quinta-feira, 3 de março de 2011

Nem as súmulas vinculantes escapam de interpretação

Interpretação
O professor Alexandre Melo Franco Bahia publicou um brilhante ensaio sinalizando algumas críticas aos ideais levantados pelas súmulas vinculantes. Referimo-nos ao texto intitulado “Súmulas estão sujeitas a diversas interpretações”, publicado pelo Conjur, no qual Bahia destaca que a súmula vinculante é, antes de mais nada, um texto. E como todo texto, ela também desencadeia interpretações. E como toda interpretação, a sua concretização depende da definição de cada situação concreta. Conclusão: as súmulas vinculantes, sob a promessa de resolverem problemas de segurança em situações de reiterada controvérsia jurisprudencial, ressuscitam o velho problema — pré-kelseniano, diga-se de passagem — da proibição da interpretação quando a regra é clara.

Bahia toca em uma questão importante. A súmula vinculante é um texto que, agora, tem a pretensão de competir com os demais textos legais, igualmente submetidos à possibilidade de interpretação. E para esse problema, já não importa se a súmula vinculante é fonte formal ou material de direito. Se ela admite ou não interpretações extensivas. Ou ainda se, do mesmo modo como antes se buscava a mens legislatoris, agora vai ser importante buscar a mens julgatoris.

A súmula vinculante apresenta-se como uma importante solução para o problema da segurança jurídica em situações de reiterada controvérsia jurisprudencial. Do mesmo modo que a lei escrita resolveu, no século XVIII, o problema da multijurisdicionalidade da Europa Medieval, a súmula vinculante pretende, hoje, resolver o problema da segurança jurídica por meio da afirmação jurisdicional de uma espécie de “interpretação correta” (isso ainda não está muito claro na própria concepção da súmula vinculante) de casos reiteradamente controvertidos na jurisprudência.

Seguindo essa linha crítica de pensamento, nós queremos destacar um outro problema que tangencia a prática das súmulas vinculantes. Trata-se da desvinculação dos contextos materiais de interpretação. E esse problema não é difícil de ser entendido. Nem precisa de uma extensa fundamentação filosófica precedente para constituir seus eixos de compreensão. O problema da desvinculação dos contextos materiais de aplicação nos diz que toda interpretação de um texto normativo só pode ser realizada em concreto. Quer dizer, não há como se interpretar um texto em abstrato, porque o sentido normativo de um texto sempre pressupõe, no mínimo, uma ilustração da sua possibilidade de aplicação. Não há como se interpretar um texto normativo sem pressupor, pelo menos, a possibilidade de sua aplicação.

Por exemplo — veja que para entender a abstração do parágrafo anterior, precisamos da ilustração —, ao se estudar um princípio como o da dignidade da vida, o sentido normativo desse princípio só pode ser compreendido a partir das nossas vivências prévias. Se vivêssemos em um mundo onde ninguém tem problemas de dignidade, o princípio da dignidade não faria nenhum sentido para nós. Se nunca tivéssemos visto alguém ser preso, a súmula vinculante que trata das algemas não faria nenhum sentido para nós. E a própria possibilidade de se criticar o fundamento daquela súmula, cujo sentido normativo só passou a ser juridicamente importante depois da prisão de pessoas economicamente importantes, só pode ser também entendida porque já está em nós a vivência prévia das desigualdades sociais.

Isso acontece porque, como demonstrou Martin Heidegger em seu importante livro Ser e Tempo, todo o sentido da interpretação pressupõe nossas vivências prévias, as quais não só influenciam, mas constituem o horizonte de sentido das possibilidades de interpretação.

A súmula vinculante, como qualquer texto normativo, não é mais que um texto, que uma escritura, que disponibiliza sempre um informalizável horizonte de possibilidades de determinação do sentido, que somente pode ser determinado diante do caso concreto ou, em abstrato, diante de casos concretos considerados em abstrato – como o caso das algemas gerais e abstratas, segundo o qual todos que não apresentarem resistência não podem ser algemados.

Mas a argumentação jurídica é muito mais sofisticada do que a lógica formal de subsunção da norma ao caso. O próprio Kelsen já sabia disso ao escrever o capítulo 8 da Teoria Pura do Direito. Isso porque a argumentação jurídica não trabalha apenas com uma lógica formal de subsunção de um caso a uma norma ou de incidência de uma norma a um caso. Em outras palavras, a questão da súmula vinculante não é só: aplica-se ou não se aplica. A argumentação jurídica pode, trabalhando com os elementos de significação do caso concreto, construir uma narrativa que conta uma história diferente daquela prevista pelo texto da súmula vinculante. Quer dizer, a normatividade de uma súmula vinculante pode, por si só, justificar bons argumentos para a definição de uma narrativa suficientemente diferente para não se constituir em uma hipótese de aplicação.

