Na terra dos Aitolás
O islamismo é importantíssima fonte de identidade contemporânea. Freqüentemente assolado pelo imperialismo europeu do século XIX e depois vítima de tentativa de domínio por parte do nacionalismo pós-colonial, o islamismo indica com sua pujança a força do Oriente Médio em um contexto global. Percebe-se tentativa inusitada, no sentido de se assimilar culturas tradicionais islâmicas a modelos normativos importados, em regime de transposição jurídica que marca o desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo.
Em sentido weberiano, autoridades baseadas na tradição passam a conhecer suposto regime de legitimação centrados na burocracia e na autoridade secular, indicativos de racionalidade que possa ser estranha a meio cultural que se desenvolveu sobre outras premissas e com outros objetivos. Conhecimento rudimentar de cultura islâmica é propedêutica para a compreensão das observações seguintes, que nas entrelinhas problematizam o choque de civilizações, sem que isso signifique adesão à concepção conservadora e ocidentalizante de Samuel Huntington.
Questões culturais decorrentes da inexistência de hermenêutica diatópica, conceito cunhado por Boaventura de Sousa Santos, são potencializadas pela imaginação ocidental, criadora de oriente romanticizado, de acordo com a tese de Edward Said . E do ponto de vista islâmico deve se levar em conta o inusitado que codificações representam, dada origem romano-germânica da redução da normatividade a normas que dialogam em modelo único e sistemático. A história do direito islâmico tem que forçosamente que conviver com influências estrangeiras, especialmente na recepção da legislação européia. A organização de sociedade moldada na tradição islâmica de acordo com contornos normativos ocidentalizantes promove conflito aparentemente irreconciliável. Descrevo, em seguida, parte dessa narrativa, sintetizando o modelo constitucional iraniano.
A constituição vigente do Irã data de 1979 e recebeu emendas significativas em 1989. O preâmbulo é longo, sintetiza a história do país, vincula política e teologia de modo definitivo, refere-se à ira do povo, ao preço pago pela Nação, identifica as linhas gerais da política e da economia, especifica o papel da mulher, do exército, do judiciário, do executivo, das comunicações de massa e dos representantes do povo. Trata-se de exórdio prenhe de reflexões significativas, do ponto de vista da política e da retórica. Principia-se com a lembrança de que a “Constituição da República Islâmica do Irã promove o avanço das instituições culturais, sociais, econômicas e políticas da sociedade iraniana, com base em princípios e normas do islamismo (...)”. Refere-se à revolução islâmica, ao passado de lutas do povo muçulmano, do princípio à vitória. Encerra-se o primeiro parágrafo indicando-se que “agora, no desdobrar dessa grande vitória, nossa Nação, com todos os seus seres, busca a realização”. O texto constitucional iraniano é a complementação normativa da revolução que triunfou em 1979.
O preâmbulo dá conta de que a característica básica da revolução foi a natureza islâmica que a impulsionara. Escreveu-se que “após experimentar um movimento constitucional contrário ao despotismo e um outro contrário ao colonialismo, centrado na luta pela nacionalização do petróleo, o povo muçulmano do Irã aprendeu dessa experiência custosa que a razão óbvia e fundamental desses movimentos fora a ausência de bases ideológicas”. Denuncia-se conspiração norte-americana, contrária aos interesses iranianos. A constituição do Irã denomina essa movimentação americana de “a revolução branca”. Para o texto constitucional iraniano, essa revolução branca consistia em “um passo que tinha como objetivo estabilizar as fundações de um governo despótico, mediante o reforço da dependência política, cultural e econômica do Irã em relação ao imperialismo (...)”. Lembra-se que com o passar do tempo o povo iraniano tomou conhecimento da situação, especialmente devido aos estudos que foram desenvolvidos em mesquitas, centros de estudos religiosos e universidades.
Consignou-se que o povo muçulmano substancializou estímulo para lutar contra o despotismo, desvelando-se caminho verdadeiro para a luta ideológica do Islã, unindo muçulmanos no Irã e fora do país. Ainda de acordo com o preâmbulo da constituição do Irã, “o movimento continuou seu caminho até que finalmente a insatisfação popular e a intensa raiva do povo, causada pelo aumento constante da repressão interna, além da projeção da luta em nível internacional após a exposição do regime pelos líderes religiosos e pelos estudantes militantes, conseguiram balançar violentamente as bases do regime”. Refere-se à publicação de artigo ultrajante na imprensa, o que teria oxigenado a ira do povo. O preâmbulo elogia as mulheres, que teriam participado ativamente do movimento revolucionário.
