Minha falta de personalidade não para de me encabular.
Em algum instante de um passado recente, uma erva medicinal e uma bebida, cuja combinação à mesa sempre levantou as mais fundadas suspeitas gastronômicas, transformaram o vaqueiro num “peão” – que até então ninguém no Nordeste tinha a menor idéia de onde tinha vindo nem pra onde ia. Desde este dia que eu defendo e torço com todas as minhas forças pra alguém tomar alguma atitude mais enérgica pra tentar estancar este processo de completa extinção da memória da música nordestina autêntica, tradicional.
Agora, quando alguém finalmente toma esta atitude, bato pino.
Pergunto a mim mesmo se será apenas esta minha falta de personalidade crônica que não permite que eu endosse integralmente as restrições que o secretário Chico César faz em relação a estas manifestações musicais regionais que não têm o brilho d’outrora, mesmo tendo sonhado que alguém tivesse a coragem de fazer isso durante tanto tempo.
Porque discriminação eu mesmo faço, na minha casa, com todo orgulho. Discrimino, mesmo. Posso, devo, faço e não tem quem empate. Há uma sanfona em minha casa, em cujas teclas e baixos vez por outra me arrisco, e que proporciona a mim e aos meus uma diversão renovadora de final de semana. Pertenceu ao saudoso Josinaldo, que a transmitiu a Braz do Congo, que, por sua vez, confiou-a a mim através de Robertinho, pra que eu lhe desse algum uso, por pobre e limitado que fosse. Está sob os meus cuidados. Dela, não sai o que eu acho que não presta. Quer acabar com a brincadeira? Insista. Já acho desrespeito suficiente eu me valer dela pra fazer o que eu faço. Agora, submetê-la à desonra dos desmandos musicais deste mundo ingrato, aí nem pensar. Seria fazer o lendário mestre se revirar em seu lugar de descanso eterno.
Mas isso é lá em casa, onde, na ausência de minha mulher, mando eu.
Houve um tempo em que tudo fazia sentido no forró nordestino. Na casa de meus pais, tios e avós, onde se ouvia Luiz Gonzaga, Marinês, Trio Nordestino, os Três do Nordeste, Genival Lacerda, as letras cantavam as coisas da terra, do amor e do povo, as melodias eram simples, singelas, sutis, sem muita elaboração, mas poéticas e agradáveis. Até os nomes dos artistas e das atrações pareciam mais verdadeiros, mais honestos. Havia outras vertentes de música, umas mais socialmente engajadas, outras mais engraçadas, irreverentes, até picantes, mas que também divertiam o público.
As manifestações musicais de hoje, em todos os gêneros, nos permitem algo que nunca antes da história da cultura, neste ou em outro país, tinha sido possível: a constatação objetiva do mau gosto. Nas aulas de Direito Autoral, tenho o hábito de provocar os alunos a discutir conteúdo estético como requisito essencial para que determinada obra artística tenha sua proteção reconhecida pelo sistema jurídico. Faço questão de esclarecer que a noção de conteúdo estético não tem a função nem a condição, por si só, de separar as obras nas categorias de mau gosto e bom gosto.
Lembro de memória que artistas como Capilé, Jorge de Altinho, Assisão e Alcimar Monteiro, apenas citando alguns exemplos, já representavam e promoviam, a seu tempo, uma certa evolução no estilo de forró que até então se considerava tradicional. Não me recordo, contudo, daquele movimento causar tanto incômodo nem desconforto, muito menos o grau de revolta de hoje. Isto sugere que aquela transformação era encarada como positiva, modernizava a sonoridade, a linguagem, abria espaço para novos nomes, novos projetos, contribuições, mas sem degenerar o petróleo bruto de onde a nova gasolina aditivada tinha saído. De fato, mesmo depois de todo o redesenho rítmico, musical, harmônico e estético do estilo, no final das contas, Jorge de Altinho ainda cantava Petrúcio Amorim, que defendia a verdade melosa de que “(...) enquanto a cabeça não sabe o que o coração sente/navega o corpo vadio em mares de amor (...)”. Ali, a essência ainda existia em esplendor. Claro que havia a discussão. Popular demais pra alguns, simplório ou piegas pra outros, autêntica pra alguns outros, o fato é que esta discussão é legítima sempre, e representa bem a dificuldade estética conceitual de se distinguir o belo do feio, o bom do mau gosto.
