domingo, 5 de setembro de 2010

Constituição espanhola limita prisão preventiva

Na terra de Cervantes
A Espanha matiza amálgama cultural intenso que suscita concepção limite de existência de Nação sem Estado, a exemplo da Catalunha, cuja identidade apartada do castelhano convencional não é invenção separatista. Embora européia, mediterrânea e hispânica, a Catalunha alcança nacionalismo inusitado, que não se baseia em regime de secessão, porém em concepção alternativa de Estado. Fala-se de uma geometria variável, capaz de conciliar o respeito pelo Estado espanhol herdado historicamente, a autonomia crescente das instituições catalãs na administração das questões públicas e a integração tanto da Espanha como da Catalunya numa entidade maior, a Europa (...) (Manuel Castells, O Poder da Identidade, São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 68). Outras circunstâncias ainda se evidenciam, de maior comprovação de problemas fáticos e empíricos, dos quais a questão dos povos bascos é exemplo eloquente. São vários grupos humanos, de distintas tradições, que se colocam sob o abrigo (ou sob a ameaça) de texto constitucional único.

A constituição da Espanha
parte de preâmbulo que indica que a Nação espanhola, desejando estabelecer a justiça, a liberdade e a segurança, bem como a promoção do bem estar de todos quantos a integram, no uso de sua soberania, proclama a vontade de, entre outros, garantir a convivência democrática dentro da Constituição e das leis, conforme uma ordem econômica e social justa. Ordem econômica e justiça social são os pilares do texto constitucional que se concebeu, por meio do qual ao elemento econômico reservou-se posição fundante. Garante-se o império da lei como expressão da vontade popular. Adotou-se sem restrições o planisfério conceitual oitocentista, vinculativo da lei enquanto expressão da maioria, referencial estruturante do liberalismo constitucional. A questão das minorias étnicas (bascos e catalães) toca o próprio preâmbulo, na medida em que se declara o objetivo de se proteger todos os espanhóis e povos da Espanha em relação ao exercício dos direitos humanos, de suas culturas e tradições, línguas e instituições. Protesta-se pela promoção do progresso da cultura e da economia, com o desiderato de se garantir a todos qualidade de vida marcada pela dignidade. Busca-se a consecução de sociedade democrática avançada, marcada pela colaboração em relação ao fortalecimento das relações pacíficas e da aproximação eficaz entre todos os povos da terra. Trata-se de preâmbulo longo, que identifica os referenciais hermenêuticos do texto constitucional espanhol.

Define-se a Espanha como um Estado social e democrático de direito, que propugna como valores superiores ao ordenamento jurídico a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo político. Centra-se a soberania nacional no próprio povo espanhol, indicando-se que do povo emanam os poderes do Estado. A carta política espanhola dá ao país forma de monarquia parlamentarista. Determina-se que a constituição se fundamenta na unidade indissolúvel da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, reconhecendo-se e garantindo-se o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram, bem como a solidariedade entre todas essas nacionalidades e regiões. O texto volta-se contra o separatismo basco e catalão, proclamando a unidade indissolúvel da Nação, embora reconhecendo autonomias, conquanto que as vinculando à solidariedade que se busca. Indica-se o castelhano como língua oficial, outorgando-se a todos os espanhóis o dever de conhecê-la e o direito de a usá-la. Às demais línguas resguarda-se também a oficialidade, reduzida, porém, ao uso nas respectivas comunidades autônomas, e de acordo com a leis locais. Em momento de lirismo retórico impressionante indica-se a riqueza das distintas modalidades linguísticas da Espanha como patrimônio cultural que seja objeto de especial respeito e proteção.

Designa-se uma bandeira, admitem-se flâmulas regionais, a serem usadas com o estandarte nacional, nos prédios públicos, que recebe todos os lábaros. Madri detém status constitucional de capital da monarquia parlamentarista. Admitem-se os partidos políticos como expressão do pluralismo; prevêem-se também sindicatos de categorias profissionais e econômicas, vinculando-se os contornos de partidos e sindicatos à constituição e à legislação que lhe sucede. Complementa-se a seção com a formatação das forças armadas, de terra, mar e ar (de Tierra, la Armada y el Ejército del Aire), em termos de lei orgânica a ser votada a partir do texto constitucional. Funda-se a constituição espanhola nos princípios da legalidade, da hierarquia e da publicidade das normas, na irretroatividade das disposições legais sancionadoras e não favoráveis, na não restrição aos direitos individuais, na segurança jurídica e na negação da arbitrariedade do poder público.