O texto ainda se refere ao alto preço pago pela Nação. Fala-se de 60.000 mártires e de 100.000 feridos ou incapacitados, a par de danos materiais. Lembra-se que nos dias 12 e 13 de fevereiro de 1979 o mundo teria testemunhado o colapso do regime monárquico. Esse grande sucesso provou ser a vanguarda do governo islâmico. Escreveu-se que “unanimemente o povo iraniano declarou decisão final e firme, por meio de referendo, na República Islâmica, no sentido de se criar um novo sistema político”. Indicou-se que “uma maioria de 98,2% do povo votou por esse sistema”. A teologia informa a ciência política, consignando-se que “na percepção do Islã, o governo não decorre de um interesse de classe, e também não se presta ao domínio de um indivíduo ou de um grupo. Pelo contrário, o governo representa a realização do ideal político de um povo que divide fé e características comuns, valendo-se de uma forma organizada de modo a iniciar um processo de evolução intelectual e ideológica, com vista a um objetivo final, isto é, de se movimentar rumo a Alá”. Declara-se solenemente que “a missão da Constituição é a realização de objetivos ideológicos do movimento revolucionário, e a criação de condições que conduzam ao desenvolvimento do homem, de acordo com os valores nobres e universais do islã”.
Continua o preâmbulo invocando que a constituição iraniana propicia “as bases necessárias para garantir a continuidade da revolução, interna e externamente”. Afirma-se que a política internacional terá como parâmetro a aproximação com outros movimentos populares islâmicos, com o objetivo de alcançar uma comunidade universal única, centrada no Alcorão, garantindo-se a continuidade da luta pela libertação de todos os povos oprimidos do mundo. Garante-se rejeição a todas as formas de “tirania social e intelectual”, bem como de “monopólios econômicos”. Firma-se concepção de que toda a legislação gravitará em torno do Alcorão e do Suna. Por isso, invoca-se que “é absoluta necessidade o exercício de supervisão meticulosa e honesta por acadêmicos justos, piedosos e comprometidos com o Islã”.
A constituição do Irã prevê governo centrado em pessoa justa e sagrada que detenha “as qualificações necessárias e seja reconhecido como líder pelo povo iraniano”. Anota-se explicitamente que “a economia é um meio e não um fim”. Tem-se que a economia deva buscar o crescimento e o desenvolvimento de todos. Afirma-se no preâmbulo da constituição iraniana que a concepção econômica adotada “contrasta com outros sistemas econômicos, nos quais o objetivo é a concentração e a acumulação de riquezas, além da maximização do lucro”. Conseqüentemente, escreveu-se que “a partir desse ponto de vista, o programa econômico do Islã consiste em se garantirem os meios necessários para a emergência das várias capacidades criativas do ser humano. Consubstanciou-se ainda que é dever do governo islâmico proporcionar a todos os cidadãos igualdade e oportunidades apropriadas, propiciando empregos, para que se possa satisfazer as necessidades essenciais, de modo que a trilha do progresso seja assegurada”.
Há excerto no preâmbulo da constituição do Irã que identifica o papel da mulher no referido texto constitucional. Especificou-se que “é natural que as mulheres devam ser beneficiadas por uma ampla gama de argumentos em favor de seus direitos, dada a grande opressão que sofreram durante o regime deposto”. Em seguida consigna-se que “a família é a unidade fundamental da sociedade e o maior centro para o crescimento e para a edificação do ser humano”. Tem-se que é obrigação do governo islâmico propiciar condições para o pleno desenvolvimento dos núcleos familiares. Em passo retórico rico e impressionante o preâmbulo da constituição iraniana assentou que a mulher “também protagoniza papel social pioneiro e torna-se companheira do homem na luta em todas as áreas vitais. Dado o peso das responsabilidades que a mulher assume, o Islã lhe outorga grande valor e nobreza”.
O preâmbulo menciona um exército ideológico. Formatam-se as forças armadas, divididas em Exército da República Islâmica do Irã e em Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos como instrumentos de realização de supremos interesses de Jihad, de guerra santa, por meio da extensão da soberania da lei de Alá em todo o mundo. O judiciário é formado com base em sistema de justiça islâmica, “operado por juízes justos que detenham conhecimento meticuloso das leis islâmicas”. Especifica-se que “esse sistema, por causa de sua natureza essencialmente sensitiva e por conta da necessidade de conformidade ideológica, deve ser livre de qualquer forma de relação não saudável”; e o excerto é fundado em verso corânico que afirma que “quando julgares entre o povo, julgue com justiça”. Ao executivo determina-se trabalho que objetive a criação de uma sociedade islâmica. Os meios de comunicação em massa devem ser orientados para a difusão da cultura islâmica, na continuidade da revolução.
