Nesta semana trato do grande escritor Monteiro Lobato, literato que explicitou como nenhum outro o desencanto e a amargura para com a vida forense. Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, São Paulo, em 18 de abril de 1882. Registrado como José Renato Monteiro Lobato, mais tarde mudou o nome para José Bento Monteiro Lobato, ao que consta para valer-se das iniciais JBML e usar uma bengala deixada pelo pai, cujo nome era José Bento. A mãe do escritor chamava-se Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Por imposição do avô, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1900.
O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que apreciava apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito. Durante os anos de faculdade, Monteiro Lobato aprofundou amizades com as quais o interesse comum era a Literatura. Nasceu um grupo, o Minarete, e aí sua amizade com Godofredo Rangel, com quem trocou cartas a vida toda. O conjunto epistolar foi publicado como A Barca de Gleyre; as cartas revelam recorrentemente uma desconfiança para com o Direito, como se verá mais adiante.
Concluído o curso de Direito, retornou a Taubaté; foi festivamente recebido como bacharel. Nomeado promotor, mudou-se para Areias, no interior paulista. A vida forense o deprimia, desanimava, desgostava. Casou-se em 1908 e, no ano seguinte, herdou a fazenda do avô, Visconde de Tremembé. Deixou o Ministério Público e tornou-se fazendeiro.
Em meados da década de 1910 começou a publicar contos, crônicas, um pouco de crítica. Após vender a fazenda, mudou-se para São Paulo e fundou uma editora em 1918. Faliu sete anos depois e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, colaborou na imprensa com certo destaque. Em 1926, seguiu para Nova Iorque e lá morou até 1931. Foi adido comercial brasileiro. Impressionado com o crescimento econômico dos Estados Unidos, dedicou-se a fazer proselitismo em torno da exploração do petróleo e do ferro.
Em virtude de intransigente luta em prol de soberania nos direitos de exploração do subsolo, foi preso, em 1941, por três meses. Seguiu para a Argentina em 1946, lá vivendo um ano. Ao retornar ao Brasil, era pranteado e festejado autor de livros infantis. Morreu em 4 de julho de 1948 em virtude de um espasmo vascular. É sobre a trajetória de Monteiro Lobato e seu desencanto para com o Direito que se trata em seguida.
O curso jurídico foi uma imposição do avô, de quem herdaria a fazenda. Segundo Edgard Cavalheiro, o mais documentado e respeitado biógrafo de Monteiro Lobato:
Está com 15 anos de idade quando perde o pai. Um ano depois é a mãe que parte para sempre. Suas tendências, nessa época, são as belas-artes. Quer ser pintor. No máximo estudaria com prazer engenharia. Mas o direito é a carreira que o Visconde escolhe e impõe. Embora contrariado, José Bento se prepara para ser Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. (...) Não havia completado 18 anos quando entra para a Faculdade de Direito. Que o curso de Direito pouco lhe interessaria, não padece dúvida de espécie alguma. Um ex-colega, depondo alguns anos depois, acentuou: “Do Direito nunca falamos nas conversações e se classificamos os lentes era pela qualidade dos sais das pilhérias, sal ático ou sulfato de magnésio”. O próprio Lobato confessará mais tarde que o único lente diante de quem não escondia o tédio, ou longos bocejos, de puro enfado, era Pedro Lessa. Seu interesse ia todo para a literatura.[1]
As referências que Lobato fez do curso são irônicas, sarcásticas, zombeteiras, mordazes. Escrevendo a um amigo:
Gracias mil. Se é verdade que daqui há meses oito me saio bacharel do venerando laboratório em que o Estado faz doutores por 500$ em 5 prestações anuais (...)[2]
Em carta a Godofredo Rangel Lobato, queixava-se da aridez dos temas que a faculdade se propunha ensinar:
E por que escrevo em momento assim impróprio? Porque amanhã, sábado, entro-me em exame oral e estou com os minutos contados, a recordar definições e textos desta horrível seca que é a matéria.[3]
Os temas de Direito eram-lhe indigestos, a julgarmos o teor de suas cartas. Para Godofredo Rangel:
