Ao requerer perante os juízos de execução penal do país o reconhecimento do direito à progressão de regime (artigo 112 da Lei 7.210/84, chamada de Lei de Execução Penal; e artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei 8.072/90, denominada de Lei dos Crimes Hediondos) ou ao livramento condicional (artigo 83 do Código Penal e artigo 131 da Lei de Execução Penal), o condenado provavelmente irá enfrentar a farsa do exame criminológico, requisito não mais contemplado pela lei, mas que tem servido insidiosamente aos propósitos do expansionismo penal.
Não obstante cumpra o condenado com os requisitos objetivos (fração de pena cumprida e, quando exigido por lei, a reparação de dano à vítima) e subjetivos para o reconhecimento do direito (bom comportamento carcerário e, quando exigido por lei, a demonstração da possibilidade de prover licitamente a sua subsistência), sói acontecer de o juiz da execução penal decidir pelo indeferimento do pleito, somente em razão do contido nos laudos técnicos, ignorando todos os demais requisitos elencados pela lei.
Quanto aos conteúdos dos laudos psicológicos e psiquiátricos que formam o chamado “exame criminológico”, estes são, pelo que se observa na prática, extremamente lacônicos e sem apuro técnico, de modo que não poderiam tais documentos, por si sós, impedir a concessão da medida, ainda mais levando em consideração que eles não vinculam o juiz (ex vi do artigo 182 do Código de Processo Penal).
É inegável que o laudo tem valor relativo em razão de sua natureza meramente opinativa, devendo ser analisado conjuntamente com os demais requisitos exigidos para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional. Assim, o juiz não fica adstrito às conclusões extraídas pelos peritos, ainda mais quando as condições pessoais do requerente indicam a viabilidade da fixação de regime prisional mais brando ou até mesmo a sua colocação em liberdade condicional.
Note-se que os Tribunais têm reconhecido o valor relativo do laudo:
“Não se pode beneficiar em demasia o exame criminológico, que representa, apenas, um instrumento de auxílio do Juiz, sem vinculá-lo às suas conclusões. Assim, a autoridade judiciária não fica adstrita às opiniões ou presunções estabelecidas no trabalho pericial, podendo decidir contrariamente a elas sempre que julgar conveniente em nome do interesse maior que é o social” (STJ – RT 716/422).
“O Magistrado não está vinculado de modo absoluto à conclusão do laudo criminológico, para fins de progressão de regime prisional, vez que aquele tem natureza meramente opinativa” (TACRSP – RJDTACRIM 24/31).
O que se verifica na prática é que muitas vezes o requerente “reprovado” no exame criminológico apresenta bom comportamento carcerário, conduta tranqüila, saúde psíquica e, frequentemente, apoio familiar. Condições essas, portanto, mais do que favoráveis para a concessão da medida requerida.
Ademais, tais condições, por demonstrarem a intenção do apenado de retornar à sociedade, deveriam preponderar sobre as conclusões supostamente desfavoráveis dos laudos técnicos, estes de vago teor subjetivo, os quais se restringem a afirmar, sem maior fundamentação, que o condenado “apresenta juízo crítico empobrecido e ausência de arrependimento”, que “não está apto a progredir de regime, apesar de apresentar normalidade psíquica”, “que não manifesta arrependimento sobre seus atos” ou que “não está preparado para introjetar novos valores sociais” – apenas para citar alguns dos clichês comumente empregados pelo expertos.
Aliás, a experiência profissional do autor deste artigo como advogado criminalista não deixa escapar o fato de que o conteúdo dos laudos são em sua maioria idênticos a outros já realizados e referentes a outros condenados, como se, curiosamente, todos os indivíduos encarcerados tivessem o mesmo perfil psicológico.
Outro fato que chama atenção é a falta de indicação das razões que levaram à conclusão do perito. O perito conclui, por exemplo, que o requerente apresenta “ausência de autocrítica”, mas os motivos de tal conclusão nunca são expostos no laudo. O perito afirma “é isso”, empregando uma linguagem técnica, vazia de sentido e hermética, sem indicar no laudo os dados em que se baseou a sua investigação.
