 milhão, em decorrência de publicação pertinente à Operação Anaconda, que ocorreu em 4 de novembro de 2003. Além da condenação por danos morais, o juiz determinou a publicação da sentença no jornal. A decisão foi objeto de recurso por parte da Folha.

Conforme se depreende das notícias colhidas em sites na internet[1], foram presas oito pessoas e denunciados três juízes federais em decorrência da chamada Operação Anaconda. A operação foi resultado de uma investigação de um ano e nove meses feita pela Inteligência da Polícia Federal em Brasília que, com autorização judicial, monitorou mais de 80 telefones de agentes, delegados e juízes federais em São Paulo.

As interceptações, nos termos das reportagens, revelaram um esquema de corrupção que envolvia extorsão de empresas, uso de documentos falsos para manipular inquéritos e venda de sentenças judiciais. O inquérito correu em segredo de Justiça. Além de diversos envolvidos, dois juízes federais foram denunciados na mesma investigação: os irmãos Casem e Ali Mazloum. Ali Mazlum foi acusado por formação de quadrilha, ameaça e abuso de poder. A denúncia contra Casem é por formação de quadrilha, falsidade ideológica e interceptação ilegal de telefones.

Em decorrência dos fatos narrados, o juiz federal Ali Mazlum respondeu a um processo judicial pelos crimes enumerados. Segundo a acusação, Ali Mazloum teria ameaçado policiais rodoviários federais encarregados de monitorar escutas sigilosas e tentado obter deles cópias das gravações que diriam respeito a ele e a outros implicados na Operação Anaconda. O juiz responsável pela escuta era o titular da 10ª Vara, enquanto o juiz Ali Mazloum atuava na 7ª Vara.

Apesar das diversas reportagens a respeito do tema, inclusive do afastamento do juiz Mazloum da Vara em que atuava, o Supremo Tribunal Federal determinou o trancamento do processo pelo fato de inexistirem provas suficientes para o recebimento da denúncia. Após essa decisão, o juiz Ali Mazloum ingressou com ação judicial para reparação dos danos morais que teria sofrido em decorrência de reportagem realizada pela Folha de S.Paulo.

A ação judicial em que se postulou a indenização por dano moral, por sua vez, contém várias informações que merecem transcrição para oportunizar uma melhor contextualização sequencial dos fatos:

Na inicial, Mazloum alegou que o jornal veiculou uma série de reportagens ofensivas à sua honra e que a matéria "Mudança de sede causou polêmica", com o subtítulo "Magistrados teriam feito ‘lobby’ para não deixar prédio no centro" foi "fruto de criação mental" do jornalista Frederico Vasconcelos.

A reportagem abordou a mudança do Fórum Ministro Jarbas Nobre da praça da República para a alameda Ministro Rocha Azevedo, e afirmou que a localização anterior, no centro, era melhor para os acusados do esquema de venda de sentenças judiciais, pela proximidade dos escritórios de advogados e doleiros alvo da operação. Citou, ainda, que "atribuiu-se a um ‘lobby’ dos irmãos Mazloum [os juízes Casem e Ali Mazloum] críticas à mudança".

Em sua defesa, o jornal alegou que foi a promotoria quem apontou Ali Mazloum como um dos envolvidos na chamada Operação Anaconda. Sustentou, ainda, que "a reportagem não faz acusações, pré-julgamentos ou juízo de valor, evidenciando, apenas, que havia à época dos fatos especulações quanto ao interesse do autor [da ação, Ali Mazloum]". [2]

Na sentença que condenou a Folha de S.Paulo a indenizar o juiz Mazloum, foram apontadas questões pertinentes à liberdade de informação:

Na sentença, o juiz Fernando Antônio Tasso sustenta que o direito à informação colide com outros direitos fundamentais igualmente garantidos pela Constituição e que, por isso mesmo, não é absoluto. Diz o juiz: "No cotejo entre os direitos à honra e à imagem e, de outra parte, o direito de informar, a prevalência deste se dá se, e somente se concorrerem os seguintes pressupostos: 1) a informação for verídica; 2) a informação for inevitável para passar a mensagem; 3) a informação for relevante, na dicção de se tratar de um aspecto marcante da vida social; e 4) não deve ser veiculada de forma insidiosa".