Ainda com os dedos trôpegos dum interminável ponto de Direito de Falências que acabo de copiar, venho responder à tua carta.[4]
Lobato projetou esse mal-estar à formatura e ao que sucedeu após colar grau. É assim que narrou sua volta a Taubaté:
Logo que cheguei (que cheguei formado!) mimosearam-me com uma manifestação; foguetes (Taubaté não faz nada sem foguetes), a banda de música, molecada atrás e oito discursos, nos quais se falou em “raro brilhantismo”, “um dos mais”, “as veneradas arcadas” e outras macuquices que tive de agüentar de pé firme em casa de meu avô. Eu percebia o jogo: a manifestação era mais dirigida a ele do que a mim (...). Não respondi macucalmente como era esperado. Declarei que não havia razão para homenagens, porque se tratava dum bacharel mais pelo Largo do Rosário do que pela Academia, no qual as ciências do Triângulo superavam as do Corpus Juris. Disse ainda que um novo advogado não passa mais de uma filoxera social que sai do casulo — e por aí além. Os manifestantes entreolharam-se. A língua era nova e desconhecida na terra, mas a cerveja que o avô mandou servir (e creio que era ao que realmente vinham) reconciliou-se com o neto.[5]
Lobato imputava a um advogado a categoria de filoxera social. A filoxera é inseto que ataca as raízes e faz secar as folhas das plantas. A imagem é absolutamente contundente na proporção em que nos revela o juízo de Lobato a propósito da advocacia. Para o escritor, o advogado era um inseto que ataca raízes e faz secar as folhas das plantas.
Depois de rápida passagem por Taubaté, terra do avô, foi designado promotor em Areias. À época, virada do século, o Ministério Público não tinha o perfil que tem na contemporaneidade. O desencanto já se verificava, no entanto, desde Taubaté, de onde Lobato escreveu a Godofredo Rangel:
Estou promotor interino. Visito a cadeia no fim do mês, converso com os presos, mando um memorandum ao governo dizendo que a paz reina em Varsóvia – e tudo desliza sobre mancais de bolinhas. Tenho no júri de acusar nove desgraçados...[6]
Lobato zomba do cargo ao exigir de um amigo íntimo o DD no envelope. Moteja com Areias, cidade que positivamente há de existir. Mofa com Washington Luís Pereira de Souza (que mais tarde será governador de São Paulo e presidente da República, o célebre “Paulista de Macaé de Fato Bom Sujeito é”) a propósito do “s” do nome.
Não gostava do júri. Detestava acusar os pobres réus. Afastava-se do tabelião. Não tinha vínculo ideológico com o juiz. Não lia autores de Direito. Jamais escreveu artigo jurídico. Lobato deixou Areias e a vida de promotor, para a qual não se sentia talhado. Tudo é motivo para Lobato criticar o Direito posto, ou tudo que a ele se relaciona. Em Urupês:
Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da justiça. Moi-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos romanos.[7]
Ao comparar a Justiça a uma traquitana, espécie de sege que se move vagarosamente, Lobato faz coro com aqueles que criticam a morosidade da Justiça. No mesmo excerto, um pouco mais à frente, continuou Lobato:
A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, (...)[8]
A crítica aos juízes e à Justiça é frequente, e as imagens que usa são realmente tocantes. Por exemplo, ao comentar as provas de um livro de Direito que editaria, imaginou uma Justiça oxigenada que:
(...) arredada de uma coisa linda e única verdadeira, chamada vida, na qual nossos juízes não acreditam, já que erguem muralhas contra o ar novo, o ar livre, o ar vivo, o ar que se côa por montes, vales e mares e todo se enriquece de ricos oxigênios hostis. Às sulfurinas cadavéricas.[9]
Este artigo contínua no link
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur
O desinteresse de Monteiro Lobato pelo curso de Direito era total. Parece que apreciava apenas um professor, Pedro Lessa, que lecionava Filosofia do Direito. Durante os anos de faculdade, Monteiro Lobato aprofundou amizades com as quais o interesse comum era a Literatura. Nasceu um grupo, o Minarete, e aí sua amizade com Godofredo Rangel, com quem trocou cartas a vida toda. O conjunto epistolar foi publicado como A Barca de Gleyre; as cartas revelam recorrentemente uma desconfiança para com o Direito, como se verá mais adiante.