O Rei é o chefe de Estado. Simboliza a unidade estatal. É árbitro e moderador das instituições. Detém a mais alta representação do Estado espanhol em âmbito de relações internacionais. O Rei é inviolável e não está sujeito a nenhuma forma de responsabilidade. Determina-se que o Rei receba do orçamento do Estado quantia para sustento de sua família e casa, podendo dispor livremente sobre tais valores. O Rei detém poder para nomear livremente os membros civis e militares de sua casa. O Rei sanciona no prazo de 15 dias as leis aprovadas pelas Cortes Gerais, promulgando-as e ordenando sua imediata publicação.

Há título específico a respeito de direitos e deveres fundamentais. Afirma-se que a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos alheios são os fundamentos da ordem política e da paz social. Identifica-se critério hermenêutico para exegese de normas relativas a direitos fundamentais e às liberdades reconhecidas pela constituição, que deverão ser interpretadas em conformidade com a Declaração Universal dos Direito Humanos, assim como também aos tratados e acordos internacionais ratificados pela Espanha. A maioridade penal dá-se com os 18 anos.

Outorgam-se aos estrangeiros residentes na Espanha liberdades públicas constitucionais, nos termos estabelecidos em tratados e leis. Aos alienígenas limitam-se direitos de participação política, na medida de tratados internacionais de reciprocidade. E ainda, só se concede extradição como cumprimento de tratado ou lei, atendendo-se o princípio da reciprocidade. Excluiram-se de medidas de extradição os delitos políticos, não se considerando como tais os atos de terrorismo. Remete-se à lei ordinária os limites de fruição de direito de asilo na Espanha, por parte de apátridas e de cidadãos de outros países. Insiste-se na igualdade formal dos espanhóis em face da lei, anatematizando-se quaisquer discriminações, referentes a nascimento, raça, sexo, religião e opinião.

Garante-se a todos o direito à vida, e a integridade física e moral, proibindo-se tortura e tratamentos humanos degradantes. A Espanha aboliu a pena de morte, respeitando-se as leis penais, aplicadas em tempo de guerra, que podem prescrever penas capitais. Garante-se a liberdade ideológica, de religião, e de culto, conquanto que se respeite a ordem pública, que também é objeto de proteção legal. Determina-se que ninguém pode ser obrigado a declarar sua ideologia, religião ou crença particular. Indica-se que nenhuma religião poderá ter caráter estatal, embora se observe que os poderes públicos levarão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão as consequentes relações de cooperação com a Igreja Católica e com as demais religiões.

Há artigo específico para garantia do direito à liberdade e à segurança. A privação de liberdade exige o implemento do devido processo legal. Limita-se a prisão preventiva para realização de averiguações com vistas ao esclarecimento dos fatos, em 72 horas. Passado o referido prazo, o preso será posto em liberdade ou a disposição da autoridade judicial. Prevê-se habeas corpus, a ser regulamentado por lei, para determinação de relaxamento imediato de quem ilegalmente preso. Garante-se o direito à honra, à intimidade pessoal e familiar e à própria imagem. Determina-se a inviolabilidade do domicílio. Apenas em caso de flagrante delito pode-se permitir a entrada de quem quer que seja, sem consentimento do morador. Salvo ordem judicial, garante-se o segredo das comunicações, especialmente postais, telegráficas e telefônicas. A constituição espanhola alcança a cibernética, determinando que a lei limitará o uso da informática de modo a garantir a honra e a intimidade pessoal e familiar dos cidadãos em pleno exercício de seus direitos.

