Vale o registro
Há exatos 30 anos, o professor José Joaquim Gomes Canotilho, Catedrático da Universidade de Coimbra, entregava ao público a primeira edição de sua magnum opus Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Comemoramos hoje, pois, uma longa carreira de sucesso de uma das mais importantes obras tanto para o Direito Constitucional português como para o próprio Constitucionalismo brasileiro, com repercussão em vários países do mundo. Dificilmente uma obra jurídica terá alcançado tanto prestígio entre os constitucionalistas brasileiros como Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador.
É certo que, passados tantos anos, como costuma acontecer com livros de grande sucesso, também aqui o autor acabou entendendo necessários alguns reparos críticos (mais à interpretação da obra do que propriamente ao seu conteúdo). Entretanto, o que chama atenção no caso do Professor Canotilho e de sua Constituição Dirigente, comprovando uma vez mais a incrível honestidade teórica do Mestre de Coimbra, é o fato de que as anotações posteriores do autor dirigiam-se muito mais à sua recepção acrítica e irrefletida do que, propriamente, aos seus oponentes. O autor não consentia com o fato de a obra ser recebida sem consideração ao seu contexto histórico, teórico ou metodológico.
A coluna de hoje dedica-se, pois, a uma recuperação histórica, como parte — por assim dizer — de uma publicação comemorativa (Festschrift dos alemães), em homenagem ao Professor Canotilho e a esse grande acontecimento editorial do constitucionalismo contemporâneo, que foi a sua Constituição Dirigente[1].
Vejamos.
O Homem
O professor Catedrático de Direito Constitucional da antiga e prestigiosa Universidade de Coimbra, José Joaquim Gomes Canotilho, ou simplesmente Professor Canotilho, como singela e carinhosamente vem sendo tratado em nosso país, certamente não precisa de apresentação junto ao público brasileiro, uma vez que raramente um jurista terá alcançado o prestígio e o reconhecimento de que hoje goza, em que lhe faça qualquer favor, no Brasil, o grande constitucionalista de Coimbra. Portanto, a breve recuperação biográfica que agora se produzirá tem como único escopo melhor caracterizar as determinantes históricas que justificaram a produção de sua obra, bem como delimitar o contexto da mudança que estaria na base da inflexão teórica supostamente experimentada na sua produção.
José Joaquim Gomes Canotilho nasceu em 1941, em Portugal, na província da Beira Alta, em Pinhel, concelho (grafado mesmo com “c”) que se situa próximo da fronteira espanhola. Frequentou os primeiros anos de sua vida escolar na região de Pinhel e concluiu o Liceu já em Coimbra, cidade onde também iria mais tarde licenciar-se em Direito. Na década de 1970 tomaria parte de um grupo de intelectuais progressistas, responsáveis pela revista Vértice, um periódico português de “cultura e arte”, com orientação política de esquerda.
Conquanto a presença no Grupo Vértice revelasse uma certa orientação marxista, sua conformação teórica e ideológica era indiscutivelmente mais refinada (não leninista), ficando marcado pela influência da tradição intelectual francesa e italiana, de perfil político mais aberto, com que seus componentes nunca abriram mão de interpretar a realidade com liberdade[2].
A Revolução do 25 de abril de 1974, em Portugal, de caráter socialista, iria impor ao grupo de jovens juristas e intelectuais um desafio jurídico especialmente delicado e tormentoso quando, na sequência de sua progressão histórica, promulga-se a Constituição Portuguesa de 1976, destinada a conferir-lhe conformação e legitimidade jurídica.
No caso português, com características políticas acentuadamente socialistas e com um conteúdo jurídico excessivamente programático (pelo menos em comparação com as constituições anteriores), o novo texto constitucional, desde o primeiro momento, iria sofrer uma dura reação conservadora de constitucionalistas tradicionais, que passaram a propagar uma visão teórico-ideologica de que a nova Constituição teria um caráter dúplice, ou, para usar os precisos termos de Eloy Garcia, passaram a sustentar abertamente “a existência, no texto de abril de 1976, de duas Constituições — uma liberal e democrática e outra dirigente e autoritária — antinômicas, incompatíveis, impossíveis de reconduzir à unidade, não suscetíveis de uma aplicação jurídica integrada e, portanto, destinada ao não cumprimento e, no fundo, a uma ruptura inevitável[3]”.