Mas esta dificuldade se reduz a zero, quando a sensibilidade se externa, por exemplo, através da conclusão de que “Amor de rapariga não vinga não (...)”, quando o pagode sugere, sem muita doçura que “(...) então amasse a latinha com a bunda/senta, senta” ou quando o lirismo sensível do funk da Tati sugere sem tanto pudor “(...) Abre as pernas, mete a língua”. O extremo de licença poética às vezes pode ser percebido na mera enumeração das canções que integram um determinado CD, como “Te deixar Taradinha/Dança da Cobra/Senta Relaxa/Pegue Aqui/É bem Docim Mamãe/Tapinha na Bundinha/Minhoca Aí” (tudo isso num CD só), entre diversas outras. Problema resolvido. Mau gosto detectado com margem de erro zero. São cenas musicais de sexo explícito, pornomúsica que não se pode sequer cantarolar na frente de crianças ou em ambientes em que a embriaguez absoluta não tenha destruído os freios inibitórios e morais de todos os presentes.
Mentira descarada ou preguiça intelectual imperdoável de quem diz que esta é a forma do povo se expressar. Não é não. Nasci e cresci num bairro humilde. Conheço e convivo com muita gente de periferia. Não é assim que nos expressamos, nem essa é a única forma possível pra alguém se expressar. Estas manifestações não são fruto de falta de alternativa de expressão; são o resultado de uma opção errada de manifestação, deturpada por quem encara liberdade apenas como uma garantia pessoal geradora de direitos, e não como um privilégio social gerador de deveres. Não se lutou e conquistou o direito de se expressar livremente em público para garantir excessos de flagrante, nocivo e objetivo mau gosto, com a mera finalidade de conseguir atenção e os demais dividendos – dinheiro, popularidade, poder e espaço em divulgação – que a notoriedade moderna proporciona.
Apesar da pobreza estética de hoje permitir esta constatação objetiva do mau gosto, repito, esta conclusão pode produzir efeitos lá em casa. Eu, cidadão, posso fazer esta distinção. Meu vizinho pode, o produtor musical também pode, o crítico pode, o veículo de comunicação pode, o artista Chico César também tem esse direito. Mas, observando essa polêmica recente, e os seus desdobramentos, tenho a convicção de que o agente público Chico César não tem essa prerrogativa de fazer o que eu sempre desejei, o que sempre torci que ele fizesse.
E olhe que os melhores argumentos não lhe faltam. É a música tradicional que sofre o preconceito do dia-a-dia, é ela que vem sendo banida dos canais de comunicação, produção e distribuição comercial dos dias de hoje, é a ela que se nega o espaço, a sobrevida, a exposição que permite a perpetuação. Poderíamos, sim, como argumentou o secretário, tratar da continuidade desta espécie de manifestação artística através de políticas públicas de inclusão, da mesma forma como se faz com minorias sócio-econômico-raciais no Brasil de hoje, afinal de contas, estas mega atrações mais recentes há muito tempo já não são apenas manifestações culturais; são impérios econômicos, atividades meramente empresariais, indústrias de arte de massa, basta ver a forma como este tipo de música é elaborado em verdadeiras linhas de produção automatizadas, moldes, padrões de repetição que chegam ao limite de permitir o questionamento acerca da presença de alguma atividade criativa no processo. Esta indústria se disfarça de arte pra concorrer com a própria arte em condições que, segundo alega, devem ser de absoluta igualdade, como se não fossem desiguais em essência.
Apesar de tudo isso, a perspectiva de intervenção do poder público neste domínio me arrepia dos pés à cabeça. A sociedade brasileira abraça e defende com unhas e dentes o princípio da ampla liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. A verdade – dolorosa, incômoda, mas verdade – é que esta expressão não está obrigada a ser compatível com o padrão de bom gosto de um determinado segmento social, econômico, etário ou intelectual. Ao cidadão brasileiro, portanto, é assegurado o direito fundamental ao mau gosto, mesmo objetivamente constatado, e ainda que sabidamente prejudicial aos olhos, aos ouvidos, estômagos e cérebros.