O juiz entendeu que o texto "trouxe embutida a mensagem subliminar de que os protagonistas eram quadrilheiros reunidos para obstar a mudança", mensagem repassada ao leitor, "a despeito de linhas adiante relatarem a opinião de Ali Mazloum, totalmente discordante".

Ele reiterou, ainda, que as apurações feitas pelo Ministério Público Federal envolvendo os juízes não encontraram provas que pudessem incriminá-los. “Não houve a apresentação à Justiça de indícios de autoria de qualquer ato definido como crime pelo autor, motivo pelo qual a reputação do indivíduo e magistrado permaneceu incólume”, afirmou o juiz. [3]

Restou, ainda, consignado na sentença, que a própria diagramação do jornal foi tendenciosa ao inserir a notícia sobre a mudança da sede do tribunal entre outras notícias que "tratam de juízes acusados de crime e de prorrogação da prisão de juízes acusados de venda de sentenças, enquanto nenhum desses assuntos pode ser atribuído ao autor".

O juiz, ao motivar faticamente a sua sentença, observou:

A mensagem transmitida pela palavra escrita pode ser feita de forma subliminar, ou “lida nas entrelinhas”, sendo sua penetração diretamente proporcional à habilidade do emissor, neste caso, seu autor. O mero relato de eventual dissídio entre juízes acerca da conveniência de mudança do local de seus gabinetes foi abordada de uma forma pseudo-jornalística, como sustentado pelo advogado do autor, na medida em que sob a roupagem de mero relato de um fato, trouxe embutida a mensagem subliminar de que os protagonistas eram quadrilheiros reunidos para obstar a mudança de gabinetes para local mais próximo do órgão correcional do Tribunal a que eram vinculados e do Ministério Público. Não bastasse, insinuou que a resistência à mudança estava ligada ao fato de que a região da Praça da República abriga doleiros e advogados venais ligados ao esquema de corrupção. Tal conclusão não é fruto de uma análise parcial de seu conteúdo, bastando para que se identifique o cunho insidioso da frase estrategicamente contextualizada pelo seu autor, Frederico Vansconcelos, sua leitura: “(...) Antes da Operação Anaconda, sua localização era privilegiada para os acusados do esquema de venda de sentenças judiciais. Estava próximo do apartamento da ex-mulher do juiz Rocha Mattos, Norma Cunha, também na Praça da República, e dos escritórios de advogados e doleiros, na avenida São Luiz. O edifício está distante da Procuradoria da República, na rua Peixoto Gomide, do Fórum Pedro Lessa (com outras varas federais de primeira instância) e do Tribunal Regional Federal, estes dois na avenida Paulista. (...) Semanas atrás, atribuiu-se a um “lobby” dos irmãos Mazloum críticas à mudança (...)”. A despeito de linhas adiante, relatar a opinião de Ali Mazloum, frontalmente discordante, a mensagem havia sido passada a qualquer leitor de mediana inteligência. Vê-se que a matéria atacada não observou dois requisitos fundamentais para sua higidez e intangibilidade, como já explicado: possuiu caráter visivelmente insidioso e relatou fatos inverídicos. A inverdade da informação, aliás, está expressa em artigo de 12 de outubro de 2003 (fls.114/115) publicado pelo jornal Estado de São Paulo, que demonstra a adesão do autor à mudança de sede. Não se olvida o resguardo do sigilo da fonte, o que, porém, não consiste numa outorga incondicionada para a veiculação de aleivosias sob o respaldo de colocações evasivas como “Semanas atrás, atribuiu-se a um “lobby” dos irmãos Mazloum (...)” (fls.110 e 111).

A sentença destaca que o autor da reportagem, Frederico Vasconcelos, é autor também do livro Juízes no Banco dos Réus, para então concluir:

É alta a intensidade do dolo do jornalista, porquanto também é autor da obra intitulada “Juízes no Banco dos Réus”, na qual constam reportagens de sua própria autoria e relatam fatos e teorias que incriminam juízes e outras autoridades. Assim sendo, não só o impacto, como a veracidade daquilo que afirma no livro são reforçados por novos fatos e reportagens, a exemplo do que ora se trata, o que seria até mesmo salutar, não fosse proveniente de criação leviana.

