terça-feira, 29 de março de 2011

Constituição sintética dos EUA permite embates

Direito comparado
O direito constitucional norte-americano ocupa-se com o controle de constitucionalidade (judicial review), com interpretação constitucional, com a relação entre governo central e estados ( federalismo vertical) e com direitos individuais, a exemplo da chamada discriminação reversa (reverse discrimination), decorrente dos modelos de ações afirmativas (affirmative action). Com base em perspectiva que nos diz que direito constitucional é estudo das decisões da Suprema Corte[1], os temas acimas elencados encontram-se nos chamados watershed cases[2], a propósito das discussões em Marbury vs. Madison, Roe vs. Wade, McCullogh vs. Maryland, Plessy vs. Ferguson, Brown vs. Board of Education, Bakke vs. University of California. A força do precedente[3] formatará o entendimento constitucional. A Suprema Corte ditará os cânones do American way of life[4]. Direito e política assumem influências mútuas[5] sem constrangimentos epistemológicos.

O controle de constitucionalidade (judicial review) é exemplo da criatividade constitucional norte-americana. Trata-se do poder que o judiciário tem de rever as ações dos outros corpos governamentais, constatando (ou não) compatibilidade constitucional[6]. Radica concretamente no caso Marbury vs. Madison[7], julgado em 1803. Não há previsão constitucional quanto ao exercício do controle de constitucionalidade[8]; a atividade não fora originariamente outorgada à Suprema Corte norte-americana[9]. Não se cogitou do controle de constitucionalidade como inerente ao poder judiciário[10].

Já se escreveu que o controle de constitucionalidade teria sido ato de usurpação de poder por parte da Suprema Corte[11]. Já se afirmou que o judicial review afronta a clássica tripartição dos poderes, potencializando a oligarquia da toga[12]. Há quem acredite que o controle de constitucionalidade presta-se tão somente a legitimar variáveis políticas[13].

Em 1801, em fim de mandato presidencial, John Adams apontou juízes vinculados a seu partido, para postos vagos no judiciário federal norte-americano[14]. Entre eles, William Marbury, que ocuparia um juizado de paz na capital federal, no distrito de Columbia[15]. Ocorre que a investidura do novo magistrado não se deu a tempo. Thomas Jefferson[16] (inimigo político de Adams ) tomou posse como presidente e recusou-se a aceitar a nomeação dos juízes indicados pelo desafeto. Sentindo-se prejudicado e acreditando-se no direito potestativo de exercer a magistratura para a qual fora legalmente indicado, William Marbury protocolou pedido junto a Suprema Corte norte-americana. Requereu que o judiciário ordenasse que Thomas Jefferson cumprisse a ordem legítima e acabada de John Adams. Processado o requerimento, citou-se James Madison, secretário de estado, para que apresentasse defesa em nome do governo.

Do nome das partes a identificação do caso: Marbury vs. Madison. James Madison não contestou a ação. O executivo simplesmente não tomou conhecimento de que havia matéria pendente no judiciário. O presidente da Suprema Corte (chief justice) John Marshall (que fora secretário de estado de John Adams) viu-se em situação difícil. Se ordenasse que Jefferson empossasse Marbury, não teria como implementar o comando; a Suprema Corte seria desmoralizada. Se desse razão a Jefferson, sem que ele sequer tivesse se defendido, pareceria temeroso, fraco; a Suprema Corte sairia da contenda desmoralizada também. Porém Marshall, o grande chief justice[17], notabilizou-se como mestre em tergirversar em momento de perigo[18]. Marshall redigiu sua decisão (opinion) confirmando que Marbury estava correto, que estava intitulado a tomar posse e a entrar em exercício como juiz de paz em Columbia.

Aproveitou para criticar Jefferson e a política do partido que estava no poder. Porém, observou que o artigo de lei que Marbury utilizara para instruir seu pedido ( com base num ato judiciário de 1799 ) era inconstitucional, nulo (void)[19]. Segundo Marshall a Suprema Corte não tinha jurisdição originária para apreciar o pedido como formulado por Marbury[20]. Embora substancialmente correto, Marbury teria buscado remédio jurisdicional com base em regra inconstitucional. Marshall não enfrentou Jefferson, não deixou de dar razão a Marbury, salvou a Suprema Corte do descrédito e estabeleceu precedente que dá início ao controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América do Norte. Jefferson sentiu-se vitorioso e não criticou a decisão, que passou a valer desde então.

