Lá também acontece...
Nas últimas sete semanas, Elena Kagan, a recém-empossada ocupante do posto de 112º membro da Suprema Corte dos Estados Unidos, tem experimentado as benesses e agruras do que é estar entre os nove juízes da mais alta corte de Justiça do país. Antes disso, a ex-reitora da Escola de Direito da Universidade Harvard e ex-advogada-geral dos EUA enfrentou a aspereza da sabatina dos senadores e a tensão dos momentos que precederam sua confirmação, por voto majoritário, no cargo de juíza associada da Suprema Corte. Em paralelo, teve sua vida pregressa esmiuçada pela imprensa, e cada passo de sua trajetória profissional revisto por analistas.
Nada passou batido, nem mesmo um texto de sua autoria, de quase 16 anos atrás, desencavado inicialmente pela reportagem da publicação britânica The Economist, em que Elena Kagan criticava o processo de escolha de juízes da Suprema Corte. Kagan resenhou em um artigo acadêmico, na época, que a sabatina submetida aos aspirantes ao cargo pelos senadores assumira “um ar de vacuidade e de farsa”. Tanto os senadores eram evasivos em fazer perguntas francas e sem rodeios quanto a candidata da vez, também uma mulher, a juíza Ruth Bader Ginsburg, indicada por Bill Clinton em 1993, abria mão de responder com objetividade.
Mais de 15 anos depois, agora colegas de tribunal, Ginsburg apadrinhou Kagan em um dos ritos exigidos pelo posto, seu “debut social”, há uma semana, na noite de Washington, na estreia de uma montagem da ópera Um baile de máscaras, do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813 -1901). Kagan foi convidada por Ginsburg, e a presença das juízas foi amplamente repercutida pela imprensa da capital federal assim como o jantar pós-apresentação na casa do embaixador italiano, que contou com a presença do diretor-geral da montagem, o tenor Plácido Domingo. No artigo acadêmico mencionado pela The Economist, a “scholar” Elena Kagan ironizava a brandura com que os senadores trataram Ruth Bader Ginsburg, clamando por uma volta do clima inquisitorial enfrentado pelo juiz Robert Bork em 1987. “Vamos trazer de volta o tipo de cozimento a que foi submetido o juiz Robert Bork em 1987”, escreveu, em 1995, a então professora de Direito. Bork não se intimidou com os senadores, sendo sincero sobre sua visão em relação a temas controversos. O juiz teve sua nomeação rejeitada pelo Senado à época.
Indicada em maio ao posto pelo presidente Barack Obama, a jurista Elena Kagan assumiu a vaga aberta com a aposentadoria do veterano John Paul Stevens, considerado, por comentadores de Justiça nos EUA, o líder da ala liberal da Suprema Corte. Nos três dias de sabatina no Senado, Elena Kagan, ironicamente, saiu-se mais ao estilo de Ruth Bader Ginsburg do que do juiz Robert Bork, seguindo a tradição dos magistrados aprovados pelo crivo dos senadores de assumir uma certa discrição no que toca a opiniões muito pessoais. Kagan desconversou quando questionada sobre temas como o direito constitucional de portar armas, aborto ou ainda sobre se terroristas também dispõem da garantia de serem comunicados da prerrogativa de se permanecer calado quando rendidos por autoridades policiais.
O Comitê Jurídico do Senado também a arguiu sobre o papel desempenhado pela Suprema Corte na polêmica vitória de George W. Bush sobre Al Gore nas eleições presidenciais de 2000. A respeito de quando é conveniente e necessário a alta corte se envolver em eleições controversas, Kagan afirmou que uma questão desse porte deveria ser respondida somente após sua confirmação e apenas se algo dessa natureza voltasse a acontecer.
