domingo, 21 de agosto de 2011

As lições de história do Direito em Macbeth

Embargos Culturais
Macbeth é tragédia de William Shakespeare que data provavelmente de 1606. É uma peça maldita, lembrada por muitas superstições, e recorrentemente adaptada para o cinema. No teatro, algumas representações de Macbeth foram marcadas por acidentes e apreensões. Há notícias de assassinatos ocorridos em palcos, cenários que despencaram, incêndios mal explicados. Macbeth é um problema real no contexto das tragédias de Shakespeare, especialmente para aqueles que as representaram no palco.

O enredo de Macbeth propicia inúmeras orientações temáticas. Tem-se oportunidade para estudo sobre os fundamentos do absolutismo monárquico inglês; afinal, Macbeth trata de um regicídio e da usurpação do trono. É recorrente em Shakespeare a concepção de reis ilegítimos e ineficientes.

Pode-se extrair de Macbeth uma relação com instâncias de bruxaria e de magia; o rei Jaime I, sucessor da rainha Elizabeth I, e para quem a peça fora representada, foi um estudioso da magia, sobre o que escrevera um livro muito conhecido. Jaime ao assumir o trono inglês, tinha 36 anos e era casado com uma católica dinamarquesa, mas ele próprio era um devoto protestante.

Em Macbeth tem-se a impressão de que o fantástico (...) ocupa os espaços, fantasmas abandonam seus túmulos, um bruxuleio sobrenatural tremula sobre a fronte do condenado[1]. As bruxas que aparecem em Macbeth dão pistas dos interesses de Shakespeare com o sobrenatural, embora, inegavelmente, prestam-se também para agradar ao Rei Jaime I, e sua intrigante obsessão com a bruxaria[2].

Há também amplo contexto para uma abordagem psicanalítica. Sigmund Freud valeu-se da trama de Macbeth para tentar explicar o que denominava de ruína do êxito[3]. Trata-se de patologia relativamente comum. Acomete àqueles que se angustiam e se deprimem justamente no momento em que conquistam o que tanto sonharam e pelo que muito lutaram. É o que ocorreu com Lady Macbeth assim que soube que seu marido assassinou o rei.

Shakespeare exerceu influência muito grande na formação cultural de Freud, que freqüentemente utilizou o repertório do bardo no enquadramento das formulações psicanalíticas que desenvolveu. A tragédia também permite uma extensa reflexão sobre a culpa; talvez fora a culpa que levou Lady Macbeth ao suicídio. E a culpa também afetou Macbeth, que dela se livrou, multiplicando os atos pelos quais se sentia culpado, i.e., matando, como medida de catarse e de superação da própria insatisfação.

Macbeth ainda fomenta estudos de história do direito. Há conjunto de informações que permitem que se apreendam alguns aspectos de rituais do direito inglês do século XVI (época da peça) ou do direito escocês do século XI (época e local nos quais a tragédia é ambientada). Não se pode esquecer que houve um rei escocês chamado Macbeth; pode haver algum elemento fático no contexto da peça.

A peça propicia ainda alguma reflexão em tema de retórica. Lady Macbeth convenceu seu marido a matar o rei, instigando-o a agir, especialmente quando Macbeth parecia tomada por dúvidas.

Macbeth é também, e talvez principalmente, um estudo sobre a natureza do mal[4]. Macbeth é um personagem verdadeiro, mais entregue a seu impiedoso destino do que às exigências cênicas[5]. Em Macbeth encontra-se o gênio de Shakespeare em seu estado mais absoluto; e o gênio de Shakespeare se constitui, ao mesmo tempo, o desespero e o êxtase do crítico[6].

Macbeth é corajoso e ambicioso, tem consciência das conseqüências de seus crimes. É um usurpador sanguinário[7]. Inicialmente era leal ao rei, seu primo; porém, transforma-se em terrível vilão. Tem alucinações. Macbeth vai se tornar um rei caricato[8].