Como se vê, a Constituição portuguesa enfrentaria uma década antes o mesmo problema com o qual a nova Constituição brasileira iria confrontar-se em 1988, isto é, a ideia de que a Constituição, sobretudo, nos seus direitos sociais, não revelaria conteúdo vinculante.
Essa conjuntura impunha especialmente ao Professor Canotilho, então jovem constitucionalista, o problema de demonstrar “a unidade substancial da Constituição, o valor normativo e o caráter vinculante do conjunto de suas proposições normativas, assim como a necessidade de uma interpretação e aplicação integrada e dinâmica de seus preceitos[4]”.
Como diria o próprio autor, anos mais tarde, por um lado, cuidava-se “de demonstrar que a Constituição portuguesa, que era um texto internamente conformado e ordenando — com dificuldade, mas integrado —, (devia) atuar juridicamente”; de outro lado, tratava-se de argumentar dogmaticamente em favor da força vinculante do conjunto das normas da nova Constituição e refutar a tese do caráter não normativo de suas normas chamadas programáticas. Nas palavras do próprio autor, “tínhamos uma Constituição que incorporava grandes conquistas e valores profundamente democráticos e se tinha que elaborar uma discurso capaz de conferir-lhe força normativa, a força normativa própria do Direito[5]”. Para resumir, o problema que se colocava era o de alcançar instrumentos teóricos e dogmáticos constitucionalmente idôneos a uma adequada concretização e ao cumprimento da nova Constituição portuguesa, ou seja, como constatara Gomes Canotilho, era o mesmo problema da Costituzione Inattuata de Calamandrei, ou a nichterfullte Verfassung dos alemães[6].
A obra
Para dar resposta a esses graves problemas é que o Professor Canotilho se colocou a tarefa de, com a sua tese de doutoramento, produzir um estudo — com suficiência teórica e dogmática — apto a oferecer respostas juridicamente convincentes às objeções levantadas por uma reação jurídica (e política) que se mostrava excessivamente conservadora. É nesse contexto que surge a sua Constituição Dirigente. A obra, como se vê, buscava a afastar de vez as dúvidas quanto à inquestionável aplicabilidade das normas ditas programáticas[7].
Não se pode esquecer, contudo, ante o influxo do espetacular relevo e notoriedade que iria conquistar a obra no especial aspecto de sua contribuição à discussão sobre a vinculação do legislador aos fins constitucionais, de que o livro Constituição Dirigente e a Vinculação do Legislador consegue, por incrível que possa parecer, ser muito mais do que isso.
Com efeito, seguramente, poucas obras monográficas no âmbito do Direito Constitucional, em qualquer parte do mundo, terão logrado encerrar num único texto as dimensões substanciais existentes na tese doutoral do Professor Canotilho. Constituição Dirigente e a Vinculação do Legislador oferece ao leitor desde uma construção de uma Teoria da Constituição constitucionalmente adequada, passando por uma inédita recuperação de todas as grandes teorias da Constituição então existentes, avança pelos estudos dos mais importantes teóricos do direito da época (juristas ou não), até alcançar o seu núcleo essencial, que é a discussão sobre a discricionariedade do legislador, oferecendo limites convincentes — tanto negativos como positivos — à atuação do Poder Legislativo.
Nesse ponto, obviamente, enfrenta o dificultoso problema do excesso do poder legislador, das omissões legislativas e das imposições constitucionais. E se tudo isso já não fosse o bastante, o livro, que não pretende ser um manual de Direito Constitucional ou de Teoria da Constituição, ainda promove consistentes incursões teóricas e metódicas em problemas constitucionais tão graves como são os da proporcionalidade, da interpretação conforme a Constituição e também o da concretização das normas constitucionais. Na verdade, é difícil, depois da leitura do texto, não ser dominado por uma sensação intelectualmente intrigante — e até mesmo constrangedora — de que ali nada parece faltar e de que tudo aparenta ocupar o lugar devido.