Além do mais, os laudos não respeitam o contraditório, pois não indicam a metodologia empregada pelos expertos. Não se sabe se a avaliação se dá com base em uma mera entrevista, e qual sua duração (30min., 1h, etc), ou se a avaliação toma como base toda a vida carcerária do indivíduo, levando em consideração seu comportamento no cárcere, sua relação com os agentes penitenciários, com os demais encarcerados, suas relações familiares, etc. E mais: não se sabem sequer quais foram as perguntas formuladas ao encarcerado durante o exame. Tudo isso é kafkaniano!
O que se vê amiúde é que o requerente “reprovado” pelos peritos é um indivíduo comum, que tem suas ambições e que não aceita frustrações, que busca aceitação, que não assume seus erros, que disfarça seus conflitos, que tem dificuldade de se relacionar com outros seres humanos. E só por ser um homem comum, imperfeito, falível, imaturo, angustiado, ele merece a prisão para sempre? Nesse caso, a prisão será a melhor “terapia” para o apenado? Se ele conta com o apoio familiar, tem bom comportamento carcerário, e não é um indivíduo perigoso ou um sociopata, não está ele apto à progressão de regime ainda sim? O que mais se exige de um ser humano normal?
Bem por isso, os Tribunais têm admitido a concessão da progressão de regime e de livramento condicional apesar do laudo criminológico desfavorável:
“Agravo em execução penal. No confronto entre laudos do Centro de Observação Criminológica – COC e a vida prisional, esta prepondera para reconhecimento de direitos do apenado. Agravo provido, para a progressão de regime carcerário” (TJRS – RJTJERGS 209/100).
“Indispensável é a importância do saber técnico especializado, quando se tratar de aferir aspectos íntimos e subjetivos da personalidade do sentenciado, em ordem à progressão de regime. O parecer da Comissão Técnica de Classificação, portanto, só sobrepõe-se à opinião do leigo; mas não é de bom exemplo superestimá-lo, em detrimento do sentenciado que não se mostre, de plano, desmerecedor do benefício. Não raro o prognostico sombrio quanto à recuperação do sentenciado cede à expectativa de que honre o voto de confiança que lhe depositou a Justiça e efetivamente se reeduque para o retorno à comunhão social. Satisfeitos os requisitos da lei, e reconhecida a compatibilidade do condenado com o novo regime, não pode o Juiz negar-lhe a progressão (TACRSP – RJTACRIM 46/35).
O fato de o interno não apresentar discurso e comportamento desejado pelos peritos jamais poderia ser invocado como obstáculo à concessão da medida pleiteada, pois não cabe ao Estado violar a consciência do apenado, forçando-o a “introjetar valores” e a modificar a sua personalidade, tudo para se tornar um “bom cidadão”. Tampouco cabe ao Estado obrigar o sentenciado a admitir sua responsabilidade no crime pelo qual foi condenado, visto que tal circunstância pouca relevância tem para o cumprimento adequado da pena, além do que isso pode servir como tática de intimidação contra aquele que está em posição de subserviência. A aceitação da expiação do “pecado” e a reconciliação são questões de foro íntimo e, como tais, não devem ser esmiuçadas pelos órgãos punitivos estatais.
De qualquer modo, mesmo que ao Estado fosse lícita tal atividade, como poderia o encarcerado não apresentar ”comportamento desviado” se ele se encontra encarcerado, afastado da sociedade dos gentios, e vive em um ambiente cruel em que vigoram outras leis, outra moral?
O papel do Estado na execução penal é o de favorecer a reinserção social do condenado, promovendo a sua alfabetização e profissionalização (o que não o faz adequadamente, diga-se), e não o de impor valores ao apenado (função já dissecada por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir), de modo a extirpar sua individualidade e torná-lo um indivíduo “dócil”, sem paixões, ou seja, um ser autômato e produtivo, bem ao gosto da sociedade de consumo.
Tal atitude, a de impor valores morais ao condenado, fere o princípio da secularização do Direito Penal, dado que valores extrajurídicos não podem ser invocados para fundamentar a gravidade da pena, ou, neste caso, a sua quase perpetuidade.
