Haja discussão
A Constituição da República, no artigo 14, proclama que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. Os parágrafos do artigo 14 dispõem sobre quem pode e não pode exercer o voto, quem pode e não pode ser eleito. Especificamente o § 9º desse artigo ressalva que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato. O valor alvo da atenção dispensada pelo artigo 14 da Constituição da República é a democracia.
Nesse sentido veja-se que o artigo 1º da Constituição da República delineia o Brasil como um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político. O parágrafo único do artigo 1º é simbólico ao enfatizar a fórmula universal da democracia representativa: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Robert Dahl (Poliarquia: 2005) ressalta que a característica da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais. Reserva o termo democracia para um sistema político que tenha entre suas qualidades a de ser responsivo perante os seus cidadãos ou ao menos a maioria deles, assegurando oportunidade para formular suas preferências, expressar suas preferências e ter suas preferências igualmente consideradas pelo governo. A quantidade de diversos grupos passíveis de assumir o poder na competição política qualifica o pluralismo. A partir desses pressupostos DAHL constrói uma lista de alguns requisitos de uma democracia para um grande número de pessoas e que pode ser sumariada nos seguintes itens: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.
Dando efetividade ao § 9º do artigo 14 da Constituição da República, a Lei Complementar nº 64 de 18/05/1990 estabeleceu casos de inelegibilidade, ou seja, hipóteses que contrariam a qualidade para ser candidato exigida pelo povo. Essa Lei Complementar foi alterada pela Lei Complementar nº 135 de 04/06/2010, que incluiu mais hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. É inquestionável o legítimo interesse do povo de exigir como pressuposto que o candidato tenha vida pregressa proba e moral. Afinal de contas, o povo, através do processo de sufrágio, está selecionando candidatos para que o representem e em seu nome exerçam o poder político de votar as leis e governar o país. Essa Lei Complementar 135 se tornou conhecida como lei ficha limpa, oriunda de iniciativa popular que mobilizou a sociedade civil, porque incluiu entre as hipóteses de inelegibilidade as situações de condenação por crimes em face de decisão transitada em julgado ou, quando pendente de recurso, por órgão judicial colegiado.
Acertamente o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral na sessão de 10/07/2010, por maioria de votos, firmou o entendimento no sentido de que a Lei Complementar 135, lei ficha limpa, pode ser aplicada já a partir das eleições deste ano, afastando o obstáculo do artigo 16 da Constituição da República, onde assegurado que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, mas não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
A decisão do TSE em dar aplicação imediata à Lei Complementar 135 é justa porque o artigo 16 da Constituição da República trata de alteração do processo eleitoral, não dos pressupostos ou qualidades exigidas do candidato que são o objeto da lei ficha limpa. Não há como negar que o alvo da atenção da garantia constitucional do sufrágio é a democracia representativa, que é procedimento de avaliação e seleção de candidatos para o provimento de cargos políticos. O interesse que está em jogo é o do povo, detentor de todo o poder, que o exerce através de seus representantes. Existe o processo de seleção dos candidatos, que é a competição propriamente dita; mas existem os pressupostos dessa seleção. O processo é o rito de como fazer a seleção dos candidatos, onde sobressai o interesse dos próprios candidatos. Já os pressupostos de seleção constituem os critérios mínimos da qualidade que o povo exige que os candidatos tenham para entrar no processo de competição eleitoral, integrando o campo do direito material eleitoral. A anualidade restritiva de aplicação da lei eleitoral se refere ao direito processual eleitoral e não alcança o direito material eleitoral.
Nem se diga que a lei ficha limpa seria retroativa porque a aplicação dos pressupostos de elegibilidade, a qualidade que exige dos candidatos, será aplicada no processo eleitoral cujo início dar-se-á após a sua vigência. Eventual alegação de surpresa ante a vigência da lei ficha limpa seria alegação de torpeza própria, o equivalente a venire contra factum proprio; imagine-se o descalabro de alguém surpreendido reclamar: “Ah, se eu soubesse que o condenado por crime não poderia ser candidato, então eu não teria praticado o crime...”.
Não é retroativa a exigência de qualidade de vida pregressa como pressuposto para ser admitido em qualquer emprego, tanto quanto não o é para a seleção democrática de representantes políticos mediante provimento de cargos públicos de legisladores e governantes. Se é possível controlar a vida pregressa limpa de candidatos a empregos comuns, porque não seria possível esse controle igualmente para os candidatos a cargos de representação política?
Em tempos que o mundo todo reconhece o amadurecimento da democracia brasileira, é mais do que oportuno entendermos que o povo é o patrão e que o povo tem o poder inalienável de exigir a qualidade proba e moral para selecionar os candidatos ao provimento de cargos de legisladores e governantes. Afinal, por mais elevados e poderosos que sejam os cargos políticos, nenhum deles pode estar acima do povo.