Lady Macbeth parece ser má e inescrupulosa. Exerce grande poder sobre o marido. Ela não consegue prever as conseqüências de seus atos e ao longo da peça vai tomando consciência de suas atitudes. Enlouqueceu e se suicidou. Segundo Freud, em Lady Macbeth, uma natureza originalmente dócil e feminina foi levada a um ponto de concentração e de alta tensão que não pôde suportar por muito tempo (...)[9]

Duncan é o idoso rei da Escócia. Bom, feliz, entusiasmado com Macbeth, jamais suspeitou da traição que o esperava. Malcom é o primeiro filho de Duncan; é o herdeiro do trono. Fugiu para a Inglaterra quando o pai foi assassinado. Formou um exército para libertar a Escócia da tirania de Macbeth.

Banquo é um general e nobre escocês; íntegro, provocou o ciúme de Macbeth. Fundador da dinastia Stuart, Banquo é ancestral de Jaime I da Inglaterra. Fleance é o filho de Banquo. Macduff é um nobre escocês, maior opositor de Macbeth, que ordenou a chacina de sua família. No fim da peça, matou Macbeth.

As três bruxas prevêem o futuro; seriam as agentes do demônio. Donalbain é o outro filho do rei Duncan. Ross é um nobre escocês que ficará ao lado de Macbeth até fugir para a Inglaterra, avisar a Macduff sobre a chacina da família.

Os temas centrais desta tragédia são a ambição, a luta entre o bem e o mal, a degeneração do caráter, bem como a punição do pecado. Macbeth nos mostra o preço devastador que se paga quando a ambição pelo poder é seguida de forma rude. Ele se transformou de guerreiro corajoso em vilão. A tragédia também trata da certeza da punição, percepção que se encontra na estrutura moral do teatro elizabeteano.

A ambição de Macbeth foi despertada e aumentou na medida em que percebia que uma profecia feita pelas bruxas, de que seria rei, poderia ser realizada. Hesitando, porém sucumbindo à tentação, Macbeth permite-nos reflexão sobre as ambigüidades do bem e do mal. E porque Macbeth efetivamente tornou-se mal e cruel, a partir de um caráter doce, pode-se mapear transição existencial, que ameaça a nós todos.

No primeiro ato, os escoceses, liderados pelo rei Duncan, recebem a notícia de que repeliram uma invasão norueguesa. O rei foi informado que Macbeth se revelou um grande guerreiro. O rei deu a Macbeth o título de Thane (Duque) de Cawdor, justamente o título do vencido, agora reconhecido como traidor.

Em seguida Macbeth e Banquo encontraram três bruxas que fizeram uma profecia: Macbeth será Thane de Cawdor e depois rei da Escócia. Banquo não será rei, mas seus descendentes o serão. Ao saber que ganhará o título de Thane de Cawdor, Macbeth começou a acreditar na profecia das três bruxas.

Escreveu uma carta para sua mulher, Lady Macbeth, que percebeu que poderia ser rainha. O rei deu a seu filho Malcom o título de Príncipe de Cumberland. Confirmou, assim, que Malcom seria seu sucessor. Macbeth ficou enciumado. O rei visitará o castelo de Macbeth. O anfitrião e sua esposa planejam o assassinato do rei.

No segundo ato, Macbeth matou o rei, colocou a culpa nos guardas e os assassinou, simulando um ato de fúria e de fidelidade ao morto. No entanto, entrou em pânico e começou a repetir que jamais conseguiria dormir em paz. Foi o início de sua loucura. Chegou Macduff que foi até o quarto do rei e o viu morto. Os filhos do rei fugiram com medo que também fossem assassinados. A fuga fez com que muitos suspeitassem que os filhos do rei teriam assassinado ao pai.