Nesse sentido, a jurisprudência endossa a tese defensiva:
“Agravo de execução. Progressão. Supervalorização do fato delituoso, de que resultou condenação, exigindo os peritos que o apenado assuma o delito e se arrependa. O Estado não está legitimado a modificar a personalidade do agente e a prisão não é ‘lavagem cerebral’. A aferição do mérito do condenado se funda em sua conduta presente. Divergência entre as visões jurídico-penal e psiquiátrica. Agravo provido, para deferir progressão” (TJRS – RJTJERGS 197/66).
“Agravo de execução. Progressão e serviço externo. Condições pessoais – O arrependimento do condenado refoge aos objetivos da pena. Ao Estado incumbe propiciar ao apenado condições de reinserção social, sem violentar a sua consciência pessoal. O estado social de direito intervém para proteger (a sociedade) e promover (o individuo condenado), fazendo da execução ‘treinamento’ para a liberdade. E o estado democrático de direito preconiza o direito à divergência (pluralismo). A progressão ao regime semi-aberto não implica soltura do apenado. Agravo provido” (TJRS – RJTJERGS).
Não é demais lembrar que, em outros tempos, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, seguindo a vanguarda da Criminologia e atentos à falácia dos discursos e dos aparatos técnico-psicológicos sobre o comportamento do apenado (ou o biopoder, nos termos de Foucault), já dispensaram, com base na Lei n° 10.792/03 (que alterou o art. 112 da Lei de Execução Penal), a exigência do malfadado “Exame Criminológico” para a concessão das medidas da execução penal. Vejamos os seguintes julgados:
“Agravo em Execução. Cumprimento da pena privativa de liberdade. Progressão de regime fechado para semi-aberto. Bom comportamento carcerário atestado pelo diretor do estabelecimento. Não há que se levar em conta a vida pregressa do réu. Desnecessidade de realização do exame criminológico graças à nova redação do art. 112 da LEP dada pela Lei n° 10.792/03. Satisfeitos os requisitos legais, nasce o direito à progressão. Improvimento do agravo interposto pelo Ministério Público” (Ag. Ex. 473.684-7-00 – 3ª Cam. Crim. – Rel. Junqueira Sangirardi – j. 14.06.05).
“Execução penal. Progressão de regime. Requisitos do art. 112, da LEP. A partir da Lei n° 10.792/03, à progressão de regime, dois são os requisitos: bom comportamento carcerário e cumprimento de 1/6 da pena. Nada mais pode ser exigido, sob pena de violar a legalidade em prejuízo do cidadão. Atendidos os requisitos, o apenado faz jus à concessão da progressão de regime – direito subjetivo público. À unanimidade, deram provimento” (Ag. Ex. 70013715297 – 5ª Câm. Crim., Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 08.02.06).
O fato é que a avaliação técnica, se fosse o caso de mantê-la, deveria ser feita precipuamente antes de se iniciar a execução da pena (art. 34, caput, Código Penal), no sentido de individualizar o tratamento penitenciário a cada preso, ou seja, com o fim de identificar o melhor modo de execução da pena em relação às peculiaridades comportamentais e emocionais de cada sentenciado. Ora, se o sentenciado apresenta desvio psicológico ou insanidade psíquica, tal circunstância deve ser diagnosticada no início da execução da pena, de sorte a permitir que durante o cumprimento da reprimenda ele seja acompanhado por profissionais que possam prepará-lo para a liberdade. Mas, infelizmente, no sistema atual não é o que ocorre. Na verdade, a execução penal, tal como ela é feita atualmente no Brasil, viola a suposta finalidade terapêutica da pena privativa de liberdade, afrontando a Lei de Execuções Penais e o art. 5º(6), do Pacto de San José da Costa Rica de 1969, ratificado pelo Brasil.
Agora, o que não se pode é exigir que, depois de anos encarcerado nas masmorras do sistema penitenciário nacional, sujeito a toda sorte de infortúnios (brigas entre os internos, luta pela sobrevivência em razão da “lei do mais forte”, rebeliões, truculência dos agentes policiais, marginalização, desumanização, punições sumárias, submissão à barbárie dos Comandos, etc), o sentenciado apresente discurso lúcido e cortês, sanidade psíquica e comportamento nobre. Em outras palavras, exigir que o sentenciado torne-se um cavalheiro, depois de anos encarcerado, é desconhecer o pandemônio que é o sistema prisional brasileiro.