Após o longo preâmbulo o texto constitucional indica que a forma de governo do Irã é uma República Islâmica, na base da eterna crença na soberania da verdade da justiça corânica, com lembrança do referendo de 29 e 30 de março de 1979, quando 98,2% dos eleitores sufragaram a vitória dos princípios revolucionários. São cinco as bases do modelo constitucional iraniano, de fundo substancialmente teológico. Nomeadamente, o monoteísmo, a divina revelação como fonte do direito, o retorno de Alá, a justiça divina na criação e na legislação, entre outros, a exemplo da concepção das ciências e das artes como resultados avançados da experiência humana, além da “negação de todas as formas de opressão”.
O artigo 3º da constituição iraniana elenca os objetivos do Estado, a exemplo da criação de ambiente favorável para o desenvolvimento das virtudes morais, baseadas na fé e na piedade, bem como na luta contra todas as formas de vício e de corrupção. É objetivo do Estado a educação livre e treinamento físico para todos, e em todos os níveis, além de compromisso para com a expansão da educação de nível superior. É compromisso do Estado assegurar as liberdades políticas e sociais junto ao modelo jurídico do país. Propõe-se a se criar sistema administrativo correto, eliminando-se todas as formas de organizações governamentais supérfluas. Os contornos da política externa, o texto constitucional iraniano insiste, tem como base critérios islâmicos, compromisso fraternal com todos os muçulmanos, assim como ilimitado apoio à todos os que lutem pela liberdade no mundo.
Determina-se que todo o modelo jurídico siga critérios islâmicos. O referido paradigma aplica-se absoluta e geralmente em todos os artigos do texto constitucional, bem como em todas as demais leis e regulamentos. Assenta-se que “na República Islâmica do Irã os negócios do país devem ser administrados com base na opinião pública, expressa por meio de eleições, incluindo-se a do Presidente, da Assembléia Consultiva, e os demais membros de conselhos, ou por meio de referendos relativos a matérias especificadas em outros artigos da Constituição”. Por força de inspiração e determinação corânica o modelo constitucional iraniano concebe vários órgãos de consulta. Princípios relativos à comunidade, à independência, à família e à unidade do islã dão o contorno da constituição do Irã.
O islamismo é a religião oficial, princípio que a constituição indica como eterno e imutável. Indicou-se que “o zoroatrismo, o judaísmo e cristianismo iraniano são as únicas minorias religiosas reconhecida e que, nos limites da lei, são livres para o exercício de cultos, ritos e cerimônias, assim como para agir de acordo com modelos próprios em matérias de assuntos pessoais e de educação religiosa”. A língua franca oficial é o persa. E porque a linguagem dos textos corânicos e islâmicos é o árabe, essa língua deverá ser ensinada após o curso elementar, em todas as aulas da escola secundária, e em todas as áreas de estudo. O calendário oficial parte da Hégira, isto é, da fuga do Profeta Maomé de Meca para Medina. A constituição iraniana identifica a bandeira oficial do país.
Há capítulo que anuncia os direitos do povo iraniano. Vedam-se discriminações e privilégios. Admite-se a igualdade perante a lei, com base em critérios islâmicos, que também indicam os direitos a serem desfrutados pelas mulheres. Dignidade humana, liberdade de crença, de imprensa, sigilo da comunicação, liberdade de associação, de reunião, de trabalho, de bem-estar social, de educação, de habitação, direito de não ser preso ilegalmente, acesso ao judiciário, direito a advogado, a sentença passada de acordo com a lei, presunção de inocência, proibição de tortura, são elementos que compõem o cardápio de direitos outorgados pela constituição do Irã. Quanto à cidadania, definiu-se que “a cidadania iraniana é direito indisputável de todo iraniano, o governo não pode suprimi-lo a menos que o interesse requeira e obtenha nacionalidade de outro país”. Ainda, “estrangeiros podem adquirir nacionalidade iraniana nos termos da lei. Essa cidadania poderá ser suprimida se outro Estado aceitar pedido do interessado, no sentido de obter outra cidadania”.
O modelo econômico e financeiro é pormenorizadamente concebido. Vários princípios informam o arquétipo. Entre eles, a conquista das necessidades básicas do povo, relativas a moradia, alimentação, vestuário, higiene, tratamento médico, educação, além de condições adequadas para estabelecimento de núcleo familiar. A economia iraniana é dividida pela constituição em três setores: estatal, cooperativo e privado, todos baseados em planejamento sistemático. O setor estatal inclui a indústria pesada, o comércio externo, a exploração de minerais, bancos, seguros, eletricidade, irrigação em larga escala, rádio, televisão, correios, telégrafos, telefones, aviação, navegação, estradas de rodagem e de ferro, todos administrados pelo Estado. O setor cooperativo inclui companhias de produção e de distribuição, em áreas rurais e urbanas, de acordo com critérios islâmicos. O setor privado alcança a agricultura, o pastoreio, além de setores industriais e comerciais que suplementem as atividades estatais e cooperativas. A propriedade é protegida por lei, na medida em que regimes de propriedade não transcendam aos limites do direito islâmico.