Ficou estabelecido o valor da indenização a ser paga pelo jornal em R$ 1,2 milhão. Chegou-se a esse número multiplicando 20 salários mínimos pelo número de meses no exercício da magistratura do autor da ação (11 anos). Também foi condenado o jornal a publicar a sentença depois do trânsito em julgado, sob pena de multa diária de R$ 200 mil.

O caso relatado é emblemático, pois a partir dele surgem vários questionamentos pertinentes à atuação da imprensa e às questões afetas ao Judiciário.

Colisão entre o direito de informar e o direito à honra
Questão controvertida no mundo acadêmico e na prática forense diz respeito ao choque entre o direito de informar e o direito à honra. Quando um deve ceder lugar ao outro? Qual o interesse que deve ser protegido: o social ou o individual? Ou ainda, quando existe efetivamente interesse social para que uma notícia seja veiculada?

No caso em estudo, houve a condenação da Folha de S.Paulo por ofensa ao princípio constitucional do direito à honra, em decorrência da colidência entre dois direitos fundamentais, elencados no artigo 5º e no artigo 220, ambos da Constituição Federal.

O artigo 220, parágrafo 1º, da Constituição Federal dispõe que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Logo, é vedada a censura. Entretanto, a própria Constituição Federal prevê a observância, pelos meios de comunicação social, da honra, vida privada, imagem e intimidade das pessoas, assegurando a indenização por dano moral ou material decorrente da sua violação. Repudia-se o embaraço à livre informação, pois o direito de informar é um dos sustentáculos da formação da opinião pública e pedra basilar da democracia e do Estado de Direito, observadas as demais normas constitucionais citadas.

A dicotomia entre o direito à honra[4] e o direito de informar entram em rota de colisão quando um afeta a esfera do outro e, no caso em questão, pode-se verificar, a partir da leitura da decisão prolatada em 1º grau, a existência de ofensa à imagem, merecedora de reparação via judicial.

Uma imprensa livre, que exerce o direito constitucional de informar, deve fazê-lo com absoluta responsabilidade (LIMA, 2008), conforme se depreende do relatório da Hutchins Commission — “Uma imprensa livre e responsável” (A free anda responsible press) — publicado em 1947, nos EUA. Referido relatório deu origem à teoria da responsabilidade social da mídia e estabelece cinco pontos a serem observados pelos meios de comunicação:

1 - Propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de opinião);

2 - Servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;

3 - Retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;

4 - Apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo; e por fim,

5 - Distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

A sentença que verificou a ocorrência de dano moral analisou que a prevalência do direito de informar sobre o direito à honra e à imagem só ocorre quando presentes os seguintes aspectos: “1) a informação for verídica; 2) a informação for inevitável para passar a mensagem; 3) a informação for relevante, na dicção de se tratar de um aspecto marcante da vida social; e 4) não deve ser veiculada de forma insidiosa”.

Forçoso concluir que a liberdade de imprensa está diretamente relacionada à responsabilidade da imprensa, o que é um ponto de partida para a observância dos direitos fundamentais à honra, imagem e intimidade das pessoas.

Os meios de comunicação e os noticiários sobre fatos criminosos
O caso relatado neste artigo costuma ser uma espécie do gênero crime, que cada vez mais toma espaço nos meios de comunicação. É o tipo de notícia que chama a atenção pelo seu ineditismo — quadrilha de juízes —, além de ir ao encontro do senso comum de que todos aqueles que de alguma forma exercem cargos públicos são corruptos.

Nilo Batista vê um discurso criminológico realizado pela mídia em busca de uma hegemonia, principalmente sobre o discurso acadêmico, na direção da legitimação do dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos sociais. Existiria uma forma de privatização parcial do poder punitivo, iniciado muito mais por uma manchete de jornal do que a partir de uma portaria que dá início a um inquérito policial.

Com efeito, ao colocar uma diagramação especial relacionada a fatos criminosos, e na mesma página descrever fato específico que não possui ligação direta com aquele, mas suscita conclusões semelhantes, de certa forma gera uma espécie de condenação e punição antecipada, deixando de observar vários preceitos constitucionais como a presunção de inocência, suplantando por absoluto o direito de defesa.