A propósito, a exposição de motivos do Código Penal se refere à prisão como um método de “tratamento” penal muitas vezes inadequado e pernicioso, que pode trazer “conseqüências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho”.
A partir dessa perspectiva, Michel Foucault conclui que “a detenção provoca a reincidência, depois de sair da prisão, se têm mais chances que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos. (...) A prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos” (Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 221).
No mesmo sentido, ensina Winfried Hassemer que
“as penas privativas de liberdade estigmatizam e desabituam (entwöhnt). Elas mantêm os presos isolados não só em um espaço, mas também socialmente.’Educação para a liberdade através da privação da liberdade’ não é apenas o título bem elaborado de uma publicação, mas expressa o evidente paradoxo das modernas teoria das da pena. O preso é privado amplamente dos seus contatos íntimos e sociais. Ele é levado a um ambiente social que o mantém afastado dos problemas, nos quais ele fracassou fora do estabelecimento (que lhe criavam também novos problemas). Ele desaprende as técnicas sociais de convívio e de aprovação (e inclusive aprende outras). E ao término do tempo da pena ele volta, desabituado e estigmatizado a um mundo que, fora dos muros da prisão, se desenvolveu de acordo com as suas próprias leis”. O autor prossegue: “a execução do tratamento encontra-se sob a inconveniente condição de que o preso deve ‘expiar’ durante este tempo (ou uma parte deste tempo), sem que ele possa compreender a produtividade deste tempo, de modo que a resistência e o endurecimento pelo menos colocam em grave perigo o êxito do tratamento”. E finaliza com maestria: “O Direito Penal tem a tarefa de limitar o poder, que seja ele praticado com o melhor intuito terapêutico” (em Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 378 e 381).
Além do que foi exposto até aqui, é de se registrar que o malfadado exame não tem mais previsão em lei desde a entrada em vigor da Lei 10.792/03, que alterou a Lei de Execução Penal.
Assim, os juízos de execução penal do país exigem requisito não mais contemplado pela lei para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional, o que viola o princípio-mor do Direito Penal: o da legalidade.
Se não há previsão em lei, como pode o juiz exigir que o requerente se submeta ao exame criminológico? Diz-se que este é facultativo, porém nada diz a lei sobre tal facultatividade. Na verdade, a lei é omissa. Ora, se é omissa, considera-se que o exame não é mais exigível (interpretação mais favorável ao réu e mais harmônica com o princípio da legalidade), e em que pese o teor da súmula vinculante n° 26 do Supremo Tribunal Federal e da súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça.
Na verdade, a lei antiga, antes da alteração trazida pela Lei 10.792/03, já previa a facultatividade do exame criminológico. Então, se o ordenamento outrora vigente previa a facultatividade do exame e a lei nova retirou por completo qualquer menção da Lei de Execução Penal ao referido laudo não faz sentido dizer que a facultatividade ainda persiste. Se o legislador o extirpou da lei, entende-se que o exame não é mais requisito, obrigatório ou facultativo, para a progressão de regime ou do livramento condicional.
Pela mesma ótica, decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em julgamento paradigmático:
“A Lei 10.782/2003, reconhecendo tudo isto, substituiu o parágrafo único do art. 112 da LEP por dois outros parágrafos sem aludir, contudo, ao referido exame. A ausência de previsão expressa sobre a própria existência do exame criminológico quando da apreciação do requerimento de progressão de regime impede, por conta do princípio da legalidade, que o magistrado assim o exija” (HC 2007.059.06898 – 7ª C. Crim. – Des. Rel. Geraldo Prado –j. 19.12.07).
De qualquer maneira, mesmo que se entenda pela suposta facultatividade do exame criminológico (tese que se percebe desprovida de qualquer base jurídico-científica e dirigida por uma política criminal que se destina à segregação a todo custo de marginalizados), a exigência do citado exame “viola o princípio da laicização do Direito, defesa contra a tendência expansionista do Estado de se imiscuir nas liberdades de escolha e de autodeterminação dos indivíduos” (HC 2007.059.06898 – TJRJ).
Tendo em vista esse panorama é que o exame criminológico, requisito não mais exigido por lei (mas ainda exigido pelos juízes!), não passa de uma farsa a serviço do expansionismo penal.
