Desatando
O Congresso Nacional acaba de promulgar a Emenda Constitucional nº 66, que alterou a redação do art. 226, § 6º, da Constituição da República, e que passará a ter a seguinte redação: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. O confronto desse novo dispositivo constitucional com o antigo — onde se lia que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos” — permite a imediata conclusão de que a norma constitucional suprimiu o instituto da “separação judicial”, uma invenção surgida com a Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a Lei do Divórcio, como uma espécie de solução de consenso que se prestou a unir os divorcistas e os antidivorcistas de então, permitindo a introdução do instituto do divórcio no ordenamento jurídico brasileiro.
Essa solução deveu-se ao fato de que existia, naquele tempo, grave preconceito com a figura do “desquite” e, especialmente, com a “mulher desquitada”, havendo registros de que alguns parlamentares chegaram mesmo às vias de fato, por ocasião da votação da Emenda Constitucional nº 9/77, que introduziu o divórcio no Brasil. A dimensão do dissenso pode ser aferida pelas seguintes opiniões, expressadas durante os debates em plenário: “a desquitada é uma mulher cantável`; `divórcio é fabricação de menores abandonados`; `vamos lembrar a hora da Ave Maria`, de um parlamentar que ocupou a tribuna às 18 horas (fonte: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_16jun1977.htm).
Instituído, enfim, o divórcio no Brasil, a redação do § 1º do art. 175 da Constituição de 67/69, introduzido pela Emenda nº 9/77, ficou assim: “o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos`. A separação judicial passou a ser, então, um degrau necessário no trajeto a ser percorrido entre o casamento e o divórcio, pondo fim aos deveres do casamento (coabitação, fidelidade recíproca entre os cônjuges e mútua assistência), sem dissolver, contudo, o vínculo conjugal. Somente o divórcio é que rompia, juridicamente, os grilhões do casamento, permitindo que os divorciados pudessem casar-se novamente. Por isso, se um casal decidisse se divorciar, seria preciso, primeiro, passar pelo estágio da separação judicial para, somente depois — três anos depois —, chegar ao divórcio.
Com a Constituição de 1988, o casamento passou a poder ser dissolvido pelo divórcio, “após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos`. A nova ordem constitucional inaugurada em 1988, assim, preservou a obrigatoriedade de haver separação judicial entre o casamento e o divórcio, mas não só reduziu o prazo para um ano, como, além disso, permitiu que fosse possível passar de um ao outro sem o estágio intermediário da separação judicial. Nesse caso, bastava ao casal que comprovasse estar separado de fato há mais de dois anos.
A separação judicial criava uma situação interessante: o casal, a rigor, já não era mais um casal, mas os cônjuges continuavam presos um ao outro pelo vínculo do casamento, que não se rompia com a sentença que decretasse a separação judicial. Isso exigia que, após a separação judicial, e eventualmente superados possíveis dramas e traumas próprios do fim de um relacionamento, o casal se visse obrigado a se reencontrar para que fosse possível transformar o casamento em divórcio, reavivando, desnecessariamente, sofrimentos que já tinham sido vencidos.
Nos tempos atuais, nada mais justifica, sob qualquer ponto de vista, a sobrevivência do instituto da separação judicial. A sociedade brasileira de 2010 seguramente não é mais a mesma de 1977. Os valores sociais mudaram muito, com seguro avanço no que se refere a velhos e ultrapassados preconceitos, que, atualmente, são vistos como resquício retrógrado de um passado a que ninguém mais quer retornar. Por outro lado, a sutil diferença jurídica entre a separação judicial e o divórcio — a separação judicial dissolve a sociedade conjugal; o divórcio dissolve o vínculo conjugal — repercute apenas no fato de o divórcio permitir novo casamento, o que não é possível com a só separação judicial. O sofrimento imposto ao ex-casal separado — que, por imposição legal, deve voltar a conversar (e nem sempre isso é possível) para, em nova ida à Justiça, pedir o divórcio — desserve aos anseios de uma sociedade que clama pela felicidade e pelo bem-estar, sendo a todos os títulos inútil e despropositado exigir o prolongamento desse sofrimento, que ultrapassa o casal separado e repercute nos seus filhos, nos seus familiares, nos seus amigos.