O judicial review ganhou mais espaço no constitucionalismo norte-americano a partir de 1865 com o término da Guerra Civil[21], em decorrência das questões que emergiram do sangrento conflito. Marbury vs. Madison encetara uma decisão seminal[22], que qualificou a Suprema Corte como efetiva guardiã da legalidade, detentora do poder de dizer o que é lei[23]. A prerrogativa foi ao longo do tempo apropriada por todo o judiciário, embora se reservando a última palavra à corte suprema .

O controle de constitucionalidade de leis e de atos governamentais[24] nos Estados Unidos é difuso, todo juiz pode exercê-lo[25]. Marshall é qualificado como um juiz ativista (activist)[26], impondo prudência pessoal na solução de problemas a ele encaminhados. Essa perspectiva conduz-nos a outro tema, sutilmente implícito e decorrente no controle de constitucionalidade, a saber, os contornos da interpretação constitucional nos Estados Unidos da América do Norte.

Lê-se a constituição norte-americana de forma pragmática[27]. Percebe-se que impressões mais conservadoras[28] decorrem de uma hermenêutica textual[29]. Observa-se que decisões mais liberais emergem de exegese mais funcional, estrutural. Falou-se também de uma interpretação econômica, tese de Charles A. Beard, identificada com uma historiografia realista[30]. A constituição refletiria a ideologia, a classe social e os preconceitos dos framers[31], proprietários de terras e de escravos, intransigentes defensores do liberalismo clássico[32]. De qualquer modo, a interpretação da constituição faz-se em meio a problemas concretos, cujo desate promove resultados políticos, não obstante reflexões em torno da relação entre a redação original da constituição e a soberania dos corpos políticos destinatários da norma maior[33]. E o conflito da Suprema Corte com a primeira administração de Franklyn Delano Roosevelt é disso prova mais eloquente[34].

O plano interpretativo do direito constitucional norte-americano desdobra-se nos debates entre os juízes da Suprema Corte. Reuniões são precedidas por simbólico aperto de mão (the symbolic handshake) na imagem de Phillip J. Cooper[35], que nos lembra o juiz Melville Fuller, para quem ( ainda em 1880 ) diferenças de opinião não devem macular a harmonia geral entre os magistrados[36]. Há intensa comunicação e barganha de votos entre os juízes da Suprema Corte norte-americana[37]. As decisões refletem opinião colegiada[38], não obstante o vedetismo dos grandes nomes do judiciário daquele país, como Oliver Wendell Holmes Jr., Felix Frankfurter, Louis Brandeis, Benjamin Cardozo, entre tantos outros. Sentido histórico informa mecanismos de interpretação.


O texto constitucional passa de dois séculos e expressões como liberty, due process, entre outras, suscitam conotações sociológicas e denotações políticas que se alteram com o tempo e com a realidade fática do país[39]. Chama-se o mecanismo de atualização da linguagem constitucional (updating the constitution)[40]. Tudo se faz sob manto ideológico que força a crença de que a lei é a suprema vontade do povo, de modo que seus intérpretes revelariam a alma do país[41]. Alexis de Tocqueville, no ceticismo típico da aristocracia francesa que representava, fora mais direto e percebera uma certa onipotência da maioria[42].

Flexibilidade interpretativa seria a referência exegética recorrente, por causa da eterna reserva de sentido que a constituição perfila, dado sua inegável característica sintética. Destacam-se dois grupos hermenêuticos cujos contornos são muito bem distintos. Os ativistas (political activists) ampliam a linguagem original para contemplar direitos e valores que se revelaram e que se alteraram no tempo[43], principalmente em âmbito de direitos coletivos.

Nesse caso, a chamada Corte de Warren, de 1953 a 1969 é o mais perfeito paradigma[44], promovendo cânones de integração racial e de igualdade civil[45]. Os constituintes de 1787, os framers, teriam os olhos no futuro[46]; o intérprete da constituição deveria revelar esse horizonte. Isso explica a volatibilidade que a leitura da constituição enceta. Difícil encontrarmos modelos hermenêuticos neutros[47]; a neutralidade é mera aparência de posição adrede tomada e carente de justificação.