Referências bibliográficas
COSTA, Álvaro Mayrink da. Exame criminológico, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1989.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998.
WINFRIED, Hassemer. Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
Por José Carlos Portella Júnior
Fonte: ConJur
Não obstante cumpra o condenado com os requisitos objetivos (fração de pena cumprida e, quando exigido por lei, a reparação de dano à vítima) e subjetivos para o reconhecimento do direito (bom comportamento carcerário e, quando exigido por lei, a demonstração da possibilidade de prover licitamente a sua subsistência), sói acontecer de o juiz da execução penal decidir pelo indeferimento do pleito, somente em razão do contido nos laudos técnicos, ignorando todos os demais requisitos elencados pela lei.
Quanto aos conteúdos dos laudos psicológicos e psiquiátricos que formam o chamado “exame criminológico”, estes são, pelo que se observa na prática, extremamente lacônicos e sem apuro técnico, de modo que não poderiam tais documentos, por si sós, impedir a concessão da medida, ainda mais levando em consideração que eles não vinculam o juiz (ex vi do artigo 182 do Código de Processo Penal).
É inegável que o laudo tem valor relativo em razão de sua natureza meramente opinativa, devendo ser analisado conjuntamente com os demais requisitos exigidos para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional. Assim, o juiz não fica adstrito às conclusões extraídas pelos peritos, ainda mais quando as condições pessoais do requerente indicam a viabilidade da fixação de regime prisional mais brando ou até mesmo a sua colocação em liberdade condicional.
Note-se que os Tribunais têm reconhecido o valor relativo do laudo:
“Não se pode beneficiar em demasia o exame criminológico, que representa, apenas, um instrumento de auxílio do Juiz, sem vinculá-lo às suas conclusões. Assim, a autoridade judiciária não fica adstrita às opiniões ou presunções estabelecidas no trabalho pericial, podendo decidir contrariamente a elas sempre que julgar conveniente em nome do interesse maior que é o social” (STJ – RT 716/422).
“O Magistrado não está vinculado de modo absoluto à conclusão do laudo criminológico, para fins de progressão de regime prisional, vez que aquele tem natureza meramente opinativa” (TACRSP – RJDTACRIM 24/31).
O que se verifica na prática é que muitas vezes o requerente “reprovado” no exame criminológico apresenta bom comportamento carcerário, conduta tranqüila, saúde psíquica e, frequentemente, apoio familiar. Condições essas, portanto, mais do que favoráveis para a concessão da medida requerida.
Ademais, tais condições, por demonstrarem a intenção do apenado de retornar à sociedade, deveriam preponderar sobre as conclusões supostamente desfavoráveis dos laudos técnicos, estes de vago teor subjetivo, os quais se restringem a afirmar, sem maior fundamentação, que o condenado “apresenta juízo crítico empobrecido e ausência de arrependimento”, que “não está apto a progredir de regime, apesar de apresentar normalidade psíquica”, “que não manifesta arrependimento sobre seus atos” ou que “não está preparado para introjetar novos valores sociais” – apenas para citar alguns dos clichês comumente empregados pelo expertos.
Aliás, a experiência profissional do autor deste artigo como advogado criminalista não deixa escapar o fato de que o conteúdo dos laudos são em sua maioria idênticos a outros já realizados e referentes a outros condenados, como se, curiosamente, todos os indivíduos encarcerados tivessem o mesmo perfil psicológico.
Outro fato que chama atenção é a falta de indicação das razões que levaram à conclusão do perito. O perito conclui, por exemplo, que o requerente apresenta “ausência de autocrítica”, mas os motivos de tal conclusão nunca são expostos no laudo. O perito afirma “é isso”, empregando uma linguagem técnica, vazia de sentido e hermética, sem indicar no laudo os dados em que se baseou a sua investigação.
Além do mais, os laudos não respeitam o contraditório, pois não indicam a metodologia empregada pelos expertos. Não se sabe se a avaliação se dá com base em uma mera entrevista, e qual sua duração (30min., 1h, etc), ou se a avaliação toma como base toda a vida carcerária do indivíduo, levando em consideração seu comportamento no cárcere, sua relação com os agentes penitenciários, com os demais encarcerados, suas relações familiares, etc. E mais: não se sabem sequer quais foram as perguntas formuladas ao encarcerado durante o exame. Tudo isso é kafkaniano!