E esse problema não é novo. Ele foi o mesmo problema que fundamentou a velha frau legis do início do positivismo jurídico sociológico de Pontes de Miranda. E se trata do histórico problema filosófico da pretensão de universalização, segundo o qual toda regra gera as suas próprias exceções. Então, com a pretensão de produzir segurança jurídica, uma súmula vinculante produz ao mesmo tempo insegurança argumentativa. Porque a argumentação jurídica sempre poderá surpreender o formalismo da subsunção com elementos materiais não previstos pela súmula vinculante. E imprevisibilidade é, exatamente, o contrário da segurança.

Esse é o paradoxo das súmulas vinculantes: sob a pretensão de segurança jurídica, elas apenas garantem uma segurança formal, uma segurança jurídica no sentido estrito de uma segurança lógico-formal, como todos os demais textos legais. Mas todos sabem que o direito é muito mais que um conjunto lógico-formal de regras e princípios hierarquicamente organizados e com respostas previsíveis. E por esse motivo – que é um motivo histórico –, todas as críticas ao formalismo do direito parecem ter sido esquecidas quando se fala de súmula vinculante.

Segurança jurídica é previsibilidade. Mas exatamente ao tornar previsível uma determinada resposta do direito para um caso concreto, a súmula vinculante permite novas configurações narrativas, novos arranjos argumentativos, novas formas de exposição de motivos juridicamente relevantes que sempre justificarão novas exceções para cada regra nova. E isso é assim. Faz parte da dinâmica interna do sistema jurídico.

O que não pode acontecer, portanto, é pensar-se que a súmula vinculante constitui uma aproximação do civil law — que trabalha orientado à questão da legalidade — com o common law — que trabalha orientado à questão da legitimidade. Porque há uma diferença enorme entre questões de legalidade e questões de legitimidade. Como também não se pode, sob pena de um risco muito grande de frustração, depositar na súmula vinculante a solução para os problemas de coerência e consistência lógica das decisões jurídicas. Porque mesmo que idealizássemos um sistema logicamente perfeito, ainda assim metade dos usuários desse sistema ideal poderia sempre surpreender a previsibilidade do sistema com argumentos do tipo: esse caso não é igual aos outros.

Mas ainda não respondemos a pergunta da qual partimos: como interpretar a proibição de interpretar? Sabemos que não há uma proibição de interpretar súmulas vinculantes, tal como a regra do in claris cessat interpretatio dos códigos do Iluminismo burguês. Mas o modo como a súmula vinculante tem se apresentado entre os operadores da práxis forense carrega consigo essa expectativa. E por isso nós podemos responder agora essa questão: interpretamos a proibição de interpretar como um estímulo à faculdade de narrar outras possibilidades de aplicação. Interpretamos a proibição de interpretar como uma liberdade de trânsito entre os diversos contextos de significação dos casos concretos. E nesse sentido, a súmula vinculante vincula a normatividade formal da decisão. Mas ao mesmo tempo, desvincula a normatividade material dos contextos possíveis de significação.

Uma boa ilustração disso nós podemos encontrar no conceito de “escritura”, do famoso filósofo francês Jacques Derrida, o qual é inclusive utilizado por Niklas Luhmann para explicar a interpretação no contexto da sua teoria dos sistemas de comunicação autopoiéticos.

Para Luhmann, a forma da interpretação é a diferença entre texto e escritura, quer dizer, a diferença entre, de um lado, o corpo físico dos textos, a literalidade, o arranjo de signos linguísticos dos textos como potencial de sentidos a serem interpretados e, do outro lado, a racionalização dessa literalidade do texto na forma da construção de um sentido.

Os textos jurídicos são as leis, a jurisprudência, a doutrina, os documentos e petições dos processos judiciais e todos os demais textos que são relevantes no sistema jurídico - e agora podemos incluir aqui também os textos das súmulas vinculantes. Os textos são, portanto, apenas signos linguísticos, apenas signos com possíveis significações.