Concluído o curso de Direito, retornou a Taubaté; foi festivamente recebido como bacharel. Nomeado promotor, mudou-se para Areias, no interior paulista. A vida forense o deprimia, desanimava, desgostava. Casou-se em 1908 e, no ano seguinte, herdou a fazenda do avô, Visconde de Tremembé. Deixou o Ministério Público e tornou-se fazendeiro.
Em meados da década de 1910 começou a publicar contos, crônicas, um pouco de crítica. Após vender a fazenda, mudou-se para São Paulo e fundou uma editora em 1918. Faliu sete anos depois e mudou-se para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, colaborou na imprensa com certo destaque. Em 1926, seguiu para Nova Iorque e lá morou até 1931. Foi adido comercial brasileiro. Impressionado com o crescimento econômico dos Estados Unidos, dedicou-se a fazer proselitismo em torno da exploração do petróleo e do ferro.
Em virtude de intransigente luta em prol de soberania nos direitos de exploração do subsolo, foi preso, em 1941, por três meses. Seguiu para a Argentina em 1946, lá vivendo um ano. Ao retornar ao Brasil, era pranteado e festejado autor de livros infantis. Morreu em 4 de julho de 1948 em virtude de um espasmo vascular. É sobre a trajetória de Monteiro Lobato e seu desencanto para com o Direito que se trata em seguida.
O curso jurídico foi uma imposição do avô, de quem herdaria a fazenda. Segundo Edgard Cavalheiro, o mais documentado e respeitado biógrafo de Monteiro Lobato:
Está com 15 anos de idade quando perde o pai. Um ano depois é a mãe que parte para sempre. Suas tendências, nessa época, são as belas-artes. Quer ser pintor. No máximo estudaria com prazer engenharia. Mas o direito é a carreira que o Visconde escolhe e impõe. Embora contrariado, José Bento se prepara para ser Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. (...) Não havia completado 18 anos quando entra para a Faculdade de Direito. Que o curso de Direito pouco lhe interessaria, não padece dúvida de espécie alguma. Um ex-colega, depondo alguns anos depois, acentuou: “Do Direito nunca falamos nas conversações e se classificamos os lentes era pela qualidade dos sais das pilhérias, sal ático ou sulfato de magnésio”. O próprio Lobato confessará mais tarde que o único lente diante de quem não escondia o tédio, ou longos bocejos, de puro enfado, era Pedro Lessa. Seu interesse ia todo para a literatura.[1]
As referências que Lobato fez do curso são irônicas, sarcásticas, zombeteiras, mordazes. Escrevendo a um amigo:
Gracias mil. Se é verdade que daqui há meses oito me saio bacharel do venerando laboratório em que o Estado faz doutores por 500$ em 5 prestações anuais (...)[2]
Em carta a Godofredo Rangel Lobato, queixava-se da aridez dos temas que a faculdade se propunha ensinar:
E por que escrevo em momento assim impróprio? Porque amanhã, sábado, entro-me em exame oral e estou com os minutos contados, a recordar definições e textos desta horrível seca que é a matéria.[3]
Os temas de Direito eram-lhe indigestos, a julgarmos o teor de suas cartas. Para Godofredo Rangel:
Ainda com os dedos trôpegos dum interminável ponto de Direito de Falências que acabo de copiar, venho responder à tua carta.[4]
Lobato projetou esse mal-estar à formatura e ao que sucedeu após colar grau. É assim que narrou sua volta a Taubaté:
Logo que cheguei (que cheguei formado!) mimosearam-me com uma manifestação; foguetes (Taubaté não faz nada sem foguetes), a banda de música, molecada atrás e oito discursos, nos quais se falou em “raro brilhantismo”, “um dos mais”, “as veneradas arcadas” e outras macuquices que tive de agüentar de pé firme em casa de meu avô. Eu percebia o jogo: a manifestação era mais dirigida a ele do que a mim (...). Não respondi macucalmente como era esperado. Declarei que não havia razão para homenagens, porque se tratava dum bacharel mais pelo Largo do Rosário do que pela Academia, no qual as ciências do Triângulo superavam as do Corpus Juris. Disse ainda que um novo advogado não passa mais de uma filoxera social que sai do casulo — e por aí além. Os manifestantes entreolharam-se. A língua era nova e desconhecida na terra, mas a cerveja que o avô mandou servir (e creio que era ao que realmente vinham) reconciliou-se com o neto.[5]
Lobato imputava a um advogado a categoria de filoxera social. A filoxera é inseto que ataca as raízes e faz secar as folhas das plantas. A imagem é absolutamente contundente na proporção em que nos revela o juízo de Lobato a propósito da advocacia. Para o escritor, o advogado era um inseto que ataca raízes e faz secar as folhas das plantas.
Depois de rápida passagem por Taubaté, terra do avô, foi designado promotor em Areias. À época, virada do século, o Ministério Público não tinha o perfil que tem na contemporaneidade. O desencanto já se verificava, no entanto, desde Taubaté, de onde Lobato escreveu a Godofredo Rangel:
Estou promotor interino. Visito a cadeia no fim do mês, converso com os presos, mando um memorandum ao governo dizendo que a paz reina em Varsóvia – e tudo desliza sobre mancais de bolinhas. Tenho no júri de acusar nove desgraçados...[6]
Lobato zomba do cargo ao exigir de um amigo íntimo o DD no envelope. Moteja com Areias, cidade que positivamente há de existir. Mofa com Washington Luís Pereira de Souza (que mais tarde será governador de São Paulo e presidente da República, o célebre “Paulista de Macaé de Fato Bom Sujeito é”) a propósito do “s” do nome.
Não gostava do júri. Detestava acusar os pobres réus. Afastava-se do tabelião. Não tinha vínculo ideológico com o juiz. Não lia autores de Direito. Jamais escreveu artigo jurídico. Lobato deixou Areias e a vida de promotor, para a qual não se sentia talhado. Tudo é motivo para Lobato criticar o Direito posto, ou tudo que a ele se relaciona. Em Urupês:
Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da justiça. Moi-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos romanos.[7]
Ao comparar a Justiça a uma traquitana, espécie de sege que se move vagarosamente, Lobato faz coro com aqueles que criticam a morosidade da Justiça. No mesmo excerto, um pouco mais à frente, continuou Lobato:
A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, (...)[8]
A crítica aos juízes e à Justiça é frequente, e as imagens que usa são realmente tocantes. Por exemplo, ao comentar as provas de um livro de Direito que editaria, imaginou uma Justiça oxigenada que:
(...) arredada de uma coisa linda e única verdadeira, chamada vida, na qual nossos juízes não acreditam, já que erguem muralhas contra o ar novo, o ar livre, o ar vivo, o ar que se côa por montes, vales e mares e todo se enriquece de ricos oxigênios hostis. Às sulfurinas cadavéricas.[9]
Este artigo contínua no link
Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur
O que é a norma do Direito? Algo perfeito, impecável, cheia de furos e extremamente falha, mas não na essência, mas na aplicaçao. O problema está no Estado, no Judiciário, no Homem Social e não na norma... Esta é perfeita, porém, abstrata.
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