A imprecisão de algumas de suas respostas deixou impaciente parte dos senadores que participavam da sessão de sabatina. O momento mais tenso foi promovido por senadores republicanos quando a questionaram, com insistência, sobre uma polêmica decisão na época em que Kagan era decana em Harvard, quando ela proibiu que recrutas usassem salas e escritórios da Faculdade de Direito. Teria sido uma retaliação da então reitora à política de banimento de homossexuais das forças armadas. O que seria uma explícita extrapolação das responsabilidades do cargo de reitora. Kagan justificou que entendeu o banimento como injusto e se viu numa situação delicada ao tentar conciliar a política antidiscriminatória de Harvard com a disposição federal que exige de universidades que recebem qualquer tipo de financiamento do governo o acesso irrestrito a militares. Sua resposta não convenceu os senadores.
Polarização política
O tema em questão é a mais alta corte federal dos Estados Unidos, mas a pauta é quase que essencialmente política. A indicação de Elena Kagan pelo presidente Obama personifica, para comentadores em todo o país, mais um aspecto da guerra cultural que toma curso nos EUA e que também reverbera na Suprema Corte. A escolha da ex-decana de Harvard e ex-advogada-geral dos Estados Unidos teria sido essencialmente estratégica, insiste a imprensa daqui, uma vez que a aposentadoria do líder do grupo liberal da Suprema Corte, John Paul Stevens, acentuaria a vantagem da ala conservadora, liderada pelo Chefe de Justiça (o presidente do tribunal) John Roberts. A minoria liberal é constituída por quatro juízes indicados por Clinton e Obama, e a maioria conservadora por cinco juízes nomeados por Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush, presidentes republicanos. O peso da política não se restringe à origem da indicação. Em temas polêmicos, geralmente os dois grupos votam em oposição e em bloco.
O historiador da Universidade de Cambridge, David G. Garrow, que estuda relações entre política e o comportamento da Justiça, afirmou ao The New York Times, no início deste mês, em reportagem que avaliava o primeiro mês de Kagan no novo posto, que a composição da alta corte, cada vez mais, tem mimetizado a atuação do Congresso Federal. E que a polarização política também se estende aos funcionários e conselheiros que servem aos juízes.
Estudos empíricos promovidos por universidades tentam avaliar o quanto o comprometimento político influencia o sistema de Justiça nos Estados Unidos. Uma destas pesquisas, publicada em 2008 pela DePaul Law Reviews, a revista de lei e Justiça da Universidade DePaul, de Chicago, mapeou a presença de servidores da alta corte que se declaram democratas ou republicanos e as prováveis implicações que esse caráter de filiação partidária exerce no funcionamento do tribunal e nas decisões judiciais.
De forma geral, a politização ou, pelo menos, a percepção de que a Suprema Corte se orienta, em demasia, por modelos políticos e partidários é prejudical para todo o sistema de Justiça do país, avaliam especialistas e docentes da área de Direito nos Estados Unidos. O fato de Elena Kagan ser uma jurista profissional, de jamais ter sido juíza antes da nomeação e ter trabalhado para a administração do presidente Bill Clinton e para o atual vice-presidente Joe Biden quando este era senador são, para seus críticos, pontos de fragilidade em sua nomeação e ascensão ao cargo.
A exceção da pauta política são as discussões sobre os casos os quais Elena Kagan terá que se abster inicialmente de julgar como juíza associada da Suprema Corte, em razão de sua recente atividade como advogada-geral dos EUA.
No antigo cargo, ela advogou em muitos desses processos, o que a colocaria numa posição delicada de conflito de interesse e ética profissional. Mesmo veículos especializados como o National Law Journal e o blog de Justiça do The Wall Street Journal, que adiantaram a informação de que Kagan estaria impossibilitada de participar de alguns casos, se surpreenderam com a quantidade de processos os quais ela avisou que não poderia tomar parte. São 21 ao todo. Metade dos casos que a a alta corte federal irá julgar no próximo mandato que entrará em vigência.