A questão que veio à tona na Paraíba, portanto, não é somente de incentivar o mais frágil e tradicional, e deixar o mais forte e comercial entregue às regras de mercado. A pretexto de oferecer as opções artísticas que determinado gestor entende adequadas, o poder público interfere no domínio cultural, endossa um estilo de arte em detrimento de outro, seleciona repertórios intelectuais e acaba por tomar uma decisão semântica, que eticamente não poderia tomar em nome do cidadão. Nada me parece mais invasivo e impertinente, do ponto de vista da influência do Estado na formação da opinião pública, da personalidade do indivíduo e da consciência cultural.
Não tenho dúvida alguma a respeito do acerto da posição do secretário, que, aliás, muito mais do que uma posição pessoal, me parece ser uma política governamental ampla e genérica de valorização de cultura e de tradições populares. Levadas em consideração as circunstâncias da região, a contraposição entre a realidade econômica dos grandes e pequenos artistas, os recursos escassos de que dispõe o Estado para apoio a festejos e eventos turísticos de massa, as prioridades estabelecidas pela gestão e o cenário cultural do São João, essa parece mesmo ser a política correta para o momento, sem tirar nem pôr.
O caso particular, portanto, é muito menos polêmico do que o que parece ser. O poder público tem recursos limitados, e precisa, por imperativo fiscal e moral, gastar menos. As atrações mais caras vão continuar a ocupar o espaço que sempre tiveram, por meio dos canais que sempre estiveram abertos a elas: iniciativa privada e meios de comunicação de massa de enorme alcance. Nenhum prejuízo para o evento, para o público, para os profissionais, empresários ou para o Estado. Nenhuma crítica à decisão administrativa para o caso, se o propósito é apenas inclusivo em relação aos artistas de menor expressão, e econômico em relação aos cofres públicos.
A única preocupação que fica é o fato do agente público, nesta condição, desempenhando a sua função, rotular uma determinada forma de expressão artística – e não importa seja esta forma de expressão de ótimo ou péssimo gosto – para fazer valer uma concepção pessoal de arte, seus valores culturais individuais – e, de novo, não importa o quão sofisticados e refinados forem estes valores individuais.
O Estado deve preservar o patrimônio cultural. Deve garantir apoio às manifestações tradicionais, mas precisa alavancar os eventos de turismo. Precisa ser isonômico no tratamento dos artistas, mas deve levar em consideração as distinções de dimensão e de acesso aos canais convencionais de divulgação entre eles. Precisa proteger crianças de conteúdo nocivo à sua formação, mas tem obrigação de respeitar a liberdade de expressão e manifestação do pensamento, mesmo sendo esta expressão de objetivo mau gosto. Deve oferecer opções culturais e de lazer construtivas, edificantes, mas não pode, a critério de um agente seu, impedir o exercício do direito fundamental ao mau gosto.
A verdade é que a questão não tem solução fácil. Não é tema para caça às bruxas nem reações destemperadas, de qualquer dos envolvidos. Com um pouco de jogo de cintura, poderia ser tratada às escondidas, sem polêmica e sem solavancos a vida inteira, mas já que apareceu, precisamos reconhecer que é importante, e que alguém já deveria ter tido a iniciativa de levantá-la. Chegou a hora de discutir – é bom não desviar o foco desta questão, que é a que realmente importa – qual o limite da intervenção do Estado no domínio cultural para que ele cumpra os seus papéis institucionais e constitucionais sem invadir as garantias individuais do cidadão.
O secretário formulou uma política correta, consciente, mas anunciou do jeito errado.
Escolheu, sem sombra de dúvida, o destino certo, mas esqueceu-se que a essência da boa prática democrática nos recomenda a tentar chegar lá por outro caminho, por difícil que seja.
Este o Brasil já trilhou e já viu que não serve. O risco é alto demais.
