segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Levando os direitos a sério no Tribunal de Sancho Pança

Reflexão
Há um episódio do romance Dom Quixote, de Cervantes, em que o cavaleiro da triste figura e seu escudeiro, Sancho Pança, são recebidos por um duque gaiato que lhes prega uma peça. Finge acreditar nas peripécias do “engenhoso fidalgo” e o trata como herói. E em recompensa ao escudeiro, concede-lhe o governo de uma suposta ilha.

Empossado governador de sua ilha de fantasia, Sancho é convocado a assumir as responsabilidades da aplicação da lei. Logo aparece uma mulher que acusa um pastor de porcos de tê-la deflorado. O pastor defendia-se alegando que a mulher se oferecera por dinheiro. Sancho condena o réu a indenizar a mulher, entregando-lhe todas as moedas que trazia consigo. O réu cumpre a sentença e a mulher se vai.

Em seguida, Sancho pondera que a indenização não poderia ser extorsiva e muda sua sentença. Determina ao pastor que procurasse a mulher para que lhe devolvesse as moedas. Mas dentro em pouco retorna o homem vencido e surrado. Não conseguira reaver o dinheiro. De pronto, Sancho ordena à mulher que devolvesse ao pastor toda a quantia que recebera. Ante seu espanto, Sancho declara que se ela tivesse defendido sua honra com o mesmo vigor que defendera sua bolsa, jamais teria sofrido dano algum.

Noutra ocasião, os criados pedem a Sancho que solucione um enigma. No reino havia uma ponte sobre a qual havia uma forca. E existia uma lei que dispunha que quem quisesse atravessá-la deveria, sob juramento, dizer aonde ia. Só poderia passar quem dissesse a verdade. Aquele que mentisse seria enforcado. Eis que chegou à ponte um jovem dizendo que iria morrer na forca que ali estava. Se o executassem, teria falado a verdade, e portanto não poderia ser enforcado. Porém, se o deixassem passar, teria mentido, e então deveria ser condenado. Vendo que ambas normas eram válidas, mas que só poderia aplicar uma, Sancho percebe que, por princípio, em casos de dúvida o réu deve ser favorecido. E conclui que não deveriam enforcar o jovem.

Tanta prudência revelou e tantas outras coisas tão boas determinou que para sempre se guardaram naquele lugar as célebres “constituições do grande governador Sancho Pança.”

Essas passagens anedóticas certamente fazem alguma troça da Justiça. No entanto, também revelam como a aplicação do direito não está aprisionada na técnica judicial. É enorme a responsabilidade dos juízes. Por isso pode parecer que é preciso super-homens para tal tarefa. Porém, ainda que seja um trabalho hercúleo, mesmo um humilde Sancho Pança, quando confrontado com diferentes argumentos trazidos pelas partes, é capaz de inferir certos princípios universais a partir da experiência concreta.

O direito é estudado na jurisprudência dos tribunais porque é lá que se encontra disponível para investigação pública. Mas todos os dias o direito se produz na rua, no trabalho, nas relações de vizinhança, nas ligações familiares. Aos tribunais chega apenas parte dos crimes e dos demais conflitos sociais.

Ao julgar, o juiz lida com concepções de certo e errado que já existem na sociedade. Mesmo um julgado inovador não faz mais que reconhecer a legitimidade de uma das teses apresentadas pelas partes. E ainda que sua fundamentação seja original, o dispositivo da sentença está limitado aos pedidos das partes, devendo o juiz ao fim dizer se algum deles é procedente.

O direito é também o conjunto de técnicas usadas para a tomada de decisões públicas. E, como qualquer tecnologia, exige pessoas especializadas em sua operação. Por isso, para atuar num dos poderes de Estado – o Judiciário – é preciso formação técnica. Contudo, depois de Chernobyl, nem as tecnologias mais “exatas” dizem respeito apenas aos técnicos.

No caso do direito isso se nota de modo mais evidente, pois não só as conseqüências da técnica afetam a todos, mas o próprio objeto manejado pelos técnicos do direito é laborado pela sociedade. Quem produz as normas de conduta, tanto a lei como os usos e costumes, não é o jurista, mas os cidadãos, diretamente ou por meio de seus representantes parlamentares. É a sociedade que fornece ao Judiciário aquilo sobre o qual este aplicará a técnica processual.

Logo, a todo cidadão se atribui a competência para avaliar e criticar a adequação das normas jurídicas, pois, em última instância, ele participa de sua produção. Evidência disso é que os crimes contra o mais elementar dos direitos – a vida – não são julgados por um juiz técnico, mas por um júri popular composto por leigos.

Toda pessoa lida rotineiramente com decisões sobre o certo e o errado e sobre qual é a conduta adequada diante dos dilemas da vida. Por isso, mesmo sendo um homem rústico e nada afeito a sutilezas intelectuais, Sancho baseia seus julgamentos em princípios gerais e abstratos. Seu raciocínio simplista e sua nenhuma formação escolar não impedem de avaliar se as condutas estão de acordo com princípios gerais de justiça, nem de entender que as circunstâncias do caso determinam o que é certo e errado. Como qualquer pessoa, ao focar o contexto concreto, Sancho é capaz de transcendê-lo, pautando suas decisões por princípios que podem ser generalizados. Seu pensamento é, a um só tempo, contextual e universal.

Isso não significa que sua decisão será justa. Mas tampouco a técnica processual garante que as decisões judiciais o sejam. O que nos interessa ressaltar, porém, é que, ao interpretar a lei, deve-se ter sempre em vista que todo indivíduo é também autor do direito que se irá aplicar.

Se o juiz quiser impor suas preferências e valores pessoais à sociedade, violará o pluralismo no qual se baseia a Constituição e, em conseqüência, violará o próprio fundamento de sua função jurisdicional. Quando os especialistas pretendem substituir os cidadãos, o resultado quase sempre é o conhecido fenômeno das leis que não pegam. Ainda que o juiz não seja um autoritário arrogante, mas alguém comprometido com as causas sociais, se ele tratar as partes como seres incapazes e oprimidos, pretendendo emancipá-los por sentença, transformará os cidadãos em clientes dependentes de tutela.

Para que os cidadãos sejam protagonistas do direito não é preciso substituir nem afastar o Judiciário, mas sim que tenham voz, que seus argumentos tenham oportunidade de figurar na esfera pública e sejam levados a sério. Não é o mecanismo processual em si que garante a legitimidade das leis, mas a abertura de canais de acesso e participação no sistema judicial e demais instituições públicas nas quais as leis são produzidas e aplicadas.

Todo indivíduo, ainda que pobre ou discriminado, é capaz de entender e refletir sobre o que é justo. E se reconhece como cidadão quando, autonomamente, reivindica seus direitos e exige reparações contra experiências concretas de desfavorecimento ou opressão. Ainda que sua demanda não seja vencedora, se participar ativamente, já age como ator político, emancipando-se da condição de expectador passivo. Mesmo diante de sentenças desfavoráveis, as pessoas assimilam criticamente as decisões e as devolvem ao próprio Judiciário, sob a forma de novas reivindicações e relações sociais cada vez mais complexas.

O direito é certamente um trabalho de Hércules. Entretanto, não exige superior capacidade cognitiva. O que não pode faltar é aquela disposição de Sancho Pança, de se levar a sério as pretensões e argumentos formulados por todas as partes envolvidas. Só assim o direito pode ser um fluxo de comunicação contínua, por meio do qual a sociedade aprende sobre si mesma e define os valores e liberdades que se pretende defender e afirmar.

Por Damião Azevedo
Fonte: Constituição & Democracia
- UnB

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