Ainda em relação à propriedade, a constituição do Irã impõe ao Estado a responsabilidade pelo confisco de toda a riqueza acumulada por meios ilegais, agiotagem, usura, usurpação, roubo, jogo, uso inadequado de contratos e transações governamentais, venda de terras não cultivadas ou de outros recursos sujeitos à propriedade pública. Em tema de proteção ambiental, a constituição do Irã disciplina que “a proteção do meio ambiente, o qual as gerações presentes e futuras têm direito (...) é considerada obrigação pública da República Islâmica. E também atividades econômicas que inevitavelmente promovam a poluição do meio ambiente ou causem danos irreparáveis são conseqüentemente proibidas”.
Matéria tributária é tratada de forma muito sumária: “nenhuma forma de tributação pode ser imposta exceto de acordo com a lei”. Escreveu-se ainda que “regras de isenção e de redução serão determinadas por lei”. O orçamento segue regime de lex annua. Há agência nacional de auditagem, que deve providenciar relatórios periódicos.
Na concepção de soberania, de ordem divina, escreveu-se que “a soberania absoluta em relação ao mundo pertence a Deus, e é Ele Quem fez do homem senhor de seu destino social”. E de tal modo, “ninguém pode privar o homem desse direito divino, nem subordiná-lo a direitos adquiridos de indivíduos ou de grupos”. O poder é tripartido, em legislativo, judiciário e executivo, todos sob supervisão de líder religioso. O legislativo centra-se em uma Assembléia Islâmica Consultiva. O juramento de posse dos membros da Assembléia Constituinte é identificado na constituição iraniana, marcado por forte conteúdo de adesão teológica. Prevê-se a suspensão das eleições, em caso de guerra. Tratados internacionais devem ser aprovados pela Assembléia Consultiva, para que tenham vigência e eficácia. A referida Assembléia detém poderes para investigar todos os assuntos de interesse do país, especialmente relativos a empréstimos.
A constituição do Irã veda a lei marcial, embora permita restrições necessárias, em caso de guerra. Há dispositivo que proíbe alterações nos limites do país. Fronteiras podem ser discutidas a qualquer momento. Um Conselho de Guardiões é constituído com o objetivo de examinar a compatibilidade entre a legislação promulgada pela Assembléia Consultiva com os preceitos do islamismo. Esse conselho é composto por seis líderes religiosos e por seis juristas. O mandato dos guardiões é de seis anos. A constituição do Irã disciplina com rigor e pormenor a composição e as competências do Conselho de Guardiões.
Um líder religioso exerce o supremo controle do país. Anotou-se que “aos olhos da lei o líder é igual às demais pessoas do país”. Do líder a constituição iraniana espera formação acadêmica, senso de justiça e de piedade, perspicácia social, prudência, coragem, capacidade de liderança. No caso de grupo de pessoas detendo essas mesmas qualidades, a constituição do Irã confere preferência a quem detenha maior perspicácia em jurisprudência e em questões políticas. O texto constitucional iraniano indica as obrigações e poderes do líder. É ele quem delineia as políticas gerais da República Islâmica do Irã, outorga decretos para referendo popular, exerce o comando supremo das forças armadas, declara a guerra, celebra a paz, indica religiosos, membros do Conselho dos Guardiões e “resolve problemas que não podem ser resolvidos por meios convencionais”, com apoio de um outro Conselho Nacional. Os poderes do líder são delegáveis.
O poder executivo é exercido por um Presidente, que depois do líder exerce a suprema magistratura do país. O mandato é de quatro anos, e o pleito se dá por voto direto. O presidente precisa ser de origem e nacionalidade iranianas, deter capacidade administrativa, passado probo, sinceridade e piedade. O presidente celebra tratados internacionais e aponta seus ministros. O texto constitucional iraniano concebe o exército do país, que não admite estrangeiros. O Corpo da Guarda Islâmica também recebe pormenorizado tratamento constitucional.
O poder judiciário é independente e tem como missão investigar e julgar violação de direitos, promover a justiça, supervisionar a aplicação das leis, prevenir crimes. O chefe do judiciário é apontado pelo líder religioso. Uma Suprema Corte dá assento a magistrados e ao procurador-geral, indicados pelo chefe do judiciário, para um mandato de cinco anos. Os julgamentos devem ser públicos, as decisões fundamentadas e o princípio da reserva legal respeitado. O direito iraniano conhece tribunais administrativos, a serem definidos em lei, e com competência para matérias de administração pública.