Por tudo isso também não é difícil compreender por que o livro Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador alcançou, no Brasil, com o advento da Constituição de 1988 e seu caráter acentuadamente dirigente, uma tão ampla influência no âmbito do estudo do Direito Constitucional, sobretudo, entre jovens constitucionalistas e constitucionalistas progressistas, influência essa que, dificilmente, qualquer outro texto produzido no âmbito do Direito Constitucional terá aqui alcançado.
Muito bem, consideradas as excepcionais qualidades do próprio livro, já acima referidas, não é difícil entender a perplexidade causada no Brasil quando o seu próprio autor veio a público afirmar que, apesar de tudo e mesmo diante de suas indiscutíveis qualidades, o texto já estaria a pedir alguns reparos: quanto mais não fosse, intuía o autor, pelo menos seria para ajustar as suas ideias aos novos tempos.
A discussão
É a partir precisamente desse ajuste de contas entre o que, movido por circunstâncias históricas especificas, escrevera Canotilho e o que, agora, ele, diante de um novo contexto histórico e teórico, anda pensando e produzindo, que vários dos mais importantes constitucionalistas brasileiros têm buscado compreender as suas inflexões teóricas, como, por exemplo, foi o caso de célebre debate havido, na cidade de Curitiba, entre os mais renomados estudiosos do Direito Constitucional brasileiro e o Professor Canotilho (de Coimbra por teleconferência), onde, a partir das intervenções orais ali havidas, acabaram por compor o livro Canotilho e a Constituição Dirigent”[8].
Deve-se acautelar, inicialmente, segundo me parece, contra a ideia de que os reparos teóricos agora produzidos pelo próprio autor da Constituição Dirigente se refiram ao conjunto da obra — que, como se viu, é, em verdade, bastante diverso e abrangente —, limitando-se mais adequadamente à compreensão crítica do professor Canotilho de que se possa ter atualmente uma ideia voluntarista de Constituição Dirigente como instrumento de imposição e direção totalizantes da ação do legislador. Aliás, ideia essa que jamais o autor ou a honesta leitura de seu texto autorizaram. Como insistentemente, repetiria o autor na própria Constituição Dirigente, “a Constituição não cria o paraíso pelo simples fato de existir”.
Quanto aos arremates críticos efetivamente promovidos pelo autor, não acredito que se possa, de fato, falar em contradição entre o que antes afirmava o Professor Canotilho e que agora ele escreveu no já famoso prefácio da segunda edição do livro Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador.
O leitor, após o confronto das ideias agora divulgadas pelo Professor Canotilho certamente chegará à conclusão de que é totalmente inapropriado falar-se de antinomia ou contradição entre o primeiro e último Canotilho. O Professor Gomes Canotilho, voltando no tempo, muito provavelmente iria escrever a mesma Constituição Dirigente que concretamente escreveu.
Dizendo-o de um outro modo, para se falar em contradição do autor, seria necessário imaginar que as condições históricas em que a obra foi produzida não tivessem sido alteradas um milímetro sequer nesses mais de 20 anos. Como facilmente se percebe, não é essa a realidade. O mundo, Portugal e mesmo o Brasil, ou seja, a realidade em que agora escreve o Professor Canotilho pouco guarda do contexto histórico existente, sobretudo na Península Ibérica nos anos subsequentes à Revolução do 25 de abril de 1974. De lá para cá, para citar apenas os acontecimentos mais importantes, Portugal se inseriu na Comunidade Europeia; a democracia está absolutamente consolidada no país irmão e teve avanços inegáveis no Brasil; a Constituição de 1976, conquanto permaneça a mesma, sofreu várias reformas que lhe subtraíram o peso de um conteúdo absolutamente socializante, que lhe arregimentava numerosos e importantes opositores; no âmbito cultural, a internet, os avanços nos meios de comunicação de massa e a imposição de uma economia globalizada transformaram definitiva e profundamente a nossa forma de estar no mundo; esses mesmos fatores cultuais (sobretudo, os novos meios de comunicação e informação ), a mesma economia globalizada e a queda do Muro de Berlim romperam com um equilíbrio de forças mundiais — que jamais voltará a se recompor — e acabaram por comprometer definitivamente a ideia de soberania com a qual os juristas estavam acostumados a teorizar desde o início do Constitucionalismo até os fins da década de 1980. Além de tudo isso, as próprias teorias constitucionais sofreram, no interregno dessas mais de duas décadas, constantes e profundas modificações. Portanto, somente alguém atingido por um autismo intelectual sem precedentes poderia, perdendo em alto grau o contato com os dados e o mundo circundantes, menosprezar em sua elaboração teórica as transformações sociais, culturais, econômicas e políticas pelas quais fomos todos atingidos.