A mudança na Constituição permitirá, assim, que os casais que desejem terminar seu casamento dirijam-se à Justiça uma única vez, com economia de tempo e de dinheiro, e peçam desde logo o divórcio, sem requisitos temporais nem, muito menos, sem a necessidade de experimentarem o estágio da separação judicial. A ninguém mais interessa a discussão acerca da culpa pelo insucesso do projeto de um casamento que vem a terminar. O pedido de divórcio passará a ser feito de forma consensual ou litigiosa — isto é, quando não houver acordo sobre guarda de filhos, regulamentação de direito de visitas, pensão de alimentos e partilha de bens, por exemplo, excluída em qualquer caso a discussão sobre possível culpa —, mas sem prévia necessidade de separação judicial ou da demonstração de que o casal esteja separado de fato há tantos anos. Basta ao casal que externe sua vontade de não mais permanecer casado e pronto.
A “aceleração do divórcio”, assim, aliada à dinâmica das relações sociais, certamente permitirá o surgimento de novas uniões e a celebração de novos casamentos, sendo certo que a criação de novos núcleos familiares se dá em prestígio da família plural, que hoje vem substituindo a família mononuclear do passado. Isso reforça a ideia de que a família é indestrutível e haverá sempre de sobreviver às alterações constitucionais e legais que lhe digam respeito.
É por isso que a Emenda Constitucional nº 66/2010 deve ser chamada de “Emenda do casamento” e não de “Emenda do divórcio”, até porque não foi ela que instituiu o divórcio no Brasil. Muito ao contrário, é a partir dela, e das facilidades que dela haverão de decorrer, que a sociedade brasileira poderá avançar em direção a uma nova realidade. Realidade a que, felizmente, o legislador foi sensível, implementando em boa hora, e com sabedoria, as bases constitucionais para esse novo tempo.
Por Arnoldo Camanho de Assis
Fonte: Direito & Justiça
Essa solução deveu-se ao fato de que existia, naquele tempo, grave preconceito com a figura do “desquite” e, especialmente, com a “mulher desquitada”, havendo registros de que alguns parlamentares chegaram mesmo às vias de fato, por ocasião da votação da Emenda Constitucional nº 9/77, que introduziu o divórcio no Brasil. A dimensão do dissenso pode ser aferida pelas seguintes opiniões, expressadas durante os debates em plenário: “a desquitada é uma mulher cantável`; `divórcio é fabricação de menores abandonados`; `vamos lembrar a hora da Ave Maria`, de um parlamentar que ocupou a tribuna às 18 horas (fonte: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_16jun1977.htm).
Instituído, enfim, o divórcio no Brasil, a redação do § 1º do art. 175 da Constituição de 67/69, introduzido pela Emenda nº 9/77, ficou assim: “o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos`. A separação judicial passou a ser, então, um degrau necessário no trajeto a ser percorrido entre o casamento e o divórcio, pondo fim aos deveres do casamento (coabitação, fidelidade recíproca entre os cônjuges e mútua assistência), sem dissolver, contudo, o vínculo conjugal. Somente o divórcio é que rompia, juridicamente, os grilhões do casamento, permitindo que os divorciados pudessem casar-se novamente. Por isso, se um casal decidisse se divorciar, seria preciso, primeiro, passar pelo estágio da separação judicial para, somente depois — três anos depois —, chegar ao divórcio.