Por Cláudio Lucena - UEPB
Fonte: ConJur
Em algum instante de um passado recente, uma erva medicinal e uma bebida, cuja combinação à mesa sempre levantou as mais fundadas suspeitas gastronômicas, transformaram o vaqueiro num “peão” – que até então ninguém no Nordeste tinha a menor idéia de onde tinha vindo nem pra onde ia. Desde este dia que eu defendo e torço com todas as minhas forças pra alguém tomar alguma atitude mais enérgica pra tentar estancar este processo de completa extinção da memória da música nordestina autêntica, tradicional.
Agora, quando alguém finalmente toma esta atitude, bato pino.
Pergunto a mim mesmo se será apenas esta minha falta de personalidade crônica que não permite que eu endosse integralmente as restrições que o secretário Chico César faz em relação a estas manifestações musicais regionais que não têm o brilho d’outrora, mesmo tendo sonhado que alguém tivesse a coragem de fazer isso durante tanto tempo.
Porque discriminação eu mesmo faço, na minha casa, com todo orgulho. Discrimino, mesmo. Posso, devo, faço e não tem quem empate. Há uma sanfona em minha casa, em cujas teclas e baixos vez por outra me arrisco, e que proporciona a mim e aos meus uma diversão renovadora de final de semana. Pertenceu ao saudoso Josinaldo, que a transmitiu a Braz do Congo, que, por sua vez, confiou-a a mim através de Robertinho, pra que eu lhe desse algum uso, por pobre e limitado que fosse. Está sob os meus cuidados. Dela, não sai o que eu acho que não presta. Quer acabar com a brincadeira? Insista. Já acho desrespeito suficiente eu me valer dela pra fazer o que eu faço. Agora, submetê-la à desonra dos desmandos musicais deste mundo ingrato, aí nem pensar. Seria fazer o lendário mestre se revirar em seu lugar de descanso eterno.
Mas isso é lá em casa, onde, na ausência de minha mulher, mando eu.
Houve um tempo em que tudo fazia sentido no forró nordestino. Na casa de meus pais, tios e avós, onde se ouvia Luiz Gonzaga, Marinês, Trio Nordestino, os Três do Nordeste, Genival Lacerda, as letras cantavam as coisas da terra, do amor e do povo, as melodias eram simples, singelas, sutis, sem muita elaboração, mas poéticas e agradáveis. Até os nomes dos artistas e das atrações pareciam mais verdadeiros, mais honestos. Havia outras vertentes de música, umas mais socialmente engajadas, outras mais engraçadas, irreverentes, até picantes, mas que também divertiam o público.
As manifestações musicais de hoje, em todos os gêneros, nos permitem algo que nunca antes da história da cultura, neste ou em outro país, tinha sido possível: a constatação objetiva do mau gosto. Nas aulas de Direito Autoral, tenho o hábito de provocar os alunos a discutir conteúdo estético como requisito essencial para que determinada obra artística tenha sua proteção reconhecida pelo sistema jurídico. Faço questão de esclarecer que a noção de conteúdo estético não tem a função nem a condição, por si só, de separar as obras nas categorias de mau gosto e bom gosto.
Lembro de memória que artistas como Capilé, Jorge de Altinho, Assisão e Alcimar Monteiro, apenas citando alguns exemplos, já representavam e promoviam, a seu tempo, uma certa evolução no estilo de forró que até então se considerava tradicional. Não me recordo, contudo, daquele movimento causar tanto incômodo nem desconforto, muito menos o grau de revolta de hoje. Isto sugere que aquela transformação era encarada como positiva, modernizava a sonoridade, a linguagem, abria espaço para novos nomes, novos projetos, contribuições, mas sem degenerar o petróleo bruto de onde a nova gasolina aditivada tinha saído. De fato, mesmo depois de todo o redesenho rítmico, musical, harmônico e estético do estilo, no final das contas, Jorge de Altinho ainda cantava Petrúcio Amorim, que defendia a verdade melosa de que “(...) enquanto a cabeça não sabe o que o coração sente/navega o corpo vadio em mares de amor (...)”. Ali, a essência ainda existia em esplendor. Claro que havia a discussão. Popular demais pra alguns, simplório ou piegas pra outros, autêntica pra alguns outros, o fato é que esta discussão é legítima sempre, e representa bem a dificuldade estética conceitual de se distinguir o belo do feio, o bom do mau gosto.