Ao analisar a construção discursiva do noticiário sobre a violência no Rio de Janeiro, Fausto Neto, Castro e Lucas (1995, apud SEIFERT, 2004) constataram que a imprensa não se limita apenas a noticiar a violência ou crime, mas assume o papel de um verdadeiro tribunal: julga, acusa e sentencia. Nesse sentido, ela tem capacidade de alterar a realidade, pois o seu discurso de violência é, antes de tudo, um processo de violência. Para estes autores, a imprensa aponta o real, selecionando e enquadrando os fatos, além de manipular o olhar do público, subordinando-o a um determinado esquema de valores no qual aquilo que é destacado está sempre enquadrado em uma tela de julgamento.

Conforme SEIFERT (2004), essa estratégia de realização simbólica da justiça tem sido utilizada, em termos análogos, pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Kleber Mendonça (2001, apud SEIFERT, 2004) denuncia a exorbitação do direito da imprensa de manter a sociedade informada do crime e da violência, em detrimento de diversos direitos e garantias individuais do acusado, como o direito à preservação da intimidade e a presunção de inocência.

Conclui-se que a partir deste quadro surgem diversas vítimas: o cidadão que acaba julgado e punido sem possibilidade de defesa, e a coletividade, que perde a possibilidade de informar-se adequadamente sobre questões relevantes. Por fim, a própria evolução social resta enfraquecida ao padecer de elementos suficientes para exercer cidadania, privada de diversas informações a respeito de temas socialmente relevantes.

Justiça e mídia – diferenças de temporalidade
Conforme se depreende da sentença que condenou a Folha de S.Paulo a ressarcir os danos morais sofridos pelo juiz Ali Mazloum, a Justiça e a mídia vivem uma relação de conflito. Entretanto, apesar dos interesses por diversas vezes divergentes, elas precisam conviver e colaborar, pois a imprensa precisa das fontes oriundas do Judiciário, e o Judiciário precisa da imprensa para informar suas decisões e obter legitimidade social.

Existe, ainda, a produção de regimes completamente distintos de produção de verdades. Enquanto o Judiciário obedece todos os ditames processuais embasados na lei para buscar a verdade real, a imprensa, para garantir destaque nas notícias, utiliza procedimentos que possibilitam a produção de verdades instantâneas, as quais, por muitas vezes, não vêm a se confirmar.

O processo judicial obedece ao contraditório[5] e à ampla defesa[6], e para tal situação é indispensável o decurso do tempo, enquanto que os meios de comunicação, cada vez mais, precisam informar com rapidez, num sistema on line de comunicação que muitas vezes acaba por atingir direitos fundamentais da pessoa humana.

Essa diferença temporal pode parecer inconciliável, e talvez na maior parte das vezes realmente o seja. Entretanto, para a manutenção de um Estado Democrático de Direito, é indispensável que se encontre um ponto razoável de harmonia entre a mídia e o Judiciário.

A Justiça e a mídia vivem uma relação de conflito perfeitamente detectável a partir da avaliação do caso relatado neste artigo, consistente na condenação da Folha de S.Paulo a indenizar um juiz federal em decorrência da publicação de reportagem que acarretou dano a sua honra. Da mesma forma, é notório não se tratar o caso descrito de fato isolado, existindo inúmeras reportagens que não se coadunam com as situações reais, o que acaba por ser demonstrado no decorrer do tempo.

Vários aspectos geradores deste conflito poderiam ser estudados, entretanto, este trabalho abarcou três pontos distintos e alcançou conclusões tão-somente em relação a eles.

Existe por parte da mídia um discurso criminológico em busca de uma hegemonia, principalmente sobre o discurso acadêmico, na direção da legitimação do dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos sociais. Deixam de ser observados preceitos mínimos constitucionais como o direito à honra e o direito de defesa. Existiria uma forma de privatização parcial do poder punitivo, iniciado muito mais por uma manchete de jornal do que a partir de uma denúncia processual.

Outro ponto de divergência é a diferença temporal entre a produção da notícia e a finalização de um processo judicial. Enquanto o Judiciário obedece todos os ditames processuais embasados na lei para buscar a verdade real, a imprensa, para garantir destaque nas notícias, utiliza procedimentos que possibilitam a produção de verdades instantâneas, as quais, por muitas vezes não são confirmadas.