Os ativistas são geralmente relacionados com o pensamento do partido democrata. Os juízes construtivistas teriam sido indicados por presidentes daquela agremiação. Exemplificando[48], o presidente Woodrow Wilson nomeou Louis Brandeis. Franklyn Roosevelt indicou Hugo Black, William Douglas e Felix Frankfurter. John F. Kennedy apontou Arthur Goldberg. Porém essa observação não é regra. O mais liberal e ativista de todos, Earl Warren, fora indicado pelo presidente Dwight David Eisenhower, do partido republicano. Eisenhower, ou Ike, considerava a nomeação de Warren como o mais estúpido erro que cometera[49].

No outro lado encontram-se os textualistas, originalistas, adeptos de interpretação literal da constituição (strict interpretativists)[50]. Essa a tendência contemporânea na Suprema Corte[51], dada maioria de juízes indicados por presidentes do partido republicano. Willliam Rehnquist, atual presidente daquela casa, fora apontado pelo presidente Richard Nixon[52]. Fala-se de um ativismo judicial à direita[53], metáfora que qualifica o conservadorismo de uma Suprema Corte majoritariamente republicana, e os episódios da eleição de George W. Bush em face de Al Gore ilustram e confirmam essa posição[54].

Diminuem-se direitos de presos[55], menoscabam-se liberdades e expectativas de homossexuais[56], mitigam-se posições ambientalistas[57], se aceita a hipertrofia do executivo[58], acredita-se que a jurisprudência referente ao aborto será em breve alterada (overruled)[59]. Triunfa um conservadorismo cujo referencial centra-se nas posições de Scalia[60], que se diz preso no texto e sentido originais da constituição.

A Suprema Corte não se perde em discussões teóricas. Só aprecia casos concretos, reais, controversos[61], exercendo absoluta discricionariedade ao escolher os processos em que pretende opiniar, depois de provocada, por meio do writ of certiorari[62] A hermenêutica constitucional presta-se a acudir a vida real. Para tal, pontos a serem esclarecidos carecem de implementar três exigências. Devem subsumir prejuízo concreto (standing) causado pela ré. Entre outros, é por isso que problemas provocados por receios abstratos obstruem o livre acesso à Suprema Corte de temas ambientais[63], quando a comprovação de danos concretos, reais, efetivos, é muito difícil. O dano não pode ser percebido em tese, deve ser real, o que qualifica o princípio da ripeness[64], da maturidade do fato. A matéria não pode perder o objeto ao longo da discussão, o que indica o princípio da mootness[65], que sugere idéia de ficção . A discussão é fictícia (moot) quando ultrapassada pelo tempo, esse devorador de coisas, quando se dizem esgotados os limites cliométricos do processo (time frame)[66].

O caso Roe vs. Wade[67], julgado em 1973, cuja decisão deferiu pedido referente a possibilidade de prática de aborto por decisão da mãe[68] ilustra os contornos inversos do princípio da mootness. Trata-se de uma exceção a tal conceito. Um caso dessa natureza não pode ser julgado em menos de nove meses, tempo normal de uma gestação. Os advogados do estado do Texas, que defendiam a constitucionalidade de lei local que proibia o aborto, invocaram o princípio da mootness. Como a autora da ação não estava mais grávida (a criança nascera ), não havia matéria concreta, real , fática, a ser apreciada pela corte suprema[69]. Ponderou-se que a decisão era referente a específica lei do Texas, e que os efeitos da decisão seriam futuros.

Não se tratava, evidentemente, do clássico caso do aluno que tem matrícula indeferida em faculdade, que obtém ordem judicial para estudar na aludida escola, e cuja decisão do feito dá-se no momento da colação de grau[70]. Nesse último exemplo não há ( em tese ) o que se decidir, dado o implemento de condição, que não poderia ser contrariada por decisão do judiciário.

Mas vamos ao caso Roe vs. Wade. Norma McCorvey, de pseudônimo de Jane Roe, tinha vinte e um anos, era divorciada e cuidava de uma filha de cinco anos. Vivia com dificuldades financeiras, estava desempregada e engravidou do namorado. Preocupada com a situação nova, procurou abortar, no que se viu proibida pelas leis do Texas, onde vivia. Essas leis datavam de 1859. O aborto era ilegal naquele estado, exceto quando necessário para salvar a vida da mãe[71]. Duas advogadas muito jovens, Linda Coffee e Sarah Weddington, interessaram-se pelo caso e decidiram levá-lo às últimas consequências[72].

