Benjamin Nathan Cardozo nasceu em 1870 e faleceu em 1938. De ascendência judaico-sefardita, Cardozo foi juiz em Nova Iorque e posteriormente ocupou uma vaga na Suprema Corte em Washington. Estudou Direito em Columbia e depois estagiou no escritório de seu pai.
O pai foi juiz em Nova Iorque, ao que parece afastado por suspeita de corrupção. Albert Cardozo, logo após o nascimento de Benjamin, renunciou o cargo de juiz para evitar um processo de impeachment ; manteve, no entanto, a prerrogativa para advogar, profissão que exerceu com razoável sucesso. É copiosa a literatura especializada que investiga a luta de Benjamin Cardozo para afastar de si a sombra de desconfiança que havia em relação a seu pai (cf. Posner, 1990).
Seus antepassados teriam chegado nos Estados Unidos ainda no século XVIII. Cardozo tinha uma irmã gêmea, além de outros seis irmãos, entre os quais uma irmã mais velha, Ellen, que o criou, após a morte da mãe, que se deu quanto Benjamin tinha nove anos. Seu pai faleceu quando Benjamin contava com 15 anos.
A herança deixada pelo pai propiciou vida confortável, na Madison Avenue, em Nova Iorque. Cardozo destacou-se como advogado, e bons relacionamentos nos meios jurídicos lhe abriram as portas para a judicatura (cf. Posner, 1990). Em 1932 Cardozo foi indicado para a Suprema Corte pelo presidente Herbert Hoover; Cardozo ocupou a vaga de Oliver Wendell Holmes Jr. (cf. Kaufman, 2002, p. 88).
Cardozo foi um realista no sentido que adaptava as circunstâncias normativas às instâncias da vida real. Seu voto no caso MacPherson v. The Buick Co. (217 N.Y., 382, III N.E. 1050), ainda em 1916, quando era juiz em Nova Iorque, é paradigmático em termos de responsabilidade civil.
Cardozo percebia o Direito como servo das necessidades humanas e não dos desejos dos mandarins e poderosos (cf. Posner, 1990, p. 107). À época do caso MacPherson a lei determinava que o fabricante de um produto que ferisse um consumidor não seria responsável por danos causados, e nem culpado por negligência, a menos que houvesse assinado contrato nesse sentido, com o consumidor.
Havia exceção à regra, de difícil e rara utilização, referente a produtor anormalmente perigosos. E foi a exceção que Cardozo explorou no aludido caso, de modo a implementar sua visão jurisprudencial (cf. Posner, 1990, p. 108).
MacPherson havia comprado um automóvel Buick de uma revenda de automóveis. Certo dia, enquanto dirigia, um problema em uma das rodas provocou acidente, que resultou em ferimentos sérios no condutor do veículo.
MacPherson ajuizou uma ação contra a empresa Buick, fabricante do carro. A ré havia comprado as rodas de outro fabricante e não conseguira detectar o defeito causador do acidente, o que, ao que consta, uma razão inspeção poderia ter indicado. A ré não havia inspecionado as rodas que comprou de outro fabricante, embora houvesse testado todos os automóveis antes de entregá-los aos consumidores. Cardozo decidiu com um admirável tato retórico.
Ao vendedor do automóvel cabia prioritariamente a responsabilidade em indenizar, dado que é sua obrigação garantir a segurança do objeto que estava vendendo. Poderia, em seguida, transferir o ônus da transação buscando indenização do fabricante do veículo, até por razões contratuais. Este, por fim, poderia arguir indenização a ser paga pelo fabricante da peça inapropriada (cf. Posner, 1990, loc.cit.).
Cardozo foi um dos mais importantes juízes ao longo da administração Franklyn Delano Roosevelt, que sobretudo na década de 1930 tentou aprovar a legislação que implementou o programa anti-recessivo, o New Deal, fortemente inspirado no intervencionismo de John Maynard Keynes.
Ao lado de Louis Brandeis e de Harlan Fiske Stone, Cardozo votou frequentemente em favor das medidas do New Deal, que suscitavam uma abordagem mais liberal na aplicação do Direito então vigente nos Estados Unidos. A afinidade de Cardozo com as linhas gerais do programa de Roosevelt, com os objetivos sociais que oxigenavam as medidas tomadas, bem como a convicção de que os tempos estavam mudando e de que a constituição necessitava de um modelo interpretativo mais flexível marcaram a opção de Cardozo (cf. Polenberg, 1997, p. 195).
Cardozo escreveu livro seminal para a compreensão do realismo jurídico norte-americano, A Natureza do Processo Judicial — The Nature of the Judicial Process. Trata-se de opúsculo no qual Cardozo demonstra conhecer o pensamento jurídico da época, com estações nos autores alemães, a exemplo de Eugen Ehrlich e de Rudolf Von Iehring e na sociologia francesa, a propósito da referência a Emile Durkheim.
Para Cardozo, o trabalho de um juiz é em um sentido duradouro e em outro sentido é efêmero. O que é bem feito e bom por si mesmo vai durar. O que é cheio de erros certamente vai perecer. O bom trabalho judicial permanece como uma das fundações sobre a qual as novas estruturas serão construídas. O mau trabalho judicial será rejeitado e relegado ao laboratório dos anos. Pouco a pouco a velha doutrina é minada. Com regularidade as intromissões são tão graduais que seus significados são de início obscuros. Finalmente, descobrimos que os contornos da paisagem têm se modificado, que os velhos mapas devem ser deixados de lado e que o campo deve ser mapeado de novo (Cardozo, 1991, p. 178).