Inicialmente depreende-se que a liberdade de a imprensa informar está diretamente relacionada à responsabilidade social da produção da notícia, ou seja, esta deve dizer respeito a temas socialmente relevantes para o exercício da cidadania. Partindo desta premissa, em tese, a honra cederia lugar quando necessária a informação de interesse socialmente relevante, e tão-somente nesta hipótese, com a devida observância da veracidade das notícias a serem veiculadas.

Forçoso concluir, finalmente, que para a manutenção de um Estado Democrático de Direito é indispensável encontrar um ponto razoável de harmonia entre a mídia e o Judiciário, sob pena de prejuízo à coletividade.

REFERÊNCIAS

BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio

FAUSTO NETO, Antonio, Castro, Paulo Cezar e LUCAS, Ricardo L. de Jucema ( 1995. Midia – Tribunal: a construção discursiva da violência: o caso do Rio de Janeiro. Comunicação e Política, n.s.v. 1, n 2, p. 107-140.

LIMA, Venicio A. de Lima, COMISSÃO HUTCHINS.O velho ( novo) paradigma faz 61 anos. LimaFonte:http//www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=478JDB001

SCHUDSON, Michael. The politics of narrative form: the emergence of news conventions in print and television. Daedalus: journal of the american Academy of Arts and Sciences, 1982, p. 98

SEIFERT, Priscila Leal. Tribunais Paralelos: Imprensa e Poder Judiciário no caso Daniela Perez. Niterói:EdUFF, 2004.

[1] Fonte:www.folha.com.br e www.terra.com.br

[2] Dados obtidos em 10.08.2010 do site http://www.ajufesp.org.br/new.php?id=346 às 18:13h

[3] Dados obtidos em 10.08.2010 do site http://www.ajufesp.org.br/new.php?id=346 às 18:13h

[4] Trecho da sentença prolatada pelo juiz Fernando Tasso: “Assim, a honra subjetiva consiste no sentimento de auto-estima do indivíduo, encerrado no sentimento que possui a respeito de si próprio, de seus atributos físicos, morais e intelectuais. Diversamente, o conceito de honra objetiva focaliza o aspecto externo de seu conteúdo valorativo, consistindo no conceito social que o indivíduo possui. A imagem é também atributo individual que recebe a mesma proteção constitucional, conceituado pela doutrina mais autorizada em seu aspecto material e imaterial. Tratado pelo conceito do qual comungo como imagem-retrato, cuida-se da reprodução gráfica da figura humana e, diversamente, como imagem-atributo, o conjunto de atributos cultivados pelo indivíduo e reconhecidos pelo conjunto social. Interessa-nos este último aspecto na medida em que o ofendido se julga desmerecido no contexto da função que desempenha e na forma que o faz. Em suma, a preponderância e intangibilidade do direito de informar encontra limites nos demais direitos fundamentais e não prescinde da observância de requisitos na sua formação” Dados obtidos no site. http://www.ajufesp.org.br/new.php?id=346 às 18:13h do dia 10/08/2010.

[5] De acordo com Vicente Greco Filho ( 1997) o contraditório pode ser definido como o meio ou instrumento técnico para a efetivação da ampla defesa e consiste praticamente em: poder contrariar a acusação, pode requerer a produção de provas que devem, se pertinentes, obrigatoriamente ser produzidas, acompanhar a produção de provas, fazendo, no caso de testemunhas, as perguntas pertinentes que entender cabíveis, falar sempre depois da acusação, manifestar-se sempre em todos os atos e termos processuais aos quais devem estar presentes e recorrer quando for informado

[6] 5º, LVII, da CRFB: “ Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.Art. 5º, LV, da CRFB: “ Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios de recursos a ela inerentes.”

Por Vânila Cardoso André de Moraes
Fonte: ConJur

domingo, 13 de março de 2011

Legislativo propõe intervenção em decisões judiciais

Jogo de Forças
Em Atenas, os próprios cidadãos chamavam para si a defesa das leis e da Constituição. Por meio de um instituto chamado graphè paranomôn, eles podiam propor ação pública contra aqueles que editassem leis ordinárias que fossem na contramão da lei maior. Passados os séculos, o deputado petista pelo Piauí Nazareno Fonteles sugere um sistema parecido, mas com protagonistas trocados: de um lado, o Judiciário. E, de outro, o Legislativo regulando decisões e atos normativos advindos do primeiro.

