domingo, 13 de março de 2011

Legislativo propõe intervenção em decisões judiciais

Jogo de Forças
Em Atenas, os próprios cidadãos chamavam para si a defesa das leis e da Constituição. Por meio de um instituto chamado graphè paranomôn, eles podiam propor ação pública contra aqueles que editassem leis ordinárias que fossem na contramão da lei maior. Passados os séculos, o deputado petista pelo Piauí Nazareno Fonteles sugere um sistema parecido, mas com protagonistas trocados: de um lado, o Judiciário. E, de outro, o Legislativo regulando decisões e atos normativos advindos do primeiro.

A Proposta de Emenda à Constituição 3, de 2011, pede que o Legislativo tenha o poder de sustar decisões do Judiciário que ultrapassem seu poder regulamentar. Como justificativa para a sugestão, Fonteles traz à tona o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal, nunca antes questionado. O dispositivo prevê que o Congresso Nacional possui a competência exclusiva para "sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa".


Aí, explica, estaria o problema. Alegando a existência de uma lacuna, o petista explica que enquanto o ordenamento jurídico atual prevê que o Legislativo possui plenos poderes para anular atos do Executivo, o mesmo não acontece na sua relação com o Judiciário. "Nada mais razoável", argumenta, "que o Congresso Nacional passe também a poder sustar atos normativos viciados emanados do Poder Judiciário, como já o faz em ralação ao Executivo".

O que a PEC pede, mais especificamente, é uma nova redação para o inciso V: a expressão "do Poder Executivo" seria substituída pela "dos outros poderes". Assim, acredita o deputado, o problema estaria resolvido. Embora a PEC ainda tenha de ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, operadores do Direito vêem com maus olhos a proposta. Outros chegam até a duvidar que a sugestão vá dar pé.

Antônio Sbano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, é categórico: "a PEC é inconstitucional e quebra com a tripartição dos poderes". Ao comentar o assunto, o juiz levanta outra questão: para ele, a proposta chega em um momento providencial.

"A PEC 3/11 tem um viés político e é muito clara em seu propósito, não deixando margem nenhuma de dúvida", diz. Para entender esse caráter, é preciso lembrar o contexto político em que a proposta foi concebida. No último 21 de fevereiro, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu mais uma liminar determinando que a vaga aberta com a saída de parlamentares da Câmara dos Deputados seja ocupada não por suplentes da coligação, e sim do partido.


O entendimento vem sendo repetido em diversas sentenças. Enquanto isso, a Câmara, que adota posicionamento divergente, se vê contrariada. Isso talvez explique o argumento do deputado Nazareno Fonteles. Ele chegou inclusive a tomar o caso como justificativa para a proposta. Desde dezembro de 2010, o Supremo analisou quatro casos tratando do assunto. Para os ministros da corte, é a regra da fidelidade partidária que teria determinado que o mandato pertence ao partido.

Nas palavras de Fonteles, "a inscrição, nas constituições, de regras claras sobre o funcionamento harmônico e independente dos poderes fortalece o regime democrático, evitando que ocorram, como frequência, conflitos de competência entre os mesmos e o consequente desgaste de suas imagens perante a opinião pública".

Também sobre o desgaste, mas com foco diferente, o criminalista Leonardo Sica, membro da Associação dos Advogados de São Paulo, acredita que o maior prejuízo que a PEC 3/2011 pode trazer é "um jogo de forças desnecessário entre os poderes". Ele lembra que, hoje, apesar de o Legislativo ter o poder de criar leis, quem analisa a sua constitucionalidade é o Judiciário. "De uma forma ou de outra, em algum momento o assunto volta para o STF. O perigo está em abrir novas áreas de atrito. A PEC é improdutiva, não há necessidade de existir."


Para Sica, a PEC significa que o Legislativo quer ter um controle maior na administração da Justiça. "A atuação do Judiciário vem crescendo e isso incomoda os parlamentares. Só que a gente precisa lembrar que o Judiciário só age por provocação e age quando o Legislativo se omite. O melhor caminho não é PEC nenhuma. É o Legislativo se incumbir se suas atribuições", opina.

Apesar de discordar da PEC 3/2011, Sica não descartar a importância de controle externo dos atos do Judiciário. "Mas isso já é feito pelo Conselho Nacional de Justiça, pela opinião pública, pela sociedade civil", enumera.


Gabriel Velloso é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá) e diretor de Direitos Humanos e Cidadania da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). Para ele, a PEC 3/2011 é anacrônica: "O Judiciário de que fala a proposta não existe mais. Os tribunais não resolvem mais os conflitos que existem entre João e José, mas sim ações coletivas, por exemplo". E essas ações, explica, se tornariam inócuas caso o artigo 49 fosse redigido da maneira como o deputado petista pede. "Kelsen [o positivista Hans Kelsen] dizia que a decisão judicial também tinha natureza normativa. Com isso, a PEC está em desacordo com a nossa sociedade de massa, porque pode tornar inócuo o mecanismo coletivo", diz.

Para o desembargador, "a flagrante inconstitucionalidade da proposta que permite ao Poder Legislativo suspender atos do Poder Judiciário é patente, assim como a confissão de que o deputado não se sente à vontade em um regime democrático, onde um sistema de freios e contrapesos permite que a democracia seja exercida pela convivência harmônica entre os três poderes".

Em artigo publicado na Consultor Jurídico, Velloso cita a tripartição dos poderes teorizada por Charles de Montesquieu e a ideia de autonomia do Judiciário pensada por Alexander Hamilton. Enquanto o francês entendia o poder como uma parte separada do Estado, mesmo que os juízes apenas aplicassem a letra da lei, Hamilton via o Judiciário, ao lado do Legislativo e do Executivo, como "o mais fraco dos três poderes". Sendo o mais frágil e não podendo atacar os outros dois, "é necessário dar-lhe todos os meios possíveis para que possa se defender dos outros dois", escreve.


Hamilton registrou ainda que "a independência integral das cortes de Justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada. Limitações dessa natureza somente poderão ser preservadas na prática através das cortes de Justiça, que têm o dever de declarar nulos todos os atos contrários ao manifesto espírito da Constituição".

Em Introdução ao Estudo do Direito, o professor de Teoria Geral do Direito Alysson Leandro Mascaro fala "que não se deve esperar que o sistema jurídico seja um todo coerente de normas jurídicas. O Estado exprime um conjunto complexo e contraditório de relações sociais, com demandas, ideologias e conflitos em disputa".

Velloso também fala em unidade. "É certo que a tripartição de poderes, rigidamente definida, não ocorre na atualidade, pois os chamados poderes Judiciário, Executivo e Legislativo exercem funções que não são predominantemente suas; mas é igual correto concluir que suas funções preponderantes são aquelas para as quais foram organicamente concebidos. É essencial para a garantia do Estado de Direito que sua independência seja garantida", finaliza.


Por Marília Scriboni
Fonte: ConJur

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