Por Marco Antonio Meneghetti
Fonte: Direito & Justiça
A Constituição da República, no artigo 14, proclama que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular. Os parágrafos do artigo 14 dispõem sobre quem pode e não pode exercer o voto, quem pode e não pode ser eleito. Especificamente o § 9º desse artigo ressalva que a lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato. O valor alvo da atenção dispensada pelo artigo 14 da Constituição da República é a democracia.
Nesse sentido veja-se que o artigo 1º da Constituição da República delineia o Brasil como um Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político. O parágrafo único do artigo 1º é simbólico ao enfatizar a fórmula universal da democracia representativa: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Robert Dahl (Poliarquia: 2005) ressalta que a característica da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais. Reserva o termo democracia para um sistema político que tenha entre suas qualidades a de ser responsivo perante os seus cidadãos ou ao menos a maioria deles, assegurando oportunidade para formular suas preferências, expressar suas preferências e ter suas preferências igualmente consideradas pelo governo. A quantidade de diversos grupos passíveis de assumir o poder na competição política qualifica o pluralismo. A partir desses pressupostos DAHL constrói uma lista de alguns requisitos de uma democracia para um grande número de pessoas e que pode ser sumariada nos seguintes itens: liberdade de formar e aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e votos; fontes alternativas de informação; eleições livres e idôneas; instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência.
Dando efetividade ao § 9º do artigo 14 da Constituição da República, a Lei Complementar nº 64 de 18/05/1990 estabeleceu casos de inelegibilidade, ou seja, hipóteses que contrariam a qualidade para ser candidato exigida pelo povo. Essa Lei Complementar foi alterada pela Lei Complementar nº 135 de 04/06/2010, que incluiu mais hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. É inquestionável o legítimo interesse do povo de exigir como pressuposto que o candidato tenha vida pregressa proba e moral. Afinal de contas, o povo, através do processo de sufrágio, está selecionando candidatos para que o representem e em seu nome exerçam o poder político de votar as leis e governar o país. Essa Lei Complementar 135 se tornou conhecida como lei ficha limpa, oriunda de iniciativa popular que mobilizou a sociedade civil, porque incluiu entre as hipóteses de inelegibilidade as situações de condenação por crimes em face de decisão transitada em julgado ou, quando pendente de recurso, por órgão judicial colegiado.
Acertamente o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral na sessão de 10/07/2010, por maioria de votos, firmou o entendimento no sentido de que a Lei Complementar 135, lei ficha limpa, pode ser aplicada já a partir das eleições deste ano, afastando o obstáculo do artigo 16 da Constituição da República, onde assegurado que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, mas não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.
A decisão do TSE em dar aplicação imediata à Lei Complementar 135 é justa porque o artigo 16 da Constituição da República trata de alteração do processo eleitoral, não dos pressupostos ou qualidades exigidas do candidato que são o objeto da lei ficha limpa. Não há como negar que o alvo da atenção da garantia constitucional do sufrágio é a democracia representativa, que é procedimento de avaliação e seleção de candidatos para o provimento de cargos políticos. O interesse que está em jogo é o do povo, detentor de todo o poder, que o exerce através de seus representantes. Existe o processo de seleção dos candidatos, que é a competição propriamente dita; mas existem os pressupostos dessa seleção. O processo é o rito de como fazer a seleção dos candidatos, onde sobressai o interesse dos próprios candidatos. Já os pressupostos de seleção constituem os critérios mínimos da qualidade que o povo exige que os candidatos tenham para entrar no processo de competição eleitoral, integrando o campo do direito material eleitoral. A anualidade restritiva de aplicação da lei eleitoral se refere ao direito processual eleitoral e não alcança o direito material eleitoral.
Nem se diga que a lei ficha limpa seria retroativa porque a aplicação dos pressupostos de elegibilidade, a qualidade que exige dos candidatos, será aplicada no processo eleitoral cujo início dar-se-á após a sua vigência. Eventual alegação de surpresa ante a vigência da lei ficha limpa seria alegação de torpeza própria, o equivalente a venire contra factum proprio; imagine-se o descalabro de alguém surpreendido reclamar: “Ah, se eu soubesse que o condenado por crime não poderia ser candidato, então eu não teria praticado o crime...”.
Não é retroativa a exigência de qualidade de vida pregressa como pressuposto para ser admitido em qualquer emprego, tanto quanto não o é para a seleção democrática de representantes políticos mediante provimento de cargos públicos de legisladores e governantes. Se é possível controlar a vida pregressa limpa de candidatos a empregos comuns, porque não seria possível esse controle igualmente para os candidatos a cargos de representação política?
Em tempos que o mundo todo reconhece o amadurecimento da democracia brasileira, é mais do que oportuno entendermos que o povo é o patrão e que o povo tem o poder inalienável de exigir a qualidade proba e moral para selecionar os candidatos ao provimento de cargos de legisladores e governantes. Afinal, por mais elevados e poderosos que sejam os cargos políticos, nenhum deles pode estar acima do povo.
Por Marco Antonio Meneghetti
Fonte: Direito & Justiça
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