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur
Em sentido weberiano, autoridades baseadas na tradição passam a conhecer suposto regime de legitimação centrados na burocracia e na autoridade secular, indicativos de racionalidade que possa ser estranha a meio cultural que se desenvolveu sobre outras premissas e com outros objetivos. Conhecimento rudimentar de cultura islâmica é propedêutica para a compreensão das observações seguintes, que nas entrelinhas problematizam o choque de civilizações, sem que isso signifique adesão à concepção conservadora e ocidentalizante de Samuel Huntington.
Questões culturais decorrentes da inexistência de hermenêutica diatópica, conceito cunhado por Boaventura de Sousa Santos, são potencializadas pela imaginação ocidental, criadora de oriente romanticizado, de acordo com a tese de Edward Said . E do ponto de vista islâmico deve se levar em conta o inusitado que codificações representam, dada origem romano-germânica da redução da normatividade a normas que dialogam em modelo único e sistemático. A história do direito islâmico tem que forçosamente que conviver com influências estrangeiras, especialmente na recepção da legislação européia. A organização de sociedade moldada na tradição islâmica de acordo com contornos normativos ocidentalizantes promove conflito aparentemente irreconciliável. Descrevo, em seguida, parte dessa narrativa, sintetizando o modelo constitucional iraniano.
A constituição vigente do Irã data de 1979 e recebeu emendas significativas em 1989. O preâmbulo é longo, sintetiza a história do país, vincula política e teologia de modo definitivo, refere-se à ira do povo, ao preço pago pela Nação, identifica as linhas gerais da política e da economia, especifica o papel da mulher, do exército, do judiciário, do executivo, das comunicações de massa e dos representantes do povo. Trata-se de exórdio prenhe de reflexões significativas, do ponto de vista da política e da retórica. Principia-se com a lembrança de que a “Constituição da República Islâmica do Irã promove o avanço das instituições culturais, sociais, econômicas e políticas da sociedade iraniana, com base em princípios e normas do islamismo (...)”. Refere-se à revolução islâmica, ao passado de lutas do povo muçulmano, do princípio à vitória. Encerra-se o primeiro parágrafo indicando-se que “agora, no desdobrar dessa grande vitória, nossa Nação, com todos os seus seres, busca a realização”. O texto constitucional iraniano é a complementação normativa da revolução que triunfou em 1979.
O preâmbulo dá conta de que a característica básica da revolução foi a natureza islâmica que a impulsionara. Escreveu-se que “após experimentar um movimento constitucional contrário ao despotismo e um outro contrário ao colonialismo, centrado na luta pela nacionalização do petróleo, o povo muçulmano do Irã aprendeu dessa experiência custosa que a razão óbvia e fundamental desses movimentos fora a ausência de bases ideológicas”. Denuncia-se conspiração norte-americana, contrária aos interesses iranianos. A constituição do Irã denomina essa movimentação americana de “a revolução branca”. Para o texto constitucional iraniano, essa revolução branca consistia em “um passo que tinha como objetivo estabilizar as fundações de um governo despótico, mediante o reforço da dependência política, cultural e econômica do Irã em relação ao imperialismo (...)”. Lembra-se que com o passar do tempo o povo iraniano tomou conhecimento da situação, especialmente devido aos estudos que foram desenvolvidos em mesquitas, centros de estudos religiosos e universidades.
Consignou-se que o povo muçulmano substancializou estímulo para lutar contra o despotismo, desvelando-se caminho verdadeiro para a luta ideológica do Islã, unindo muçulmanos no Irã e fora do país. Ainda de acordo com o preâmbulo da constituição do Irã, “o movimento continuou seu caminho até que finalmente a insatisfação popular e a intensa raiva do povo, causada pelo aumento constante da repressão interna, além da projeção da luta em nível internacional após a exposição do regime pelos líderes religiosos e pelos estudantes militantes, conseguiram balançar violentamente as bases do regime”. Refere-se à publicação de artigo ultrajante na imprensa, o que teria oxigenado a ira do povo. O preâmbulo elogia as mulheres, que teriam participado ativamente do movimento revolucionário.
