domingo, 30 de janeiro de 2011

O total descabimento da inversão do ônus da prova por ocasião do julgamento

Interpretação
O Código de Defesa do Consumidor inclui no rol dos direitos básicos do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente”. Esse o texto do art. 6º, inciso VIII do referido Código.

A inversão do ônus da prova é, portanto, um mecanismo de facilitação da defesa do consumidor no processo e poderá ser determinada pelo juiz na presença dos requisitos indicados na própria lei. Aplicando-se o instituto, o consumidor não precisará produzir as provas das suas alegações para vencer a lide. Caberá ao fornecedor a prova de que as alegações do autor não são verdadeiras, sendo afastada a regra de distribuição do ônus da prova prevista do Código de Processo Civil em prol da inversão probatória prevista na lei consumerista.

A inversão do ônus da prova é uma medida relevante na justa tentativa de igualar as chances processuais de consumidores e fornecedores na demanda, uma vez que ao fornecedor pode ser mais fácil produzir determinadas provas no processo, precisamente aquelas referentes ao seu negócio. Mas a medida deve observar a determinados limites, sob pena de, ao invés de facilitar a defesa do consumidor, aniquilar a do fornecedor, passando-se por cima de princípios caros ao ordenamento, como o da ampla defesa, o do contraditório e o do devido processo legal, todos previstos na Constituição Federal.

Um desses limites é o momento em que ocorre a inversão do ônus da prova. Por se tratar de uma exceção em relação às regras ordinárias previstas no Código de Processo Civil, é intuitivo que a inversão do ônus da prova deve ocorrer, quando e se necessária, em momento anterior ao final da instrução, para que o fornecedor conheça o ônus probatório que lhe foi transferido e tenha a efetiva oportunidade de produzir a prova pertinente.

Mesmo porque, não é em todo o processo envolvendo relação de consumo que a inversão do ônus da prova é necessária. Como previsto no Código do Consumidor, a inversão depende de critério judicial, já que caberá ao magistrado verificar o seu cabimento no processo, avaliando a presença da verossimilhança das alegações do consumidor e da sua hipossuficiência probatória.

A aferição desses requisitos é um tanto quanto subjetiva, o que torna impossível ao fornecedor saber se, em determinado caso concreto, será ou não invertido o ônus da prova: o que parece verossímil ao juiz pode não parecer ao fornecedor, bem como o consumidor hipossuficiente aos olhos de um, pode não sê-lo aos do outro.

O que se quer dizer é que a simples possibilidade de que a inversão do ônus da prova seja determinada em certo processo não é suficiente para que o fornecedor saiba de antemão que a medida efetivamente será utilizada. Faz-se necessária decisão explícita do juiz invertendo o ônus da prova para que o fornecedor tenha que produzir a prova que lhe foi transferida. Até a inversão, o ônus é do autor, observadas das regras do Código de Processo Civil.

As regras de distribuição do ônus da prova, além de funcionarem como regras de julgamento, dirigidas ao juiz da causa, funcionam como regras de comportamento, pois indicam às partes quem deverá provar o que. Se determinada apenas no julgamento da causa, a inversão do ônus da prova altera as regras no final do jogo, impossibilitando a efetiva produção da prova pelo fornecedor, com acintoso cerceamento do seu direito de ampla defesa e ao contraditório.

Salta aos olhos o absurdo de uma inversão probatória determinada apenas na sentença, juntamente com a condenação do fornecedor pela não produção de uma prova que ele não sabia que tinha que produzir, ou, pior, no acórdão da apelação, pelo Tribunal, ocasião em que poucas alternativas restarão ao condenado, sobretudo porque os recursos às Cortes superiores não são admitidos para a revisão de questões atinentes a fatos e provas.

A inversão do ônus da prova determinada juntamente com a condenação surpreende a parte por imputá-la um ônus que ela não tinha, em gritante e intolerável afronta aos princípios da ampla defesa e do contraditório. A um só tempo, onera a parte com uma prova cuja oportunidade de desencargo lhe é negada.

Inverter o ônus da prova no julgamento da causa – sentença ou acórdão – significa revelar somente no futuro uma regra que seria aplicável ao passado, o que carece de sentido lógico. Novas regras, em qualquer situação, valem para o futuro e não para o passado, já que este é imutável. É assim com as leis – o princípio da irretroatividade também está protegido em sede constitucional – e com todas as mudanças que acontecem: o futuro não pode interferir no passado. Desse jeito funciona a natureza das coisas.

Por isso mesmo, quando inverte o ônus da prova na sentença ou no acórdão, o julgador sabe que a prova não poderá ser produzida pelo fornecedor por absoluta falta de oportunidade. Nessas circunstâncias, a inversão é usada como verdadeiro pretexto para a condenação do fornecedor em franca deturpação da essência do Código de Defesa do Consumidor.

Sim, pois o objetivo da inversão probatória, como consta expressamente no Código, vale lembrar, é facilitar a defesa do consumidor, transferindo-se ao fornecedor a responsabilidade pela produção da prova que lhe seja de mais fácil acesso. O Código não quis que a medida fosse usada como meio de condenar, às amarras, o fornecedor onerado e ao mesmo tempo impedido de realizar a prova. Quis-se, ao contrário, que o fornecedor realmente produzisse a prova, o que só poderá fazer se a inversão ocorrer em momento apropriado. Não na sentença. Jamais no acórdão.

Enfim, é absolutamente intolerável, pela injustiça que representa, que a inversão do ônus da prova seja manejada na sentença ou, pior ainda, no acórdão de segundo grau. A inversão do ônus da prova só pode ser determinada, quando for o caso, antes de finalizada a instrução probatória. Só assim serão preservados os princípios constitucionais já mencionados, bem como a ratio do instituto, que vele frisar, é facilitar a defesa do consumidor em juízo e não garantir a qualquer custo a sua vitória.

Por Eliane Leve, advogada.
Fonte: Estado de Direito

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