segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Gizando a dissensão em testilha sobre juridiquês

Cade o Aurélio
Em artigo, juiz pergunta se o réu analfabeto sabe o que é termo de inquirição dos testigos do incriminado

Quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal realizou, em agosto de 2007, a sessão para decidir sobre o recebimento ou rejeição da denúncia do mensalão, o editor deste Blog sugeriu à Folha (*) noticiar o fato em autêntico juridiquês: "O excelso pretório, ou augusto sodalício, reuniu-se para começar a analisar a exordial oferecida pelo Parquet".

Em contraste com esse ensaio, um dos motivos que permitiram a ampla compreensão do complexo caso do mensalão (além da transmissão do julgamento online) foi a linguagem acessível ao leigo no longo voto redigido pelo ministro Joaquim Barbosa e seus auxiliares.

Fonte: Blog do Fred

Sob o título "A clareza da linguagem judicial como efetivação do acesso à Justiça", o texto a seguir é de autoria do desembargador Lourival Serejo, do Maranhão. O título e o subtítulo deste post foram retirados desse trabalho, publicado no
blog do magistrado e premiado em 2º lugar no concurso da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), resultante da campanha “Simplificação da Linguagem Jurídica”, realizada em 2005.

Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
...................................................
Pareceis de tênue seda,
.....................................................
e estais nas mãos dos juízes.

(Cecília Meireles)

O estilo judicial e o acesso à justiça
A preocupação com o estilo judicial acentuou-se nos últimos anos em decorrência da constatação de que o acesso à justiça não tem um significado apenas processual, mas deve ser visto em sua inteireza de direito fundamental. Não se pode falar em acesso à justiça mantendo-se a população distante das decisões judiciais pela barreira da linguagem hermética e pedante, longe da compreensão razoável e compatível com a escolaridade média do povo brasileiro. Até o réu que está sendo condenado precisa compreender os motivos da sua condenação. É um direito de quem está sendo acusado compreender os termos da acusação. Se o juiz constitucionalmente decide em nome do povo, não pode usar uma linguagem inacessível ao destinatário de suas decisões nem esconder-se atrás da cortina de termos pretensiosamente técnicos para aplicar a lei.

A tentação do escalafobético
Vistos et coetera. Inicialmente passo a gizar a dissensão em testilha, provocada pela indócil lidadora que vê increpada negativa de vigência da Lei dos Ritos, na alheta do ensino de processualistas de truz. Da análise perfunctória do caderno processual, tenho comigo, data venia, que o judicioso representante do Parquet tem razão ao pressentir, na súplica de folhas, uma alteração da pretensão sub examine, exposta na peça de ingresso. Inobstante esse posicionar, o fato de o custos legis requerer, ao arrimo de intempestiva, o desentranhar a postulação de folhas, não faz condão à eiva de nulidade. Ex positis, hei por bem, como decidido tenho, em indeferir o pleito da cônjuge virago. Intimem-se-lhe. Dr. Aristarco da Capadócia.

O estilo complicado
O exemplo acima destacado traz um despacho em que se reúnem expressões frequentemente usadas pelos adeptos do juridiquês, em sua forma mais hermética, mais exagerada, nos moldes do estilo rococó. No fundo, uma sequência de frases vazias. Nesse despacho, colhe-se a demonstração de alguns dos principais defeitos do estilo judicial: a) a linguagem espalhafatosa e irônica; b) a linguagem agressiva; c) a linguagem vazia e vulgar; d) a linguagem excessivamente adjetivada; e) a linguagem hermética; f) a linguagem pedante, cheia de latinismo e estrangeirismo; g) a linguagem novidadeira, cheia de tolices e erros gramaticais; h) a linguagem impoluta e vaidosa. Todos esses vícios podem ser superados pela aprendizagem e conscientização do magistrado de que precisa comunicar-se com clareza, sem ser vulgar. Cada despacho, cada sentença que profere precisa chegar à comunidade jurídica, aos jurisdicionados, decodificada em linguagem acessível.

O estilo claro e ideal
Do juiz não se pode exigir os predicados de um escritor, bastando-lhe apenas a correção gramatical e a clareza. A falta de clareza compromete o acesso à justiça e pode prejudicar o cumprimento de sua decisão. Para obter a clareza, o magistrado deve evitar a prolixidade, adotar a palavra exata para denominar as coisas, usar parágrafos curtos, evitar o exagero dos termos técnicos e vencer a tentação de inovar a qualquer pretexto, inventando sinônimos desnecessários, substantivando verbos e coisas desse gênero. O exemplo mais claro para assinalar essa tendência é o modismo de rebatizar a petição inicial com nomes exóticos como exordial, peça de ingresso, peça vestibular etc. O que pensará um réu analfabeto ao ouvir a escrivã dizer ao juiz que o “Termo de inquirição dos testigos do incriminado” já está pronto?

Consciência e superação. Uma proposta
Sem o atributo da clareza, o estilo judicial se perde nas dobras da vaidade e do narcisismo do seu autor e acaba prejudicando a entrega da prestação jurisdicional. Se utilizarmos apenas três das propostas de Ítalo Calvino (Seis propostas para o próximo milênio) já teremos um estilo judicial leve, exato e consistente.

Não deve esquecer, por fim, o magistrado o lado ético que se sobressai do estilo judicial escorreito, em que sua placidez evidencia a imparcialidade e a maturidade do julgador. Cabe aos tribunais de justiça, por suas escolas judiciais, o encargo de rever essa linguagem descabida de alguns magistrados, oferecendo cursos para conscientização e aprendizagem do estilo adequado ao tempo e em respeito ao cidadão brasileiro.

Fonte: Blog do Fred

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