domingo, 13 de maio de 2012

Congresso quer limitar os poderes do STF?

Dá para acreditar?
Com títulos como “CCJ aprova proposta que autoriza Congresso a derrubar atos do STF” (aqui) ou ainda “Uma proposta de estarrecer” (editorial do Estado de São Paulo, aqui), vem sendo divulgada a Proposta de Emenda Constitucional nº 3/2011, de autoria do Deputado Nazareno Fonteles.
Como hoje a internet permite isso, recomendamos a leitura da proposta antes de criticá-la com base no “ouvi dizer do jornalista” (aliás, a nossa imprensa tem cometido algumas derrapadas nos últimos tempos que, infelizmente, nos fazem duvidar da qualidade e da seriedade de alguns profissionais). Veja o inteiro teor da PEC aqui.
  
A proposta pretende modificar o artigo 49, V, da Constituição, que desde 1988 já permite que o Legislativo suspenda, via decreto legislativo, atos do Poder Executivo que exorbitem de sua competência regulamentar. Em outras palavras, sempre que o Executivo editar um decreto que crie obrigações novas, não previstas em lei, o legislador pode suspender seus efeitos, já que cabe ao Congresso Nacional a iniciativa primária de criação de obrigações dirigidas a todos (princípio da legalidade, artigo 5º, II, da Constituição).

A PEC 3/2011 se limita a substituir a expressão “Poder Executivo” por “demais Poderes”. Porém, ela continua fazendo referência a um “poder regulamentar” e a uma “delegação legislativa”. Só isso já mostra que a proposta não tem o condão de permitir que o Congresso venha a cassar decisões do STF, como chegou a ocorrer no governo de Getúlio Vargas (a competência era do Congresso, mas como este estava fechado, Vargas suspendeu, por ato singular, decisão do STF que declarava a inconstitucionalidade do imposto de renda cobrado de servidores públicos estaduais).
  
A nova redação do art. 49, V, ficaria assim:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(…)
V – sustar os atos normativos dos demais Poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa
No contexto de críticas a propostas legislativas é de boa índole que não se transborde dos limites postos no texto. Por mais que todo projeto possua um contexto (e uma vontade política que o subsidia), a aplicação final do sistema jurídico dependerá do enunciado tal qual aprovado. Por mais que a interpretação das finalidades buscadas pelo legislador seja imprescindível, referida busca fica limitada pelos objetivos declinados no produto legislativo.
  
O que é de estarrecer é que a crítica de uma proposta como a PEC 3/2011 seja influenciada por subjetivismos travestidos de linguagem imparcial. Trai o leitor fiel àquele veículo de comunicação, que parte de pressupostos esotéricos (quiçá telepáticos?) para descobrir a “real intenção” que está por trás de uma proposta de emenda constitucional.
  
Com todo o respeito, sustentar que a expressão “atos normativos” abrangeria as decisões em sede de ADI ou mesmo as súmulas vinculantes não nos parece a interpretação mais acertada da Constituição. Assim pensamos porque o trecho inicial do dispositivo deve ser entendido em conjunto com o resto do enunciado, ou seja, com apoio nos enunciados “que exorbitem do poder regulamentar ou dos “limites da delegação legislativa”. Em outras palavras: não é qualquer “ato normativo” que pode ser suspenso com base na competência do art. 49, V. É necessário que tais atos ou desempenhem função regulamentar ou sejam resultado de um delegação feita pelo Congresso (no que se incluiria a delegação para a edição de regulamento – art. 84, IV – ou mesmo a edição de lei delegada – art. 68).
 
 
Vide, a respeito, o entendimento do STF sobre o tema, no qual a Corte vincula diretamente a interpretação do dispositivo constitucional citado à exigência constitucional de reserva de lei:

O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)”. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN 01/2005. (AC 1.033-AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-5-2006, Plenário, DJ de 16-6-2006.)
  
Neste âmbito, percebemos que o objetivo da PEC 3/2011 não consiste em atingir as decisões jurisdicionais do Poder Judiciário, mas sim aquelas competências tipicamente administrativas/regulamentares que são exercidas por esse Poder.
  
Como bem sabem os juristas, o Poder Judiciário não exerce somente funções jurisdicionais (julgamento de conflitos concretos, por exemplo), mas também pratica atos administrativos regulamentares, que podem ser enquadrados no conceito de “atos normativos”, como, por exemplo, as resoluções expedidas pelo TSE na regulamentação da legislação eleitoral (art. 1º, parágrafo único, do Código Eleitoral).
  
Logo, a citada proposta não tem o condão de permitir que o Congresso venha a cassar decisões jurisdicionais do Supremo Tribunal Federal, como vem sendo divulgado. O legislador não poderia, mediante decreto legislativo, cassar a decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, ou do caso dos fetos com anencefalia. Se o fizesse, tal ato seria reputado imediatamente inconstitucional.
  
Porém, a nossa prática constitucional tem demonstrado que, sempre que não concorda com o STF, o Congresso se articula para aprovar emenda constitucional na qual faz prevalecer a sua interpretação da Constituição. Vide, por exemplo, as Emendas Constitucionais 29/2000 (que permitiu a progressividade fiscal do IPTU, após o STF entender que ela não seria cabível), 39/2002 (que autorizou a instituição, pelos Municípios, de “Contribuição” de iluminação pública, depois de o Supremo concluir que as Taxas de Iluminação Pública eram inconstitucionais) e 57/2008 (que pretendeu “convalidar” os municípios cuja criação foi considerada inconstitucional pelo STF – abordamos o tema especificamente aqui).
  
Creio que esta é a única interpretação que compatibiliza a PEC 3/2011 com a Constituição Federal. Quaisquer outros entendimentos violam o sistema de separação de poderes e levariam o STF, quando provocado, a considerá-la inconstitucional, sobretudo porque as emendas constitucionais devem respeitar as cláusulas pétreas (limites materiais do Poder de Reforma, previstos no art. 60, § 4º, da Constituição).
  
Não se nega que determinado grupo de parlamentares queira enfraquecer o Supremo Tribunal Federal. Se tentar fazê-lo, fracassará, haja vista se tratar do guardião da Constituição e guia dos limites constitucionais da atividade legislativa, entre outras. O que se pede, porém, é um pouco mais de responsabilidade e um pouco menos de parcialidade da parte de quem lança conclusões sem qualquer fundamento no objeto analisado.
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Por Claudio de Oliveira Santos Colnago
Fonte: Blog Os Constitucionalistas 

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