Por Rafael Baliardo
Fonte: ConJur
Nas últimas sete semanas, Elena Kagan, a recém-empossada ocupante do posto de 112º membro da Suprema Corte dos Estados Unidos, tem experimentado as benesses e agruras do que é estar entre os nove juízes da mais alta corte de Justiça do país. Antes disso, a ex-reitora da Escola de Direito da Universidade Harvard e ex-advogada-geral dos EUA enfrentou a aspereza da sabatina dos senadores e a tensão dos momentos que precederam sua confirmação, por voto majoritário, no cargo de juíza associada da Suprema Corte. Em paralelo, teve sua vida pregressa esmiuçada pela imprensa, e cada passo de sua trajetória profissional revisto por analistas.
Nada passou batido, nem mesmo um texto de sua autoria, de quase 16 anos atrás, desencavado inicialmente pela reportagem da publicação britânica The Economist, em que Elena Kagan criticava o processo de escolha de juízes da Suprema Corte. Kagan resenhou em um artigo acadêmico, na época, que a sabatina submetida aos aspirantes ao cargo pelos senadores assumira “um ar de vacuidade e de farsa”. Tanto os senadores eram evasivos em fazer perguntas francas e sem rodeios quanto a candidata da vez, também uma mulher, a juíza Ruth Bader Ginsburg, indicada por Bill Clinton em 1993, abria mão de responder com objetividade.
Mais de 15 anos depois, agora colegas de tribunal, Ginsburg apadrinhou Kagan em um dos ritos exigidos pelo posto, seu “debut social”, há uma semana, na noite de Washington, na estreia de uma montagem da ópera Um baile de máscaras, do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813 -1901). Kagan foi convidada por Ginsburg, e a presença das juízas foi amplamente repercutida pela imprensa da capital federal assim como o jantar pós-apresentação na casa do embaixador italiano, que contou com a presença do diretor-geral da montagem, o tenor Plácido Domingo. No artigo acadêmico mencionado pela The Economist, a “scholar” Elena Kagan ironizava a brandura com que os senadores trataram Ruth Bader Ginsburg, clamando por uma volta do clima inquisitorial enfrentado pelo juiz Robert Bork em 1987. “Vamos trazer de volta o tipo de cozimento a que foi submetido o juiz Robert Bork em 1987”, escreveu, em 1995, a então professora de Direito. Bork não se intimidou com os senadores, sendo sincero sobre sua visão em relação a temas controversos. O juiz teve sua nomeação rejeitada pelo Senado à época.
Indicada em maio ao posto pelo presidente Barack Obama, a jurista Elena Kagan assumiu a vaga aberta com a aposentadoria do veterano John Paul Stevens, considerado, por comentadores de Justiça nos EUA, o líder da ala liberal da Suprema Corte. Nos três dias de sabatina no Senado, Elena Kagan, ironicamente, saiu-se mais ao estilo de Ruth Bader Ginsburg do que do juiz Robert Bork, seguindo a tradição dos magistrados aprovados pelo crivo dos senadores de assumir uma certa discrição no que toca a opiniões muito pessoais. Kagan desconversou quando questionada sobre temas como o direito constitucional de portar armas, aborto ou ainda sobre se terroristas também dispõem da garantia de serem comunicados da prerrogativa de se permanecer calado quando rendidos por autoridades policiais.
O Comitê Jurídico do Senado também a arguiu sobre o papel desempenhado pela Suprema Corte na polêmica vitória de George W. Bush sobre Al Gore nas eleições presidenciais de 2000. A respeito de quando é conveniente e necessário a alta corte se envolver em eleições controversas, Kagan afirmou que uma questão desse porte deveria ser respondida somente após sua confirmação e apenas se algo dessa natureza voltasse a acontecer.