A Proposta de Emenda à Constituição 3, de 2011, pede que o Legislativo tenha o poder de sustar decisões do Judiciário que ultrapassem seu poder regulamentar. Como justificativa para a sugestão, Fonteles traz à tona o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal, nunca antes questionado. O dispositivo prevê que o Congresso Nacional possui a competência exclusiva para "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa".


Aí, explica, estaria o problema. Alegando a existência de uma lacuna, o petista explica que enquanto o ordenamento jurídico atual prevê que o Legislativo possui plenos poderes para anular atos do Executivo, o mesmo não acontece na sua relação com o Judiciário. "Nada mais razoável", argumenta, "que o Congresso Nacional passe também a poder sustar atos normativos viciados emanados do Poder Judiciário, como já o faz em ralação ao Executivo".

O que a PEC pede, mais especificamente, é uma nova redação para o inciso V: a expressão "do Poder Executivo" seria substituída pela "dos outros poderes". Assim, acredita o deputado, o problema estaria resolvido. Embora a PEC ainda tenha de ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, operadores do Direito vêem com maus olhos a proposta. Outros chegam até a duvidar que a sugestão vá dar pé.

Antônio Sbano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, é categórico: "a PEC é inconstitucional e quebra com a tripartição dos poderes". Ao comentar o assunto, o juiz levanta outra questão: para ele, a proposta chega em um momento providencial.

"A PEC 3/11 tem um viés político e é muito clara em seu propósito, não deixando margem nenhuma de dúvida", diz. Para entender esse caráter, é preciso lembrar o contexto político em que a proposta foi concebida. No último 21 de fevereiro, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu mais uma liminar determinando que a vaga aberta com a saída de parlamentares da Câmara dos Deputados seja ocupada não por suplentes da coligação, e sim do partido.


O entendimento vem sendo repetido em diversas sentenças. Enquanto isso, a Câmara, que adota posicionamento divergente, se vê contrariada. Isso talvez explique o argumento do deputado Nazareno Fonteles. Ele chegou inclusive a tomar o caso como justificativa para a proposta. Desde dezembro de 2010, o Supremo analisou quatro casos tratando do assunto. Para os ministros da corte, é a regra da fidelidade partidária que teria determinado que o mandato pertence ao partido.

Nas palavras de Fonteles, "a inscrição, nas constituições, de regras claras sobre o funcionamento harmônico e independente dos poderes fortalece o regime democrático, evitando que ocorram, como frequência, conflitos de competência entre os mesmos e o consequente desgaste de suas imagens perante a opinião pública".

Também sobre o desgaste, mas com foco diferente, o criminalista Leonardo Sica, membro da Associação dos Advogados de São Paulo, acredita que o maior prejuízo que a PEC 3/2011 pode trazer é "um jogo de forças desnecessário entre os poderes". Ele lembra que, hoje, apesar de o Legislativo ter o poder de criar leis, quem analisa a sua constitucionalidade é o Judiciário. "De uma forma ou de outra, em algum momento o assunto volta para o STF. O perigo está em abrir novas áreas de atrito. A PEC é improdutiva, não há necessidade de existir."


Para Sica, a PEC significa que o Legislativo quer ter um controle maior na administração da Justiça. "A atuação do Judiciário vem crescendo e isso incomoda os parlamentares. Só que a gente precisa lembrar que o Judiciário só age por provocação e age quando o Legislativo se omite. O melhor caminho não é PEC nenhuma. É o Legislativo se incumbir se suas atribuições", opina.

Apesar de discordar da PEC 3/2011, Sica não descartar a importância de controle externo dos atos do Judiciário. "Mas isso já é feito pelo Conselho Nacional de Justiça, pela opinião pública, pela sociedade civil", enumera.


Gabriel Velloso é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá) e diretor de Direitos Humanos e Cidadania da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Para ele, a PEC 3/2011 é anacrônica: "O Judiciário de que fala a proposta não existe mais. Os tribunais não resolvem mais os conflitos que existem entre João e José, mas sim ações coletivas, por exemplo". E essas ações, explica, se tornariam inócuas caso o artigo 49 fosse redigido da maneira como o deputado petista pede. "Kelsen [o positivista Hans Kelsen] dizia que a decisão judicial também tinha natureza normativa. Com isso, a PEC está em desacordo com a nossa sociedade de massa, porque pode tornar inócuo o mecanismo coletivo", diz.