O texto ainda se refere ao alto preço pago pela Nação. Fala-se de 60.000 mártires e de 100.000 feridos ou incapacitados, a par de danos materiais. Lembra-se que nos dias 12 e 13 de fevereiro de 1979 o mundo teria testemunhado o colapso do regime monárquico. Esse grande sucesso provou ser a vanguarda do governo islâmico. Escreveu-se que “unanimemente o povo iraniano declarou decisão final e firme, por meio de referendo, na República Islâmica, no sentido de se criar um novo sistema político”. Indicou-se que “uma maioria de 98,2% do povo votou por esse sistema”. A teologia informa a ciência política, consignando-se que “na percepção do Islã, o governo não decorre de um interesse de classe, e também não se presta ao domínio de um indivíduo ou de um grupo. Pelo contrário, o governo representa a realização do ideal político de um povo que divide fé e características comuns, valendo-se de uma forma organizada de modo a iniciar um processo de evolução intelectual e ideológica, com vista a um objetivo final, isto é, de se movimentar rumo a Alá”. Declara-se solenemente que “a missão da Constituição é a realização de objetivos ideológicos do movimento revolucionário, e a criação de condições que conduzam ao desenvolvimento do homem, de acordo com os valores nobres e universais do islã”.
Continua o preâmbulo invocando que a constituição iraniana propicia “as bases necessárias para garantir a continuidade da revolução, interna e externamente”. Afirma-se que a política internacional terá como parâmetro a aproximação com outros movimentos populares islâmicos, com o objetivo de alcançar uma comunidade universal única, centrada no Alcorão, garantindo-se a continuidade da luta pela libertação de todos os povos oprimidos do mundo. Garante-se rejeição a todas as formas de “tirania social e intelectual”, bem como de “monopólios econômicos”. Firma-se concepção de que toda a legislação gravitará em torno do Alcorão e do Suna. Por isso, invoca-se que “é absoluta necessidade o exercício de supervisão meticulosa e honesta por acadêmicos justos, piedosos e comprometidos com o Islã”.
A constituição do Irã prevê governo centrado em pessoa justa e sagrada que detenha “as qualificações necessárias e seja reconhecido como líder pelo povo iraniano”. Anota-se explicitamente que “a economia é um meio e não um fim”. Tem-se que a economia deva buscar o crescimento e o desenvolvimento de todos. Afirma-se no preâmbulo da constituição iraniana que a concepção econômica adotada “contrasta com outros sistemas econômicos, nos quais o objetivo é a concentração e a acumulação de riquezas, além da maximização do lucro”. Conseqüentemente, escreveu-se que “a partir desse ponto de vista, o programa econômico do Islã consiste em se garantirem os meios necessários para a emergência das várias capacidades criativas do ser humano. Consubstanciou-se ainda que é dever do governo islâmico proporcionar a todos os cidadãos igualdade e oportunidades apropriadas, propiciando empregos, para que se possa satisfazer as necessidades essenciais, de modo que a trilha do progresso seja assegurada”.
Há excerto no preâmbulo da constituição do Irã que identifica o papel da mulher no referido texto constitucional. Especificou-se que “é natural que as mulheres devam ser beneficiadas por uma ampla gama de argumentos em favor de seus direitos, dada a grande opressão que sofreram durante o regime deposto”. Em seguida consigna-se que “a família é a unidade fundamental da sociedade e o maior centro para o crescimento e para a edificação do ser humano”. Tem-se que é obrigação do governo islâmico propiciar condições para o pleno desenvolvimento dos núcleos familiares. Em passo retórico rico e impressionante o preâmbulo da constituição iraniana assentou que a mulher “também protagoniza papel social pioneiro e torna-se companheira do homem na luta em todas as áreas vitais. Dado o peso das responsabilidades que a mulher assume, o Islã lhe outorga grande valor e nobreza”.
O preâmbulo menciona um exército ideológico. Formatam-se as forças armadas, divididas em Exército da República Islâmica do Irã e em Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos como instrumentos de realização de supremos interesses de Jihad, de guerra santa, por meio da extensão da soberania da lei de Alá em todo o mundo. O judiciário é formado com base em sistema de justiça islâmica, “operado por juízes justos que detenham conhecimento meticuloso das leis islâmicas”. Especifica-se que “esse sistema, por causa de sua natureza essencialmente sensitiva e por conta da necessidade de conformidade ideológica, deve ser livre de qualquer forma de relação não saudável”; e o excerto é fundado em verso corânico que afirma que “quando julgares entre o povo, julgue com justiça”. Ao executivo determina-se trabalho que objetive a criação de uma sociedade islâmica. Os meios de comunicação em massa devem ser orientados para a difusão da cultura islâmica, na continuidade da revolução.