Já a escritura consiste na simbolização da diferença entre signo e sentido. Isso porque, como se sabe, os signos linguísticos não contém, em si mesmos, o sentido do que eles simbolizam. Os signos não se dão à interpretação já dotados de sentido. A relação entre signo e sentido é uma relação autológica, já que o signo, como unidade da diferença entre significante e significado, não se refere nem só ao significante, tampouco só ao significado: refere-se a ambos como auto e hetero-referência, como clausura operativa e abertura cognitiva. De modo que, do signo ao sentido, torna-se sempre necessária uma operação de interpretação. Exatamente essa diferença entre, de um lado, signos linguísticos de um texto e, do outro, os seus possíveis sentidos a serem construídos pela interpretação, constitui a diferença que é simbolizada pelo conceito de escritura.

A escritura, portanto, é uma marca, um traço, uma diferença entre a literalidade dos textos e as suas interpretações possíveis. Tal como a diferença entre texto legal e norma jurídica na teoria pura do direito de Kelsen, a escritura simboliza a diferença entre textos jurídicos e as possibilidades de interpretação desses textos jurídicos. A função da escritura, portanto, é a de não permitir que se identifique o direito com os textos jurídicos, quer dizer, é a de lembrar aos operadores do direito que o direito não pode ser confundido com os textos jurídicos, já que os signos linguísticos dos textos são apenas formas de expressão contingentes do sentido do direito.

Já que não existe texto que dispense uma interpretação, a escritura sinaliza exatamente essa diferença entre o texto, como uma base de sentido sempre ainda a ser constituída, e a interpretação, como a forma que constitui o sentido do texto. A escritura, portanto, é o símbolo que sinaliza a forma “texto/interpretação”. Pode-se dizer também que escritura é a simbolização de um texto interpretado perante várias possibilidades de interpretação, é a simbolização de uma potencialidade de interpretações interpretada. A escritura evita que se faça uma confusão entre signo e sentido. Ela lembra, constantemente, que a segurança jurídica não pode ser encontrada em uma segurança linguística, não pode ser encontrada em uma estabilidade radicada nos signos linguísticos - e a Súmula vinculante parece pretender exatamente isso.

Isso porque, por mais rigorosa que seja uma linguagem, sempre haverá a possibilidade de construção de vários sentidos. Desde a matemática de Russell e com mais razão depois do teoria da incompletude de Kurt Gödel se sabe que um sistema simbólico como a matemática, que é muito mais preciso do que a linguagem comum ou até mesmo a linguagem técnico-jurídica, sempre exige decisões interpretativas que não podem ser controladas pelo sistema mesmo. Um texto é um sistema simbólico que precisa ser interpretado para dotá-lo de sentido. A escritura simboliza essa diferença entre signo e sentido e a interpretação simboliza a diferença entre texto e escritura. E posto que a escritura já é uma interpretação de signos, a interpretação é uma interpretação de interpretações, uma distinção de distinções.

A interpretação, portanto, é a unidade da diferença entre texto e escritura, entre texto literal e texto interpretado, entre potencialidades de interpretação e interpretação consumada. Veja-se que, segundo esse conceito, a interpretação não é apenas o seu resultado, tampouco é o seu objeto: a interpretação é a diferença entre o seu objeto - os textos - e o seu resultado - a escritura, a interpretação consumada diante de várias possibilidades de interpretação. Isso porque a interpretação é uma operação paradoxal. É uma operação que pergunta pelo sentido da diferença entre o arranjo sígnico dos textos e a sua escritura, sem se dar conta de que, para observar essa diferença, ela já está interpretando uma escritura, já está interpretando interpretações.

As teorias da interpretação mais avançadas partem da interpretação como uma dinâmica de interação entre um leitor e o texto. E para saírem do problema da filosofia da consciência (sujeito/objeto), suplementam essa interação entre sujeito/objeto com “comunidades de interpretação” ou “comunidade de intérpretes” - como se a substituição do sujeito pela comunidade pudesse destranscendentalizar o sujeito, quer dizer, como se o “inter” da intersubjetividade resolvesse o problema da separação entre sujeito e objeto do conhecimento.