Para o desembargador, "a flagrante inconstitucionalidade da proposta que permite ao Poder Legislativo suspender atos do Poder Judiciário é patente, assim como a confissão de que o deputado não se sente à vontade em um regime democrático, onde um sistema de freios e contrapesos permite que a democracia seja exercida pela convivência harmônica entre os três poderes".

Em artigo publicado na Consultor Jurídico, Velloso cita a tripartição dos poderes teorizada por Charles de Montesquieu e a ideia de autonomia do Judiciário pensada por Alexander Hamilton. Enquanto o francês entendia o poder como uma parte separada do Estado, mesmo que os juízes apenas aplicassem a letra da lei, Hamilton via o Judiciário, ao lado do Legislativo e do Executivo, como "o mais fraco dos três poderes". Sendo o mais frágil e não podendo atacar os outros dois, "é necessário dar-lhe todos os meios possíveis para que possa se defender dos outros dois", escreve.


Hamilton registrou ainda que "a independência integral das cortes de Justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada. Limitações dessa natureza somente poderão ser preservadas na prática através das cortes de Justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos contrários ao manifesto espírito da Constituição".

Em Introdução ao Estudo do Direito, o professor de Teoria Geral do Direito Alysson Leandro Mascaro fala "que não se deve esperar que o sistema jurídico seja um todo coerente de normas jurídicas. O Estado exprime um conjunto complexo e contraditório de relações sociais, com demandas, ideologias e conflitos em disputa".

Velloso também fala em unidade. "É certo que a tripartição de poderes, rigidamente definida, não ocorre na atualidade, pois os chamados poderes Judiciário, Executivo e Legislativo exercem funções que não são predominantemente suas; mas é igual correto concluir que suas funções preponderantes são aquelas para as quais foram organicamente concebidos. É essencial para a garantia do Estado de Direito que sua independência seja garantida", finaliza.


Por Marília Scriboni
Fonte: ConJur

quinta-feira, 10 de março de 2011

Pais biológicos registram filho de útero emprestado

Fertilização em laboratório
Pais que forneceram material genético para fertilização em laboratório têm direito de registrar em cartório o nascimento do filho, desde que comprovada a paternidade biológica por meio de exame de DNA. Assim decidiu o juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, da Vara de Família de Lajeado (RS), que autorizou o cartório local a proceder ao registro de nascimento de uma criança nascida em útero de substituição. A mulher que emprestou o útero, o marido dela e o casal genitor, que forneceu os gametas, concordaram com o procedimento. A decisão saiu no dia 1º de março, e o processo tramita em segredo de Justiça.

Os autores da ação referiram que, após obter a anuência do Conselho Regional de Medicina do Estado do RS, foi ajustado um contrato de consentimento para a substituição temporária de útero, com a concordância do marido. Procedida à fertilização, o casal postulou, na Justiça, autorização para que a declaração de nascido vivo fosse emitida em seu nome, a fim de se habilitar ao registro da criança no Registro Civil das Pessoas Naturais.

O juiz Johnson relatou ter o Conselho Federal de Medicina editado a Resolução 1.358/1992, considerando o avanço do conhecimento científico e a relevância do tema da fertilidade humana, com todas as implicações médicas e psicológicas decorrentes. O texto do documento menciona que as clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como ‘‘gestação de substituição’’, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.

O Conselho também esclarece que as doadoras temporárias do útero, por sua vez, devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau. Os demais casos estão sujeitos à autorização de cada conselho regional de Medicina. Jamais a doação temporária do útero poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ao concluir a sentença, o juiz considerou que a medida é recomendável para os interesses da criança. “Diante da ausência de regulamentação legislativa específica, e não se vislumbrando indício de ilegalidade, tenho que a melhor solução para o caso em concreto coincide com o melhor interesse da criança, e este consiste em se determinar a lavratura do assento de nascimento, tornando por base a verdade biológica que, no caso em tela, coincide com a verdade socioafetiva, da filiação, demonstrada no exame genético”, afirmou.

Por TJRS
Fonte: ConJur