Garante-se a liberdade de ir e vir, regulamentada por lei, que não pode limitar essa prerrogativa por motivos políticos e ideológicos. Outorga-se o reconhecimento e a proteção de direitos de liberdade de expressão, de criação literária, artística, científica e técnica, de liberdade de cátedra, de comunicação, de liberdade em face de censura prévia, embora decisão judicial possa determinar o seqüestro de publicações, gravações e outros meios de informação. É reconhecido o direito de associação, proibindo-se, no entanto, as associações secretas e as de caráter paramilitar. Garante-se o direito de participação política, por parte dos cidadãos. De igual modo, determina-se que todos têm direito a disputar em condições de igualdade às funções e cargos públicos, de acordo com os requisitos a serem determinados por lei.

Outorga-se o livre acesso ao judiciário, indicando-se que todas as pessoas têm direito de obter tutela efetiva de juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos, com direito também à defesa, mediante assistência de advogado (la asistencia de letrado). Determina-se impossibilidade da retroatividade maligna da lei. Do ponto de vista de execução penal, escreveu-se que as penas devem ser orientadas para reeducação e reinserção social do detento, proibindo-se trabalhos forçados. Proíbe-se à administração civil a imposição de sanções que impliquem direta ou subsidiariamente privação de liberdade. Vedam-se tribunais de honra no âmbito da administração civil e das organizações profissionais. Aos membros das forças armadas restringe-se o exercício de direitos à disciplina militar, pelo que há obrigação de se seguir legislação específica.

A constituição da Espanha garante o direito de educação, reconhecendo também a liberdade de ensino. De modo a adequar-se o modelo educacional às convicções religiosas e pessoais dos espanhóis, determinou-se que os poderes públicos garantirão o direito que assiste aos pais de que seus filhos recebam formação religiosa e moral que esteja de acordo com as convicções dos referidos pais. A autonomia universitária é abonada, nos termos de leis a serem confeccionadas, nesse sentido. Garante-se a liberdade sindical. Como consequência, reconhece-se o direito de greve dos trabalhadores para a defesa de seus interesses.

Outorgam-se aos cidadãos da Espanha o direito e o dever de se defenderem o país. Determina-se que por lei poderão se regular os deveres dos cidadãos nos casos de grave risco, catástrofe ou calamidade pública. O modelo constitucional tributário espanhol é lacônico, indicando-se tão somente que todos contribuirão ao sustento dos gastos públicos de acordo com as respectivas capacidades econômicas mediante um sistema tributário justo inspirado nos princípios de igualdade e de progressividade que, em caso algum, poderá ter efeito de confisco. A repartição dos recursos públicos deve seguir critérios de eficiência e de economia. Prestações pessoais ou patrimoniais de caráter público dependem de lei, para efeito de instituição. Direitos e liberdades podem ser suspensos em caso de declaração de estado de exceção ou de sítio.

Determina-se que homens e mulheres têm direito de contrair matrimônio em regime de plena igualdade jurídica. Reconhece-se o direito de propriedade privada e o direito potestativo à herança. A função social desses direitos, no entanto, determinará o conteúdo dos mesmos, nos termos legais. E ainda, ninguém poderá ser privado de seus bens e direitos, a menos que haja causa justificada de utilidade pública ou interesse social, por meio de indenização correspondente e conforme o disposto nas leis reguladoras. No que se refere ao direito do trabalho, determina-se que todos os espanhóis têm o dever de trabalhar e o direito ao trabalho, à livre escolha da profissão ou do ofício, indicando-se que a lei regulará as relações laborais. Ainda, a lei garantirá o direito à negociação laboral coletiva entre representantes de trabalhadores e empresários, bem como a força vinculante das convenções celebradas entre patrões e empregados. A Espanha aderiu explicitamente ao liberalismo econômico, na medida em que se reconhece a liberdade da empresa como marco da economia de mercado. Assegura-se que os poderes públicos garantirão e protegerão o exercício e a defesa da produtividade, de acordo com as exigências da economia geral e, nesse caso, da planificação.