O que se vê amiúde é que o requerente “reprovado” pelos peritos é um indivíduo comum, que tem suas ambições e que não aceita frustrações, que busca aceitação, que não assume seus erros, que disfarça seus conflitos, que tem dificuldade de se relacionar com outros seres humanos. E só por ser um homem comum, imperfeito, falível, imaturo, angustiado, ele merece a prisão para sempre? Nesse caso, a prisão será a melhor “terapia” para o apenado? Se ele conta com o apoio familiar, tem bom comportamento carcerário, e não é um indivíduo perigoso ou um sociopata, não está ele apto à progressão de regime ainda sim? O que mais se exige de um ser humano normal?
Bem por isso, os Tribunais têm admitido a concessão da progressão de regime e de livramento condicional apesar do laudo criminológico desfavorável:
“Agravo em execução penal. No confronto entre laudos do Centro de Observação Criminológica – COC e a vida prisional, esta prepondera para reconhecimento de direitos do apenado. Agravo provido, para a progressão de regime carcerário” (TJRS – RJTJERGS 209/100).
“Indispensável é a importância do saber técnico especializado, quando se tratar de aferir aspectos íntimos e subjetivos da personalidade do sentenciado, em ordem à progressão de regime. O parecer da Comissão Técnica de Classificação, portanto, só sobrepõe-se à opinião do leigo; mas não é de bom exemplo superestimá-lo, em detrimento do sentenciado que não se mostre, de plano, desmerecedor do benefício. Não raro o prognostico sombrio quanto à recuperação do sentenciado cede à expectativa de que honre o voto de confiança que lhe depositou a Justiça e efetivamente se reeduque para o retorno à comunhão social. Satisfeitos os requisitos da lei, e reconhecida a compatibilidade do condenado com o novo regime, não pode o Juiz negar-lhe a progressão (TACRSP – RJTACRIM 46/35).
O fato de o interno não apresentar discurso e comportamento desejado pelos peritos jamais poderia ser invocado como obstáculo à concessão da medida pleiteada, pois não cabe ao Estado violar a consciência do apenado, forçando-o a “introjetar valores” e a modificar a sua personalidade, tudo para se tornar um “bom cidadão”. Tampouco cabe ao Estado obrigar o sentenciado a admitir sua responsabilidade no crime pelo qual foi condenado, visto que tal circunstância pouca relevância tem para o cumprimento adequado da pena, além do que isso pode servir como tática de intimidação contra aquele que está em posição de subserviência. A aceitação da expiação do “pecado” e a reconciliação são questões de foro íntimo e, como tais, não devem ser esmiuçadas pelos órgãos punitivos estatais.
De qualquer modo, mesmo que ao Estado fosse lícita tal atividade, como poderia o encarcerado não apresentar ”comportamento desviado” se ele se encontra encarcerado, afastado da sociedade dos gentios, e vive em um ambiente cruel em que vigoram outras leis, outra moral?
O papel do Estado na execução penal é o de favorecer a reinserção social do condenado, promovendo a sua alfabetização e profissionalização (o que não o faz adequadamente, diga-se), e não o de impor valores ao apenado (função já dissecada por Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir), de modo a extirpar sua individualidade e torná-lo um indivíduo “dócil”, sem paixões, ou seja, um ser autômato e produtivo, bem ao gosto da sociedade de consumo.
Tal atitude, a de impor valores morais ao condenado, fere o princípio da secularização do Direito Penal, dado que valores extrajurídicos não podem ser invocados para fundamentar a gravidade da pena, ou, neste caso, a sua quase perpetuidade.
Nesse sentido, a jurisprudência endossa a tese defensiva:
“Agravo de execução. Progressão. Supervalorização do fato delituoso, de que resultou condenação, exigindo os peritos que o apenado assuma o delito e se arrependa. O Estado não está legitimado a modificar a personalidade do agente e a prisão não é ‘lavagem cerebral’. A aferição do mérito do condenado se funda em sua conduta presente. Divergência entre as visões jurídico-penal e psiquiátrica. Agravo provido, para deferir progressão” (TJRS – RJTJERGS 197/66).