Adepto absoluto do pragmatismo, Cardozo vale-se de William James para desmistificar o papel dos juízes: Somos lembrados por William James em substancial passagem de suas aulas sobre o pragmatismo, que cada um de nós possui verdadeiramente uma subjacente filosofia de vida, até mesmos aqueles de nós para quem são desconhecidos os nomes e as noções de filosofia. Há em todos nós uma tendência, chame isso de filosofia ou não, que nos confere coerência ao nosso pensamento e às nossas ações. Os juízes não conseguem escapar desse fato que ocorre com todos os mortais (Cardozo, 1991, p. 12).
Cardozo dessacraliza o magistrado, quem reputa como mortal, ser humano como qualquer outro, e que ao decidir imprime no ato decisório suas idiossincrasias: Em todas suas vidas [dos juízes] forças que eles não reconhecem e não conseguem nominar, disputam neles mesmos- instintos herdados, crenças tradicionais, convicções adquiridas; e o resultado é um modo de se ver a vida, uma concepção de necessidades sociais (...) a partir desse pano de fundo mental todos os problemas encontram um abrigo. Podemos tentar ver as coisas tão objetivamente quando podemos. Todavia, não podemos ver as coisas com outros olhos exceto com os nossos próprios (Cardozo, 1991, p. 12).
No entanto, Cardozo insiste na responsabilidade do magistrado, porque a sentença de hoje fará o certo e o errado de amanhã (...) Se o juiz pronuncia sua decisão com sabedoria, alguns princípios seletivos deve haver para guiá-lo entre todas as soluções que potencialmente lutam por reconhecimento (...) (Cardozo, 1991, p. 21).
A aderência do juiz ao precedente, segundo Cardozo, indica elementos subconscientes que agem no processo judicial. Esses estados acompanham e muitas vezes refletem concepções de Direito que seriam também adotadas pela coletividade, mesmo no caso de inexistência de normas específicas. E assim, especialmente em circunstâncias indicativas de lacunas (gaps):
(...) quando ao Direito é deixada uma situação não alcançada por uma regra jurídica pré-existente, não há nada a ser feito a não ser contar com um árbitro imparcial que declarará o que deverá ser feito por homens justos e razoáveis, que conhecem os hábitos e costumes da vida em comunidade, e que parâmetros de justiça e de negociação justa prevalecerão, o que deverá ser feito nessas circunstâncias, a partir de regras que não o costume e a consciência que guia essas condutas. A sensação que se tem é que em nove casos entre dez a conduta de razoáveis não seria diferente do comportamento previsto pela lei, se norma existisse (Cardozo, 1991, p. 143).
Há vários de se decidirem os mesmos casos levados à Justiça e é a personalidade dos magistrados que define escolhas: A excentricidades dos juízes compensam as diferenças que há entre eles. Um determinado juiz olha para os problemas a partir de um ponto de vista histórico, outro sob um prisma filosófico, um terceiro a partir da utilidade social; um deles é formalista, outro é latitudinário, um deles tem medo da mudança, outro é insatisfeito com o presente; a partir do atrito de diversas mentes alcança-se algo que tenha constância e uniformidade bem maiores do que seus componentes individuais (Cardozo, 1991, p. 177).
Cardozo aproveitava para contrabalançar também os papéis do legislador e do magistrado, dado que o legislador também é criador do direito e também a ele falta objetividade, pelas mesmas razões apontadas em relação aos juízes: Se perguntarmos como um interesse deve se sobrepor ao outro [entre legisladores e juízes], eu posso apenas responder que o juiz deve obter seu conhecimento do mesmo modo que o legislador obtém o seu, a partir da experiência, do estudo e da reflexão; em poucas palavras, a partir da vida mesmo. A escolha de método, o peso de valores, precisam ao fim ser guiados por considerações de ambos. Cada um deles está legislando nos limites de suas competências. Não há dúvida de que os limites dos juízes são mais estreitos. O juiz só legisla onde há lacunas. Ele preenche os espaços vazios que há na lei (...) Não obstante, nos limites entre os espaços livres, os precedentes e as tradições, as escolhas se movimentam com liberdade que marca a ação como criativa. O direito que se aplica não é encontrado, ele é feito. O processo, sendo legislativo, exige a sabedoria do legislador (Cardozo, in Fisher III, 1993, p. 177).
Cardozo vê no juiz atividade judicial criativa, positiva, produtora de normas, a exemplo da atividade do legislador propriamente dito, embora, em princípio, em espaço mais fechado.
Ao imputar ao juiz o papel de produtor do direito, de alguém que faz a norma, e que não a encontra, Cardozo desafia a tradição que radica em Montesquieu e que vê o magistrado apenas como a boca da lei (Montesquieu, 2004, p. 195).
Ao afirmar que há várias maneiras de se julgar um mesmo caso e que a personalidade do julgador é o termômetro das decisões que toma, Cardozo, ele mesmo um reputadíssimo magistrado, oferece a própria biografia em holocausto, para confirmar assertivas nas quais se assenta o realismo jurídico norte-americano.
Fonte: ConJur
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