A imprecisão de algumas de suas respostas deixou impaciente parte dos senadores que participavam da sessão de sabatina. O momento mais tenso foi promovido por senadores republicanos quando a questionaram, com insistência, sobre uma polêmica decisão na época em que Kagan era decana em Harvard, quando ela proibiu que recrutas usassem salas e escritórios da Faculdade de Direito. Teria sido uma retaliação da então reitora à política de banimento de homossexuais das forças armadas. O que seria uma explícita extrapolação das responsabilidades do cargo de reitora. Kagan justificou que entendeu o banimento como injusto e se viu numa situação delicada ao tentar conciliar a política antidiscriminatória de Harvard com a disposição federal que exige de universidades que recebem qualquer tipo de financiamento do governo o acesso irrestrito a militares. Sua resposta não convenceu os senadores.
Polarização política
O tema em questão é a mais alta corte federal dos Estados Unidos, mas a pauta é quase que essencialmente política. A indicação de Elena Kagan pelo presidente Obama personifica, para comentadores em todo o país, mais um aspecto da guerra cultural que toma curso nos EUA e que também reverbera na Suprema Corte. A escolha da ex-decana de Harvard e ex-advogada-geral dos Estados Unidos teria sido essencialmente estratégica, insiste a imprensa daqui, uma vez que a aposentadoria do líder do grupo liberal da Suprema Corte, John Paul Stevens, acentuaria a vantagem da ala conservadora, liderada pelo Chefe de Justiça (o presidente do tribunal) John Roberts. A minoria liberal é constituída por quatro juízes indicados por Clinton e Obama, e a maioria conservadora por cinco juízes nomeados por Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush, presidentes republicanos. O peso da política não se restringe à origem da indicação. Em temas polêmicos, geralmente os dois grupos votam em oposição e em bloco.
O historiador da Universidade de Cambridge, David G. Garrow, que estuda relações entre política e o comportamento da Justiça, afirmou ao The New York Times, no início deste mês, em reportagem que avaliava o primeiro mês de Kagan no novo posto, que a composição da alta corte, cada vez mais, tem mimetizado a atuação do Congresso Federal. E que a polarização política também se estende aos funcionários e conselheiros que servem aos juízes.
Estudos empíricos promovidos por universidades tentam avaliar o quanto o comprometimento político influencia o sistema de Justiça nos Estados Unidos. Uma destas pesquisas, publicada em 2008 pela DePaul Law Reviews, a revista de lei e Justiça da Universidade DePaul, de Chicago, mapeou a presença de servidores da alta corte que se declaram democratas ou republicanos e as prováveis implicações que esse caráter de filiação partidária exerce no funcionamento do tribunal e nas decisões judiciais.
De forma geral, a politização ou, pelo menos, a percepção de que a Suprema Corte se orienta, em demasia, por modelos políticos e partidários é prejudical para todo o sistema de Justiça do país, avaliam especialistas e docentes da área de Direito nos Estados Unidos. O fato de Elena Kagan ser uma jurista profissional, de jamais ter sido juíza antes da nomeação e ter trabalhado para a administração do presidente Bill Clinton e para o atual vice-presidente Joe Biden quando este era senador são, para seus críticos, pontos de fragilidade em sua nomeação e ascensão ao cargo.
A exceção da pauta política são as discussões sobre os casos os quais Elena Kagan terá que se abster inicialmente de julgar como juíza associada da Suprema Corte, em razão de sua recente atividade como advogada-geral dos EUA.
No antigo cargo, ela advogou em muitos desses processos, o que a colocaria numa posição delicada de conflito de interesse e ética profissional. Mesmo veículos especializados como o National Law Journal e o blog de Justiça do The Wall Street Journal, que adiantaram a informação de que Kagan estaria impossibilitada de participar de alguns casos, se surpreenderam com a quantidade de processos os quais ela avisou que não poderia tomar parte. São 21 ao todo. Metade dos casos que a a alta corte federal irá julgar no próximo mandato que entrará em vigência.
Por Rafael Baliardo
Fonte: ConJur
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