Mesmo sabendo que a matéria não seria decidida antes do nascimento do bebê, Morma McCorvey concordou em ajuizar a ação, que seria usada como um teste, com o objetivo de alterar tendência jurisprudencial. Atacou-se a constitucionalidade da lei anti-aborto do Texas, porque a norma violentava cláusulas da emendas nove e quatorze à constituição norte-americana[73].

Argumentou-se em prol da defesa do aborto que direitos não especificamente listados na constituição são retidos pelo povo (retained by the people). Entre eles, o direito à privacidade (right to privacy)[74]. Esse direito à privacidade protegeria o direito da mulher decidir pela continuidade da gravidez, circunstância natural inserida na sua esfera mais íntima de escolha[75]. O acórdão foi proferido em 22 de janeiro de 1973. Criava-se uma fórmula a ser a partir de então seguida. Até o terceiro mês da gravidez a decisão quanto ao aborto é da mulher com apoio de seu médico.


Em relação ao segundo trimestre da gravidez, os estados podem produzir normas, com o objetivo de assegurar-se a saúde da mulher, regulamentando-se o procedimento de aborto. Quando ao último trimestre, leis estaduais poderão autorizar aborto quando necessário para a salvaguarda da saúde da mãe[76]. A discussão desafiou o anunciado princípio do mootness. Alterou substancialmente os contornos do direito de família[77]. Considera-se Roe vs. Wade o mais controverso caso apreciado pela Suprema Corte[78], provocando a abertura de uma caixa de Pândora na observação de Peter Irons[79], historiador do constitucionalismo norte-americano.


Dada a maioria republicana que controla contemporaneamente o poder nos Estados Unidos, observa-se uma certa guinada à direita, que resulta na limitação concreta do direito ao abordo, como definido na célebre decisão do caso Roe vs. Wade, prolatada em 1973. As legislaturas estaduais podem confeccionar regras referentes à utilização e destino de recurso públicos em matéria de saúde pública. Observa-se que as legislaturas estaduais têm proibido o uso de tais valores na cobertura de práticas abortivas. Essa atitude limita concretamente o alcance de Roe vs. Wade, indicando que a autorização jurisprudencial para a prática do aborto tem alcance limitado, na medida exata da intervenção normativa local.


Um terceiro tema de direito constitucional norte-americano vincula-se a relação entre governo central e estados, o chamado federalismo vertical[80]. Essa relação é historicamente o resultado de conflitos políticos[81], de compromissos e de consenso[82]. O pacto federalista limita o poder entre as unidades da federação[83] mesmo quando o governo central regula relações entre estados, a exemplo do comércio interestadual[84]. Três cláusulas orientam o pacto federativo norte-americano, a saber : a) os estados foram preservados como fontes de poder, com autoridade e natureza de órgãos da administração, b) aos estados foram reservados importantes poderes quanto à composição do governo federal e, c) os poderes governamentais foram distruibuídos entre o governo central e os governos estaduais[85].

O federalismo norte-americano despreza a idéia de município. O federalismo concebe imunidade tributária recíproca no modelo dos Estados Unidos[86], como resultado de interpretação constitucional extensiva. No caso McCulloch vs. Maryland[87], julgou-se[88] inconstitucional tributo que o estado de Maryland lançara em face de banco federal[89], com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), que outorga ao governo federal mecanismos e meios para a consecução de seus fins[90] .

O movimento para desegragação racial nos Estados Unidos, a exemplo da integração nas escolas públicas, fora o grande teste para a relação entre estados e poder central. Com o término da Guerra Civil (em 1865 ) formatou-se um modelo legislativo segregacionista no sul dos Estados Unidos, chamado de Jim Crow[91]. As leis de segregação racial chamam-se de Jim Crow, nome de personagem popular de circos, geralmente um branco que pintava a face de preto, para ridicularizar os afro-americanos.