Após o longo preâmbulo o texto constitucional indica que a forma de governo do Irã é uma República Islâmica, na base da eterna crença na soberania da verdade da justiça corânica, com lembrança do referendo de 29 e 30 de março de 1979, quando 98,2% dos eleitores sufragaram a vitória dos princípios revolucionários. São cinco as bases do modelo constitucional iraniano, de fundo substancialmente teológico. Nomeadamente, o monoteísmo, a divina revelação como fonte do direito, o retorno de Alá, a justiça divina na criação e na legislação, entre outros, a exemplo da concepção das ciências e das artes como resultados avançados da experiência humana, além da “negação de todas as formas de opressão”.
O artigo 3º da constituição iraniana elenca os objetivos do Estado, a exemplo da criação de ambiente favorável para o desenvolvimento das virtudes morais, baseadas na fé e na piedade, bem como na luta contra todas as formas de vício e de corrupção. É objetivo do Estado a educação livre e treinamento físico para todos, e em todos os níveis, além de compromisso para com a expansão da educação de nível superior. É compromisso do Estado assegurar as liberdades políticas e sociais junto ao modelo jurídico do país. Propõe-se a se criar sistema administrativo correto, eliminando-se todas as formas de organizações governamentais supérfluas. Os contornos da política externa, o texto constitucional iraniano insiste, tem como base critérios islâmicos, compromisso fraternal com todos os muçulmanos, assim como ilimitado apoio à todos os que lutem pela liberdade no mundo.
Determina-se que todo o modelo jurídico siga critérios islâmicos. O referido paradigma aplica-se absoluta e geralmente em todos os artigos do texto constitucional, bem como em todas as demais leis e regulamentos. Assenta-se que “na República Islâmica do Irã os negócios do país devem ser administrados com base na opinião pública, expressa por meio de eleições, incluindo-se a do Presidente, da Assembléia Consultiva, e os demais membros de conselhos, ou por meio de referendos relativos a matérias especificadas em outros artigos da Constituição”. Por força de inspiração e determinação corânica o modelo constitucional iraniano concebe vários órgãos de consulta. Princípios relativos à comunidade, à independência, à família e à unidade do islã dão o contorno da constituição do Irã.
O islamismo é a religião oficial, princípio que a constituição indica como eterno e imutável. Indicou-se que “o zoroatrismo, o judaísmo e cristianismo iraniano são as únicas minorias religiosas reconhecida e que, nos limites da lei, são livres para o exercício de cultos, ritos e cerimônias, assim como para agir de acordo com modelos próprios em matérias de assuntos pessoais e de educação religiosa”. A língua franca oficial é o persa. E porque a linguagem dos textos corânicos e islâmicos é o árabe, essa língua deverá ser ensinada após o curso elementar, em todas as aulas da escola secundária, e em todas as áreas de estudo. O calendário oficial parte da Hégira, isto é, da fuga do Profeta Maomé de Meca para Medina. A constituição iraniana identifica a bandeira oficial do país.
Há capítulo que anuncia os direitos do povo iraniano. Vedam-se discriminações e privilégios. Admite-se a igualdade perante a lei, com base em critérios islâmicos, que também indicam os direitos a serem desfrutados pelas mulheres. Dignidade humana, liberdade de crença, de imprensa, sigilo da comunicação, liberdade de associação, de reunião, de trabalho, de bem-estar social, de educação, de habitação, direito de não ser preso ilegalmente, acesso ao judiciário, direito a advogado, a sentença passada de acordo com a lei, presunção de inocência, proibição de tortura, são elementos que compõem o cardápio de direitos outorgados pela constituição do Irã. Quanto à cidadania, definiu-se que “a cidadania iraniana é direito indisputável de todo iraniano, o governo não pode suprimi-lo a menos que o interesse requeira e obtenha nacionalidade de outro país”. Ainda, “estrangeiros podem adquirir nacionalidade iraniana nos termos da lei. Essa cidadania poderá ser suprimida se outro Estado aceitar pedido do interessado, no sentido de obter outra cidadania”.
O modelo econômico e financeiro é pormenorizadamente concebido. Vários princípios informam o arquétipo. Entre eles, a conquista das necessidades básicas do povo, relativas a moradia, alimentação, vestuário, higiene, tratamento médico, educação, além de condições adequadas para estabelecimento de núcleo familiar. A economia iraniana é dividida pela constituição em três setores: estatal, cooperativo e privado, todos baseados em planejamento sistemático. O setor estatal inclui a indústria pesada, o comércio externo, a exploração de minerais, bancos, seguros, eletricidade, irrigação em larga escala, rádio, televisão, correios, telégrafos, telefones, aviação, navegação, estradas de rodagem e de ferro, todos administrados pelo Estado. O setor cooperativo inclui companhias de produção e de distribuição, em áreas rurais e urbanas, de acordo com critérios islâmicos. O setor privado alcança a agricultura, o pastoreio, além de setores industriais e comerciais que suplementem as atividades estatais e cooperativas. A propriedade é protegida por lei, na medida em que regimes de propriedade não transcendam aos limites do direito islâmico.