“Agravo de execução. Progressão e serviço externo. Condições pessoais – O arrependimento do condenado refoge aos objetivos da pena. Ao Estado incumbe propiciar ao apenado condições de reinserção social, sem violentar a sua consciência pessoal. O estado social de direito intervém para proteger (a sociedade) e promover (o individuo condenado), fazendo da execução ‘treinamento’ para a liberdade. E o estado democrático de direito preconiza o direito à divergência (pluralismo). A progressão ao regime semi-aberto não implica soltura do apenado. Agravo provido” (TJRS – RJTJERGS).
Não é demais lembrar que, em outros tempos, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul, seguindo a vanguarda da Criminologia e atentos à falácia dos discursos e dos aparatos técnico-psicológicos sobre o comportamento do apenado (ou o biopoder, nos termos de Foucault), já dispensaram, com base na Lei n° 10.792/03 (que alterou o art. 112 da Lei de Execução Penal), a exigência do malfadado “Exame Criminológico” para a concessão das medidas da execução penal. Vejamos os seguintes julgados:
“Agravo em Execução. Cumprimento da pena privativa de liberdade. Progressão de regime fechado para semi-aberto. Bom comportamento carcerário atestado pelo diretor do estabelecimento. Não há que se levar em conta a vida pregressa do réu. Desnecessidade de realização do exame criminológico graças à nova redação do art. 112 da LEP dada pela Lei n° 10.792/03. Satisfeitos os requisitos legais, nasce o direito à progressão. Improvimento do agravo interposto pelo Ministério Público” (Ag. Ex. 473.684-7-00 – 3ª Cam. Crim. – Rel. Junqueira Sangirardi – j. 14.06.05).
“Execução penal. Progressão de regime. Requisitos do art. 112, da LEP. A partir da Lei n° 10.792/03, à progressão de regime, dois são os requisitos: bom comportamento carcerário e cumprimento de 1/6 da pena. Nada mais pode ser exigido, sob pena de violar a legalidade em prejuízo do cidadão. Atendidos os requisitos, o apenado faz jus à concessão da progressão de regime – direito subjetivo público. À unanimidade, deram provimento” (Ag. Ex. 70013715297 – 5ª Câm. Crim., Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 08.02.06).
O fato é que a avaliação técnica, se fosse o caso de mantê-la, deveria ser feita precipuamente antes de se iniciar a execução da pena (art. 34, caput, Código Penal), no sentido de individualizar o tratamento penitenciário a cada preso, ou seja, com o fim de identificar o melhor modo de execução da pena em relação às peculiaridades comportamentais e emocionais de cada sentenciado. Ora, se o sentenciado apresenta desvio psicológico ou insanidade psíquica, tal circunstância deve ser diagnosticada no início da execução da pena, de sorte a permitir que durante o cumprimento da reprimenda ele seja acompanhado por profissionais que possam prepará-lo para a liberdade. Mas, infelizmente, no sistema atual não é o que ocorre. Na verdade, a execução penal, tal como ela é feita atualmente no Brasil, viola a suposta finalidade terapêutica da pena privativa de liberdade, afrontando a Lei de Execuções Penais e o art. 5º(6), do Pacto de San José da Costa Rica de 1969, ratificado pelo Brasil.
Agora, o que não se pode é exigir que, depois de anos encarcerado nas masmorras do sistema penitenciário nacional, sujeito a toda sorte de infortúnios (brigas entre os internos, luta pela sobrevivência em razão da “lei do mais forte”, rebeliões, truculência dos agentes policiais, marginalização, desumanização, punições sumárias, submissão à barbárie dos Comandos, etc), o sentenciado apresente discurso lúcido e cortês, sanidade psíquica e comportamento nobre. Em outras palavras, exigir que o sentenciado torne-se um cavalheiro, depois de anos encarcerado, é desconhecer o pandemônio que é o sistema prisional brasileiro.
A propósito, a exposição de motivos do Código Penal se refere à prisão como um método de “tratamento” penal muitas vezes inadequado e pernicioso, que pode trazer “conseqüências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho”.
A partir dessa perspectiva, Michel Foucault conclui que “a detenção provoca a reincidência, depois de sair da prisão, se têm mais chances que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos. (...) A prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos” (Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998, p. 221).