Em 1896 no caso Plessy vs. Fergusson[92] consolidou-se a segregação racial mediante o triunfo da doutrina do iguais, porém separados ( separated but equal )[93], que prevê modelo de apartheid, no qual deve-se garantir igualdade de tratamento, porém em estabelecimentos e locais diferentes. A cláusula jamais se implementou faticamente, dadas as notórias condições inferiores impostas aos negros, em restaurantes, hotéis, escolas, banheiros públicos.

Identifico agora o caso Plessy vs. Fergusson. Em sete de junho de 1892 Homer Plessy sentou-se em setor reservado para brancos em trem do estado da Lousianna. Plessy era “um oitavo negro”; sua ascendência em relação a negros era pequena. Porém, as leis do estado da Lousianna o consideravam como negro[94]. Instado pelo supervisor do trem a dirigir-se ao setor reservado às pessoas de cor, Plessy recusou-se a cumprir a ordem. Foi preso, julgado e condenado em todas as instâncias locais. Plessy apelou para a Suprema Corte requerendo providências contra Ferguson, juiz da Suprema Corte da Louisianna. A Suprema Corte em Washington manteve as decisões inferiores, valendo-se da seguinte linguagem :

Uma lei que meramente implique distinções legais entre as raças branca e negra, uma distinção que é baseada na cor dessas raças, e que deve existir tanto quanto homens brancos são distintos de outros em razão de cor, não tem a tendência de destruir a igualdade jurídica entre essas raças[95].

A doutrina do separated but equal será derrubada pelo movimento pelos direitos civís, que ganhou corpo nas décadas de cinquenta[96] e de sessenta[97]. A estratégia consistia em se denunciar a desigualdade[98], em momento em que a Suprema Corte mostrava-se tendente a consagrar igualdade real[99], fulminando a segregação[100], em ambiente propício, anunciador de uma década agitada[101].

O caso Brown vs. Board of Education[102], julgado em 1954, propiciará novos parâmetros de relação entre governo central e estados. Esses últimos deverão cumprir ordens daquele, que viam como nefasta interferência em negócios internos. Os fatos foram particularmente difíceis no estado do Alabama. O governador George Wallace opôs-se a medidas de desegregação nas escolas[103], no que foi contestado pela administração Kennedy que federalizou a guarda estadual, deixando-o sem muitas opções de resistência.

Alguns pais de alunos de escolas públicas da cidade de Topeka, estado do Kansas, liderados por Oliver Brown, insurgiram-se com o fato de que crianças negras eram impedidas de estudar nas melhores escolas públicas, que eram reservadas aos brancos[104]. Por força da doutrina do separated but equal, crianças negras deveriam estudar em escolas muito distantes de suas casas, frequentavam instalações escolares de qualidade inferior e eram educadas por professores que recebiam salários mais baixos.

Com apoio da NAACP- National Association for the Advancement of Colored People[105], a questão foi levada a Suprema Corte que em histórica decisão determinou o fim da segregação racial nas escolas. O governo federal encontrou inúmeras dificuldades em implementar o acórdão, dada resistência dos estados do sul, em confronto direto repleto de lances de heroismo, de violência, de mártires[106]. O famoso músico de jazz, Louis Armstrong, antes das medidas de fim de segregação, estava proibido de dormir nos hotéis em que tocava[107]. O fim da segregação engendrou uma segunda guerra civil entre sul e norte, focalizando o fim da resistência dos estados mais reacionários, dimensionando o federalismo vertical em bases mais contemporâneas.

Proteção de direitos individuais, mais outra característica do direito constitucional norte-americano de nossos dias, explicita individualismo que plasma a sociedade dos Estados Unidos da América. A constituição assegura direitos individuais[108] contra atos do governo, federal e estadual, concepção que identifica a doutrina do state action[109]. Entidades privadas no exercício de funções prioritariamente públicas (como educação e saúde) podem ser equipoladas à condição de pessoas jurídicas de direito público[110]. Direitos individuais são defendidos com base nas emendas cinco e quatorze à constituição norte-americana[111], e decorrente autorização dada ao congresso para implemento da cláusula da equal protection of the laws[112]. Exemplo de aplicação da cláusula deu-se em 1886 em São Francisco, Califórnia, quando do caso Yick vs. Hopkins[113]. A cidade de São Francisco dificultava outorga de autorização para que chineses operassem máquinas de lavar roupa (laundries), indiretamente vedando aos asiáticos a prática de lucrativo comércio. Como não podia prejudicar os chineses com critérios baseados em raça, a prefeitura daquela cidade da costa oeste norte-americana começou a proibir os laundries em estabelecimentos de madeira. Ocorre que todas as lavanderias chinesas eram operadas em barracões que não eram de alvenaria.