Mas esta dificuldade se reduz a zero, quando a sensibilidade se externa, por exemplo, através da conclusão de que “Amor de rapariga não vinga não (...)”, quando o pagode sugere, sem muita doçura que “(...) então amasse a latinha com a bunda/senta, senta” ou quando o lirismo sensível do funk da Tati sugere sem tanto pudor “(...) Abre as pernas, mete a língua”. O extremo de licença poética às vezes pode ser percebido na mera enumeração das canções que integram um determinado CD, como “Te deixar Taradinha/Dança da Cobra/Senta Relaxa/Pegue Aqui/É bem Docim Mamãe/Tapinha na Bundinha/Minhoca Aí” (tudo isso num CD só), entre diversas outras. Problema resolvido. Mau gosto detectado com margem de erro zero. São cenas musicais de sexo explícito, pornomúsica que não se pode sequer cantarolar na frente de crianças ou em ambientes em que a embriaguez absoluta não tenha destruído os freios inibitórios e morais de todos os presentes.
Mentira descarada ou preguiça intelectual imperdoável de quem diz que esta é a forma do povo se expressar. Não é não. Nasci e cresci num bairro humilde. Conheço e convivo com muita gente de periferia. Não é assim que nos expressamos, nem essa é a única forma possível pra alguém se expressar. Estas manifestações não são fruto de falta de alternativa de expressão; são o resultado de uma opção errada de manifestação, deturpada por quem encara liberdade apenas como uma garantia pessoal geradora de direitos, e não como um privilégio social gerador de deveres. Não se lutou e conquistou o direito de se expressar livremente em público para garantir excessos de flagrante, nocivo e objetivo mau gosto, com a mera finalidade de conseguir atenção e os demais dividendos – dinheiro, popularidade, poder e espaço em divulgação – que a notoriedade moderna proporciona.
Apesar da pobreza estética de hoje permitir esta constatação objetiva do mau gosto, repito, esta conclusão pode produzir efeitos lá em casa. Eu, cidadão, posso fazer esta distinção. Meu vizinho pode, o produtor musical também pode, o crítico pode, o veículo de comunicação pode, o artista Chico César também tem esse direito. Mas, observando essa polêmica recente, e os seus desdobramentos, tenho a convicção de que o agente público Chico César não tem essa prerrogativa de fazer o que eu sempre desejei, o que sempre torci que ele fizesse.
E olhe que os melhores argumentos não lhe faltam. É a música tradicional que sofre o preconceito do dia-a-dia, é ela que vem sendo banida dos canais de comunicação, produção e distribuição comercial dos dias de hoje, é a ela que se nega o espaço, a sobrevida, a exposição que permite a perpetuação. Poderíamos, sim, como argumentou o secretário, tratar da continuidade desta espécie de manifestação artística através de políticas públicas de inclusão, da mesma forma como se faz com minorias sócio-econômico-raciais no Brasil de hoje, afinal de contas, estas mega atrações mais recentes há muito tempo já não são apenas manifestações culturais; são impérios econômicos, atividades meramente empresariais, indústrias de arte de massa, basta ver a forma como este tipo de música é elaborado em verdadeiras linhas de produção automatizadas, moldes, padrões de repetição que chegam ao limite de permitir o questionamento acerca da presença de alguma atividade criativa no processo. Esta indústria se disfarça de arte pra concorrer com a própria arte em condições que, segundo alega, devem ser de absoluta igualdade, como se não fossem desiguais em essência.
Apesar de tudo isso, a perspectiva de intervenção do poder público neste domínio me arrepia dos pés à cabeça. A sociedade brasileira abraça e defende com unhas e dentes o princípio da ampla liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. A verdade – dolorosa, incômoda, mas verdade – é que esta expressão não está obrigada a ser compatível com o padrão de bom gosto de um determinado segmento social, econômico, etário ou intelectual. Ao cidadão brasileiro, portanto, é assegurado o direito fundamental ao mau gosto, mesmo objetivamente constatado, e ainda que sabidamente prejudicial aos olhos, aos ouvidos, estômagos e cérebros.