Mas a interpretação não é um diálogo do intérprete com o texto, mas sim um diálogo do intérprete consigo mesmo. Ao interpretar um texto, o intérprete prepara, ao mesmo tempo, uma argumentação. Uma interpretação é, portanto, a preparação de uma argumentação. E isso significa que a interpretação já está submetida aos critérios daquilo que pode ser dito de modo convincente. Por isso que, para Luhmann, a interpretação não procura simplesmente desvelar o sentido de um texto. Antes disso, a interpretação já está condicionada pela possibilidade de relacionamento do sentido do texto a determinados contextos de aplicação. E é precisamente isso que as súmulas vinculantes pretendem negar. Elas afirmam normas como se a sua interpretação pudesse ser desvinculada dos contextos materiais de interpretação.

A interpretação de um texto é um comportamento social. Pois qualquer construção de sentido do texto, através da interpretação, é uma construção previamente determinada pelos contextos a partir dos quais se interpreta o texto. A interpretação só extrai do texto aquilo que faz sentido para a comunicação em contextos específicos. Quer dizer, a interpretação só seleciona dos textos o sentido capaz de ser argumentativamente levado para a comunicação na sociedade.

Sobre um mesmo texto, portanto, torna-se possível tantas interpretações quanto o número de contextos comunicativos que fazem sentido para a argumentação. O texto continua sendo o mesmo, com suas letras, palavras, orações, frases, parágrafos. Mas aquilo que, interpretativamente, se extrai dele, depende das possibilidades de argumentação convincente em determinados contextos comunicativos.

Existem textos enquanto são interpretados. Não há texto com sentido sem uma interpretação. Como também não há interpretação sem um texto que lhe constitua o suporte para ela realizar-se. Os textos constituem a base unívoca sobre a qual as interpretações podem se multiplicar. Os textos garantem a unidade para a multiplicidade de interpretações. Eles produzem interpretação.

Mas de todas as interpretações possíveis sobre um mesmo texto, a argumentação seleciona somente aquela ou aquelas interpretações convincentes para o seu uso comunicativo. E o critério que a argumentação utiliza para selecionar as interpretações convincentes é o uso comunicativo da argumentação, é a projeção das possibilidades de comunicação daquilo que foi interpretado, é a projeção das possibilidades de uso daquilo que foi interpretado em contextos sociais específicos.

É possível falar, pois, de poli-interpretação. Podem ocorrer múltiplas interpretações sobre um mesmo texto, conforme o sistema funcional no qual se pretende participar comunicativamente através da argumentação. A interpretação jurídica, portanto, é apenas uma das inúmeras possibilidades interpretativas.

Com base na literalidade dos textos, a interpretação sempre tem um número elevado de possibilidades de interpretação, sempre está submetida a uma policontexturalidade, sempre pode errar. Podem co-existir diversas interpretações sobre um mesmo texto jurídico e, por isso, podem co-existir também diversas razões para se optar por uma ou outra interpretação do texto. Diante das várias interpretações possíveis, a argumentação seleciona e justifica a escolha da melhor interpretação para uma situação concreta. A argumentação, portanto, consiste não apenas em um processo de fundamentação da interpretação adequada sobre um texto jurídico, mas também - e sobretudo - em uma seleção da interpretação convincente para um determinado contexto de comunicação social.

Por esse motivo, segundo nossa opinião, a idéia de súmula vinculante não é nada além do que uma justificação política da necessidade de dotar o judiciário do poder de editar textos jurídicos, na forma de súmulas juridicamente vinculantes, com a sutil pretensão de abstrairem-se das possibilidades de interpretação e de argumentação jurídica. Nesse sentido, as súmulas vinculantes são para o Judiciário o que as medidas provisórias são para o Executivo. Ambas são necessárias e talvez possam sim conviver em equilíbrio com a tensão entre constitucionalismo e democracia, que caracteriza o Estado Democrático de Direito. O que nos preocupa é essa fé ingênua na súmula vinculante, como se ela fosse o novo Code Civil de Napoleão, de uma tradição anacrônica - e infelizmente ainda não superada - do positivismo clássico do Século XIX.

Por: Rafael Simioni
Fonte: ConJur

Um comentário:

  1. Os blogs quebraram a hegemonia da imprensa comercial e apontam para um novo futuro em se tratando da liberdade de expressão e do direito à informação. Estamos de parabéns.

    SINDICATOS E PROFESSORES, acessem modelo de petição para cobrar na ajustiça o reajuste do piso do professor conforme a lei do piso, 21,7%, não como declara o MEC. Ainda cobrar as diferenças do ano de 2010. Leia, comente e divulgue: http://valdecyalves.blogspot.com/2011/03/mais-uma-vez-o-mec-viola-o-lei-do-piso.html

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