Com a Constituição de 1988, o casamento passou a poder ser dissolvido pelo divórcio, “após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos`. A nova ordem constitucional inaugurada em 1988, assim, preservou a obrigatoriedade de haver separação judicial entre o casamento e o divórcio, mas não só reduziu o prazo para um ano, como, além disso, permitiu que fosse possível passar de um ao outro sem o estágio intermediário da separação judicial. Nesse caso, bastava ao casal que comprovasse estar separado de fato há mais de dois anos.
A separação judicial criava uma situação interessante: o casal, a rigor, já não era mais um casal, mas os cônjuges continuavam presos um ao outro pelo vínculo do casamento, que não se rompia com a sentença que decretasse a separação judicial. Isso exigia que, após a separação judicial, e eventualmente superados possíveis dramas e traumas próprios do fim de um relacionamento, o casal se visse obrigado a se reencontrar para que fosse possível transformar o casamento em divórcio, reavivando, desnecessariamente, sofrimentos que já tinham sido vencidos.
Nos tempos atuais, nada mais justifica, sob qualquer ponto de vista, a sobrevivência do instituto da separação judicial. A sociedade brasileira de 2010 seguramente não é mais a mesma de 1977. Os valores sociais mudaram muito, com seguro avanço no que se refere a velhos e ultrapassados preconceitos, que, atualmente, são vistos como resquício retrógrado de um passado a que ninguém mais quer retornar. Por outro lado, a sutil diferença jurídica entre a separação judicial e o divórcio — a separação judicial dissolve a sociedade conjugal; o divórcio dissolve o vínculo conjugal — repercute apenas no fato de o divórcio permitir novo casamento, o que não é possível com a só separação judicial. O sofrimento imposto ao ex-casal separado — que, por imposição legal, deve voltar a conversar (e nem sempre isso é possível) para, em nova ida à Justiça, pedir o divórcio — desserve aos anseios de uma sociedade que clama pela felicidade e pelo bem-estar, sendo a todos os títulos inútil e despropositado exigir o prolongamento desse sofrimento, que ultrapassa o casal separado e repercute nos seus filhos, nos seus familiares, nos seus amigos.
A mudança na Constituição permitirá, assim, que os casais que desejem terminar seu casamento dirijam-se à Justiça uma única vez, com economia de tempo e de dinheiro, e peçam desde logo o divórcio, sem requisitos temporais nem, muito menos, sem a necessidade de experimentarem o estágio da separação judicial. A ninguém mais interessa a discussão acerca da culpa pelo insucesso do projeto de um casamento que vem a terminar. O pedido de divórcio passará a ser feito de forma consensual ou litigiosa — isto é, quando não houver acordo sobre guarda de filhos, regulamentação de direito de visitas, pensão de alimentos e partilha de bens, por exemplo, excluída em qualquer caso a discussão sobre possível culpa —, mas sem prévia necessidade de separação judicial ou da demonstração de que o casal esteja separado de fato há tantos anos. Basta ao casal que externe sua vontade de não mais permanecer casado e pronto.
A “aceleração do divórcio”, assim, aliada à dinâmica das relações sociais, certamente permitirá o surgimento de novas uniões e a celebração de novos casamentos, sendo certo que a criação de novos núcleos familiares se dá em prestígio da família plural, que hoje vem substituindo a família mononuclear do passado. Isso reforça a ideia de que a família é indestrutível e haverá sempre de sobreviver às alterações constitucionais e legais que lhe digam respeito.
É por isso que a Emenda Constitucional nº 66/2010 deve ser chamada de “Emenda do casamento” e não de “Emenda do divórcio”, até porque não foi ela que instituiu o divórcio no Brasil. Muito ao contrário, é a partir dela, e das facilidades que dela haverão de decorrer, que a sociedade brasileira poderá avançar em direção a uma nova realidade. Realidade a que, felizmente, o legislador foi sensível, implementando em boa hora, e com sabedoria, as bases constitucionais para esse novo tempo.
Por Arnoldo Camanho de Assis
Fonte: Direito & Justiça
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