Ainda em relação à propriedade, a constituição do Irã impõe ao Estado a responsabilidade pelo confisco de toda a riqueza acumulada por meios ilegais, agiotagem, usura, usurpação, roubo, jogo, uso inadequado de contratos e transações governamentais, venda de terras não cultivadas ou de outros recursos sujeitos à propriedade pública. Em tema de proteção ambiental, a constituição do Irã disciplina que “a proteção do meio ambiente, o qual as gerações presentes e futuras têm direito (...) é considerada obrigação pública da República Islâmica. E também atividades econômicas que inevitavelmente promovam a poluição do meio ambiente ou causem danos irreparáveis são conseqüentemente proibidas”.
Matéria tributária é tratada de forma muito sumária: “nenhuma forma de tributação pode ser imposta exceto de acordo com a lei”. Escreveu-se ainda que “regras de isenção e de redução serão determinadas por lei”. O orçamento segue regime de lex annua. Há agência nacional de auditagem, que deve providenciar relatórios periódicos.
Na concepção de soberania, de ordem divina, escreveu-se que “a soberania absoluta em relação ao mundo pertence a Deus, e é Ele Quem fez do homem senhor de seu destino social”. E de tal modo, “ninguém pode privar o homem desse direito divino, nem subordiná-lo a direitos adquiridos de indivíduos ou de grupos”. O poder é tripartido, em legislativo, judiciário e executivo, todos sob supervisão de líder religioso. O legislativo centra-se em uma Assembléia Islâmica Consultiva. O juramento de posse dos membros da Assembléia Constituinte é identificado na constituição iraniana, marcado por forte conteúdo de adesão teológica. Prevê-se a suspensão das eleições, em caso de guerra. Tratados internacionais devem ser aprovados pela Assembléia Consultiva, para que tenham vigência e eficácia. A referida Assembléia detém poderes para investigar todos os assuntos de interesse do país, especialmente relativos a empréstimos.
A constituição do Irã veda a lei marcial, embora permita restrições necessárias, em caso de guerra. Há dispositivo que proíbe alterações nos limites do país. Fronteiras podem ser discutidas a qualquer momento. Um Conselho de Guardiões é constituído com o objetivo de examinar a compatibilidade entre a legislação promulgada pela Assembléia Consultiva com os preceitos do islamismo. Esse conselho é composto por seis líderes religiosos e por seis juristas. O mandato dos guardiões é de seis anos. A constituição do Irã disciplina com rigor e pormenor a composição e as competências do Conselho de Guardiões.
Um líder religioso exerce o supremo controle do país. Anotou-se que “aos olhos da lei o líder é igual às demais pessoas do país”. Do líder a constituição iraniana espera formação acadêmica, senso de justiça e de piedade, perspicácia social, prudência, coragem, capacidade de liderança. No caso de grupo de pessoas detendo essas mesmas qualidades, a constituição do Irã confere preferência a quem detenha maior perspicácia em jurisprudência e em questões políticas. O texto constitucional iraniano indica as obrigações e poderes do líder. É ele quem delineia as políticas gerais da República Islâmica do Irã, outorga decretos para referendo popular, exerce o comando supremo das forças armadas, declara a guerra, celebra a paz, indica religiosos, membros do Conselho dos Guardiões e “resolve problemas que não podem ser resolvidos por meios convencionais”, com apoio de um outro Conselho Nacional. Os poderes do líder são delegáveis.
O poder executivo é exercido por um Presidente, que depois do líder exerce a suprema magistratura do país. O mandato é de quatro anos, e o pleito se dá por voto direto. O presidente precisa ser de origem e nacionalidade iranianas, deter capacidade administrativa, passado probo, sinceridade e piedade. O presidente celebra tratados internacionais e aponta seus ministros. O texto constitucional iraniano concebe o exército do país, que não admite estrangeiros. O Corpo da Guarda Islâmica também recebe pormenorizado tratamento constitucional.
O poder judiciário é independente e tem como missão investigar e julgar violação de direitos, promover a justiça, supervisionar a aplicação das leis, prevenir crimes. O chefe do judiciário é apontado pelo líder religioso. Uma Suprema Corte dá assento a magistrados e ao procurador-geral, indicados pelo chefe do judiciário, para um mandato de cinco anos. Os julgamentos devem ser públicos, as decisões fundamentadas e o princípio da reserva legal respeitado. O direito iraniano conhece tribunais administrativos, a serem definidos em lei, e com competência para matérias de administração pública.
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur
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