No terceiro ato, Macbeth mandou assassinar Banquo e seu filho Fleance. Banquo foi de fato assassinado, porém Fleance conseguiu fugir. Macbeth deu um jantar. Teve alucinações; viu Banquo e começou a gritar. Lady Macbeth pediu desculpas aos convivas. Macduff fugiu para a Inglaterra.

No quarto ato, Macbeth se aconselhou com as bruxas. Estas o revelaram que ele não será derrotado por nenhum homem que tenha saído de uma mulher. E que não será derrotado, a menos que as árvores da floresta de Birname atingissem seu palácio. Ultrajado com a fuga de Macduff, Macbeth ordenou que se matasse toda a família do foragido.

No final da peça, Lady Macbeth enlouqueceu e se suicidou. Malcom, Macduff e os ingleses invadiram a Escócia, acompanhados de um grande exército. Os soldados ingleses chegaram ao castelo carregando galhos da floresta de Birname. Cumpriu-se a profecia. Macduff matou Macbeth. É que nasceu de uma operação cesariana, portanto não se poderia dizer que nasceu diretamente de uma mulher. O trono foi dado a Malcom. De qualquer modo, o bem triunfou.

A peça se encerra com o triunfo do bem sobre o mal, do titular da coroa sobre o usurpador, do honesto sobre o ambicioso. E nos revela um assassino cruel, um homicida compulsivo. Culpado?

A tipologia que marca Macbeth é comum nas constatações criminológicas. Basicamente, tem-se um indivíduo cuja propensão para matar é latente e o qual se encontra apto para agir. A chance acelera o processo, ainda que num primeiro momento o futuro criminoso resista. O indivíduo hesita, pretende mudar de idéia, porém se deixa convencer por quem reconhece como uma pessoa próxima, em quem deposita muita confiança.

Age. Mas não se aceita. Arrepende-se. Deixa-se tomar pelo remorso. Assusta-se. Tem alucinações. Porém, como condição de sobrevivência deve matar novamente. E o faz. O instinto de Eros sublima a tendência de Tânatos, a paixão pela vida suplanta a curiosidade para com a morte, nos termos de uma formulação aparentemente freudiana.

E a cada novo assassinato, com o qual procura encobrir um homicídio anterior, o criminoso se perpétua como tal. Perde a razão. Torna-se refém de um passado do qual não se livra. Seu fim é a vingança alheia, a quem tanto sofrimento causou.

É este o roteiro existencial de Macbeth. Metaforicamente vencido por Nêmesis, a deusa da vingança, Macbeth jamais conheceu a face de Têmis, a personificação da justiça, da qual era a deusa, e que jamais conheceu.

E porque Macbeth agiu influenciado pela profecia das bruxas, resta saber se o livre arbítrio poderia ser razão suficiente para separar o dolo da culpa. Ou se com dolo agiu, simplesmente, porque as bruxas ouviu...




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[1] BRADLEY, A. C., A Tragédia shakespeariana, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 255. Tradução de John Russell Brown.

[2] Cf. MOURTHÉ, Claude, Shakespeare, Porto Alegre: L & PM, 2010, p. 164. Tradução de Paulo Neves.

[3] Cf. FREUD, Sigmund, Os Arruinados pelo êxito, in Obras Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1999, Volume XIV, pp. 331 e ss. Tradução sob direção de Jayme Salomão.

[4] Cf. HELIODORA, Bárbara, Reflexões shakespearianas, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004, pp. 159 e ss.

[5] BORGES, Jorge Luís, Prólogos, com um prólogo de prólogos, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 193. Tradução de Josely Vianna Baptista.

[6] BLOOM, Harold, Gênio- os 100 autores mais criativos da história da literatura, Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 44. Tradução de José Roberto O´Shea.

[7] Cf. HONAN, Paul, Shakespeare, uma vida, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 399. Tradução de Sonia Moreira.

[8] Cf. CARBER, Marjorie, cit., loc.cit.

[9] Cf. FREUD, Sigmund, cit., p. 335.

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur

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