A questão que veio à tona na Paraíba, portanto, não é somente de incentivar o mais frágil e tradicional, e deixar o mais forte e comercial entregue às regras de mercado. A pretexto de oferecer as opções artísticas que determinado gestor entende adequadas, o poder público interfere no domínio cultural, endossa um estilo de arte em detrimento de outro, seleciona repertórios intelectuais e acaba por tomar uma decisão semântica, que eticamente não poderia tomar em nome do cidadão. Nada me parece mais invasivo e impertinente, do ponto de vista da influência do Estado na formação da opinião pública, da personalidade do indivíduo e da consciência cultural.
Não tenho dúvida alguma a respeito do acerto da posição do secretário, que, aliás, muito mais do que uma posição pessoal, me parece ser uma política governamental ampla e genérica de valorização de cultura e de tradições populares. Levadas em consideração as circunstâncias da região, a contraposição entre a realidade econômica dos grandes e pequenos artistas, os recursos escassos de que dispõe o Estado para apoio a festejos e eventos turísticos de massa, as prioridades estabelecidas pela gestão e o cenário cultural do São João, essa parece mesmo ser a política correta para o momento, sem tirar nem pôr.
O caso particular, portanto, é muito menos polêmico do que o que parece ser. O poder público tem recursos limitados, e precisa, por imperativo fiscal e moral, gastar menos. As atrações mais caras vão continuar a ocupar o espaço que sempre tiveram, por meio dos canais que sempre estiveram abertos a elas: iniciativa privada e meios de comunicação de massa de enorme alcance. Nenhum prejuízo para o evento, para o público, para os profissionais, empresários ou para o Estado. Nenhuma crítica à decisão administrativa para o caso, se o propósito é apenas inclusivo em relação aos artistas de menor expressão, e econômico em relação aos cofres públicos.
A única preocupação que fica é o fato do agente público, nesta condição, desempenhando a sua função, rotular uma determinada forma de expressão artística – e não importa seja esta forma de expressão de ótimo ou péssimo gosto – para fazer valer uma concepção pessoal de arte, seus valores culturais individuais – e, de novo, não importa o quão sofisticados e refinados forem estes valores individuais.
O Estado deve preservar o patrimônio cultural. Deve garantir apoio às manifestações tradicionais, mas precisa alavancar os eventos de turismo. Precisa ser isonômico no tratamento dos artistas, mas deve levar em consideração as distinções de dimensão e de acesso aos canais convencionais de divulgação entre eles. Precisa proteger crianças de conteúdo nocivo à sua formação, mas tem obrigação de respeitar a liberdade de expressão e manifestação do pensamento, mesmo sendo esta expressão de objetivo mau gosto. Deve oferecer opções culturais e de lazer construtivas, edificantes, mas não pode, a critério de um agente seu, impedir o exercício do direito fundamental ao mau gosto.
A verdade é que a questão não tem solução fácil. Não é tema para caça às bruxas nem reações destemperadas, de qualquer dos envolvidos. Com um pouco de jogo de cintura, poderia ser tratada às escondidas, sem polêmica e sem solavancos a vida inteira, mas já que apareceu, precisamos reconhecer que é importante, e que alguém já deveria ter tido a iniciativa de levantá-la. Chegou a hora de discutir – é bom não desviar o foco desta questão, que é a que realmente importa – qual o limite da intervenção do Estado no domínio cultural para que ele cumpra os seus papéis institucionais e constitucionais sem invadir as garantias individuais do cidadão.
O secretário formulou uma política correta, consciente, mas anunciou do jeito errado.
Escolheu, sem sombra de dúvida, o destino certo, mas esqueceu-se que a essência da boa prática democrática nos recomenda a tentar chegar lá por outro caminho, por difícil que seja.
Este o Brasil já trilhou e já viu que não serve. O risco é alto demais.
Por Cláudio Lucena - UEPB
Fonte: ConJur
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