No mesmo sentido, ensina Winfried Hassemer que
“as penas privativas de liberdade estigmatizam e desabituam (entwöhnt). Elas mantêm os presos isolados não só em um espaço, mas também socialmente.’Educação para a liberdade através da privação da liberdade’ não é apenas o título bem elaborado de uma publicação, mas expressa o evidente paradoxo das modernas teoria das da pena. O preso é privado amplamente dos seus contatos íntimos e sociais. Ele é levado a um ambiente social que o mantém afastado dos problemas, nos quais ele fracassou fora do estabelecimento (que lhe criavam também novos problemas). Ele desaprende as técnicas sociais de convívio e de aprovação (e inclusive aprende outras). E ao término do tempo da pena ele volta, desabituado e estigmatizado a um mundo que, fora dos muros da prisão, se desenvolveu de acordo com as suas próprias leis”. O autor prossegue: “a execução do tratamento encontra-se sob a inconveniente condição de que o preso deve ‘expiar’ durante este tempo (ou uma parte deste tempo), sem que ele possa compreender a produtividade deste tempo, de modo que a resistência e o endurecimento pelo menos colocam em grave perigo o êxito do tratamento”. E finaliza com maestria: “O Direito Penal tem a tarefa de limitar o poder, que seja ele praticado com o melhor intuito terapêutico” (em Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 378 e 381).
Além do que foi exposto até aqui, é de se registrar que o malfadado exame não tem mais previsão em lei desde a entrada em vigor da Lei 10.792/03, que alterou a Lei de Execução Penal.
Assim, os juízos de execução penal do país exigem requisito não mais contemplado pela lei para a concessão da progressão de regime ou do livramento condicional, o que viola o princípio-mor do Direito Penal: o da legalidade.
Se não há previsão em lei, como pode o juiz exigir que o requerente se submeta ao exame criminológico? Diz-se que este é facultativo, porém nada diz a lei sobre tal facultatividade. Na verdade, a lei é omissa. Ora, se é omissa, considera-se que o exame não é mais exigível (interpretação mais favorável ao réu e mais harmônica com o princípio da legalidade), e em que pese o teor da súmula vinculante n° 26 do Supremo Tribunal Federal e da súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça.
Na verdade, a lei antiga, antes da alteração trazida pela Lei 10.792/03, já previa a facultatividade do exame criminológico. Então, se o ordenamento outrora vigente previa a facultatividade do exame e a lei nova retirou por completo qualquer menção da Lei de Execução Penal ao referido laudo não faz sentido dizer que a facultatividade ainda persiste. Se o legislador o extirpou da lei, entende-se que o exame não é mais requisito, obrigatório ou facultativo, para a progressão de regime ou do livramento condicional.
Pela mesma ótica, decidiu recentemente o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em julgamento paradigmático:
“A Lei 10.782/2003, reconhecendo tudo isto, substituiu o parágrafo único do art. 112 da LEP por dois outros parágrafos sem aludir, contudo, ao referido exame. A ausência de previsão expressa sobre a própria existência do exame criminológico quando da apreciação do requerimento de progressão de regime impede, por conta do princípio da legalidade, que o magistrado assim o exija” (HC 2007.059.06898 – 7ª C. Crim. – Des. Rel. Geraldo Prado –j. 19.12.07).
De qualquer maneira, mesmo que se entenda pela suposta facultatividade do exame criminológico (tese que se percebe desprovida de qualquer base jurídico-científica e dirigida por uma política criminal que se destina à segregação a todo custo de marginalizados), a exigência do citado exame “viola o princípio da laicização do Direito, defesa contra a tendência expansionista do Estado de se imiscuir nas liberdades de escolha e de autodeterminação dos indivíduos” (HC 2007.059.06898 – TJRJ).
Tendo em vista esse panorama é que o exame criminológico, requisito não mais exigido por lei (mas ainda exigido pelos juízes!), não passa de uma farsa a serviço do expansionismo penal.
Referências bibliográficas
COSTA, Álvaro Mayrink da. Exame criminológico, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1989.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 17ª ed., Petrópolis: Vozes, 1998.
WINFRIED, Hassemer. Introdução aos fundamentos do Direito Penal, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.
Por José Carlos Portella Júnior
Fonte: ConJur
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