A questão chegou à Suprema Corte que invalidou a norma que indiretamente excluía chineses do mercado de lavanderias, dada a notória discriminação contida na lei de São Francisco. Hipótese semelhante deu-se quando no sul dos Estados Unidos exigiu-se que eleitores fossem alfabetizados. A norma excluía descendentes de escravos do processo eleitoral, dada o notório baixo índice de escolaridade entre aquelas pessoas[114].

Contemporaneamente direitos individuais são debatidos em âmbito das chamadas ações afirmativas (affirmative action). A expressão supostamente surgira com o ex-presidente John Kennedy em ordem executiva de 1961, proibindo discriminação no regime de contratação de pessoal de manutenção[115]. A locução também foi utilizada pelo ex-presidente Lyndon Johnson[116] em ordem executiva de 1965. Tenta-se eliminar resquícios do passado, fazendo-se historicamente justiça devida às minorias, mediante a reserva de vagas em escolas e empregos para membros dessas comunidades e grupos étnicos.

Críticos das ações afirmativas consideram tais procedimentos como discriminações reversas (reverse discrimination). O caso Bakke vs. University of California[117], julgado em 1978, indica os precedentes. Allan Bakke, branco, requereu vaga em faculdade de medicina em um dos campi da Universidade da Califórnia. Embora detentor de boas notas (good score), Bakke foi preterido porque a aludida universidade reservava dezesseis por cento de suas vagas para grupos minoritários[118]. Bakke ajuizou ação contra a universidade, alegando que o programa de proteção de minorias o discriminava[119]. A Suprema Corte decidiu que o modelo de ação afirmativa da Universidade da Califórnia era inconstitucional, usando-se inclusive a expressão reverse discrimination.

Porém a decisão não foi unânime e em voto vencido (dissent) o juiz Powell observara que em não havendo prejuízo para o interessado, as políticas afirmativas eram perfeitas. Bakke ganhou a ação e obteve a vaga na faculdade de medicina. Talvez pela primeira vez norma atinente a direitos civís (civil rights) fora utilizada na proteção de brancos. E com base no voto vencido do juiz Powell muitas escolas mantém políticas de ações afirmativas.

A Suprema Corte decidiu em meados de 2003 caso de affirmative action que envolve a Universidade de Michigan[120]. Voto importante, em favor de tais políticas poderá vem da juíza Sandra O’Connor. É que ela fora apontada para a corte suprema por Ronald Reagan, que cumpria promessa de nomear a primeira mulher para o importante cargo[121]. Sua nomeação é evidente medida de affirmative action, em que pese suas inegáveis qualidades. Ao votar contra tais modelos a citada juíza estaria votando contra sua própria indicação, no entender de setores da imprensa norte-americana[122]. Porém a retórica da indecisão marcou a recente decisão. O acórdão foi liderado pela juíza Sandra Day O’Connor que capitaneiou apertada maioria de 5 a 4, como previsto pela imprensa nortee-americana. Decidiu-se que a prática da Universidade de Michigan no sentido de admitir minorias não violou a XIV emenda da constituição norte-americana e que portanto não houve discriminação racial ao reverso, como pretende a ala mais conservadora. Porém a Suprema Corte determinou que o uso de cotas para admissão de minorias é inconstitucional e que práticas neutras devem ser adotadas o mais rápido possível.

Esses são em síntese, e como visto, os principais temas que informam o direito constitucional norte-americano contemporâneo: judicial review, interpretação constitucional, federalismo vertical e affirmative action. A nação acompanha essas discussões com curiosidade superlativa, aferindo movimentação que atesta a vitalidade da constituição dos Estados Unidos. Refratários a abstrações teóricas de duvidosa aplicabilidade na vida real e negocial, os norte-americanos formatam constitucionalismo pragmático, volátil, modulando uma constituição sintética na arena marcada pela liça e pela luta, típica de uma civilização pujante, destemida, individualista, tradicionalmente dada a embates jurídicos e a artimanhas políticas.


Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Fonte: ConJur

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