O modelo constitucional espanhol atual exemplifica princípios indicativos de política nacional e econômica, com especial destaque para família, crianças, distribuição nacional de renda, seguridade social. Há artigo interessante e prospectivo que determina que o Estado espanhol irá velar pela salvaguarda dos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores espanhóis no estrangeiro, comprometendo-se, inclusive, a orientá-los, até o retorno à Espanha. Prevê-se proteção aos cidadãos da terceira idade, mediante a garantia de que o poder público atualizará adequada e periodicamente as condições econômicas dos mesmos, mediante a regulamentação das aposentadorias.

A constituição da Espanha caracteriza-se por indicar direitos, que são vinculados a deveres. É o que se dá, também, quanto à saúde pública, em relação à qual a lei disciplinará direitos e deveres. De igual modo, quanto à proteção do meio ambiente; escreveu-se que todos têm o direito de desfrutar de meio ambiente adequado para o desenvolvimento das pessoas, assim como todos têm o dever de conservá-lo. O texto constitucional espanhol remete à lei a possibilidade de fixar sanções penais e administrativas, em relação a danos ambientais. Prevê-se o dever de reparação do dano, de modo genérico, sem indicação de vínculo a pessoas físicas ou jurídicas. Há referência a proteção ao consumidor, mediante indicação de que os poderes públicos garantirão a defesa de consumidores e usuários, como vistas à proteção da segurança, da saúde e dos interesses econômicos legítimos desses mesmo consumidores. Fala-se de modelo de educação consumerista, porquanto aos poderes públicos é obrigatória a promoção de informações aos consumidores.

O poder legislativo é bicameral, composto por Câmara dos Deputados e por Senado. A união das duas casas legislativas consubstancia as Cortes Gerais. Os deputados orçam entre 300 e 400, eleitos por voto direto. O mandato dos deputados é de quatro anos. Os senadores representam os respectivos territórios provinciais. Cada província elege quatro senadores por voto direto. O mandato dos senadores também é de quatro anos. O poder legislativo é exercido por um presidente de governo, com funções de primeiro-ministro, proposto pelo rei, após eleição na Câmara dos Deputados. O indicado expõe seu programa de governo ao legislativo, que outorga moção de confiança ao candidato, que será nomeado presidente pelo rei. A negativa de confiança suscita e determina novas indicações, até que se escolha definitivamente o chefe do poder executivo. Determina-se que a administração pública deva servir com objetividade aos interesses gerais, atuando de acordo com princípios de eficácia, hierarquia, descentralização, desconcentração e coordenação, sob o referencial da legalidade.

Quanto ao poder judiciário, determinou-se que a justiça emana do povo e se administra em nome do Rei por Juízes integrantes de carreira, independentes, inamovíveis, responsáveis e submetidos unicamente ao poder da lei. Dá-se preferência à oralidade no procedimento, especialmente em matéria penal. A constituição espanhola determina que as sentenças devem ser fundamentadas e pronunciadas em audiência pública. Indica-se que os erros judiciais, e também os decorrentes do funcionamento anormal da administração da justiça, serão indenizáveis, nos termos de lei. Proíbem-se aos juízes o exercício de outros cargos públicos, a participação em sindicatos e a filiação a partidos políticos.

A constituição da Espanha prevê tribunal constitucional, composto por 12 membros, nomeados pelo rei. Os magistrados são indicados pelo Congresso, pelo Senado e pelo presidente. Exige-se que os apontados sejam juízes, professores universitários, funcionários públicos e advogados. De todos demanda-se reconhecida competência e mais de 15 anos de comprovada atividade profissional. O mandato a ser exercido no tribunal constitucional é de nove anos. O tribunal tem competência em todo território espanhol, com especial determinação para apreciar recursos de inconstitucionalidade contra leis e disposições normativas com força de lei. Também aprecia recursos de amparo em face de violação a direitos e liberdades com previsão constitucional. O recurso de inconstitucionalidade pode ser proposto pelo presidente, pelo defensor público, por 50 deputados, por 50 senadores, pelos órgãos colegiados executivos das comunidades autônomas e também pelas assembleias dessas comunidades autônomas. O recurso de amparo pode ser proposto por qualquer pessoa física ou jurídica que invoque interesse legítimo, bem como o defensor público e o ministério fiscal, que equivale à Procuradoria da Fazenda Nacional no Brasil.

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur

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