Portanto, se parece demasiado impor a qualquer cientista social (o jurista aí incluído) que, na produção e desenvolvimento de seu afazer teórico, desconsidere o inevitável fluir dos acontecimentos históricos, no caso do Professor Canotilho, a exigência consistiria mesmo num paroxismo.
Quem o conhece sabe: poucos juristas terão tido a mesma preocupação em se manter atualizado com tudo o que há de mais contemporâneo na sua área de conhecimento. E tal preocupação não se deixa confundir — de forma alguma — com certo espírito novidadeiro, do novo pelo novo, nada mais infenso ao espírito sóbrio e honesto com que se porta o Professor José Joaquim Gomes Canotilho ao fazer ciência. O que sempre houve na produção intelectual do Mestre de Coimbra — e isso facilmente se percebe — é uma preocupação permanente de que as teorias por ele empregadas sejam mesmo adequadas aos objetos a que se propõem explicar. Como acabamos por concluir vários dos estudantes (eu na condição de doutorando) que tivemos a honra e a felicidade de frequentar o seu gabinete de estudos na Universidade de Coimbra e de dividir com ele algumas das nossas preocupações teóricas, graças a uma evolução constante e a uma busca sem tréguas pela maior atualização possível de suas posturas teóricas, sem perder em nada na já reconhecida estruturação metódica, teórica e principiológica de sua produção intelectual, não nos era incomum constatar que o pensamento do Professor Canotilho muito frequentemente não estava onde nos o colocamos, estando, na maioria das vezes, alguns anos adiante.
É claro que existem aqueles que preferem escapar a enorme dificuldade que significa, ante a imposição das transformações históricas, ter que rever e renovar a sua indumentária teórica, buscando, com isso, se auto conferir o privilegio de poder frequentar sempre novos ambientes históricos com a mesma roupa velha de anos e até de décadas passadas, ainda que, para tanto, tenham que correr o risco de virem a se converter no sublime — porém absolutamente absorto — personagem da bela poesia de Chico Buarque de Hollanda:
“(...) Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu”
Àqueles que não aceitam se transformar em Carolinas distraídas da teoria constitucional, deixo à consideração, neste final, a sábia advertência de Dieter Grimm, produzida por ocasião dos 50 anos da Grundgesetz alemã e que muito se relaciona com toda a luta que, na sequência dos anos, vem desenvolvendo o Professor José Joaquim Gomes Canotilho: A bondade das constituições não se deixa determinar de forma absoluta e universal, mas apenas segundo um contexto histórico-concreto. O que tem êxito em um país, não serve necessariamente para um outro. O que era razoável no passado, pode perder seus objetivos no presente. Constituições apontam para o resultado no futuro e afirmam-se (historicamente) no tempo. Seu êxito depende por isso também dos problemas que se opõem a elas na curso do tempo. Tais problemas conclusivamente apenas podem ser previstos pelos autores da Constituição de forma limitada. Por conseguinte, as soluções também quase sempre não se encontram dispostas prontamente na Constituição. A diferença entre normas abstratas e problemas concretos precisa ser ultrapassada, pelo contrário, através do significado e aplicação das normas. Nesse ponto, o êxito de uma Constituição também (depende das) respostas que são extraídas pelos interpretes das normas constitucionais e que são determinadas definitivamente pelo teor da Constituição[9].
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[1] O presente texto cuida-se, no essencial, de prefácio que preparei para a obra Canotilho e a Constituição Dirigente, organizada pelo querido professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, publicada pela Editora Renovar, no ano de 2003.
[2] J. J. Gomes Canotilho (entrevista a Eloy Garcia), El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 26 a 29.
[3] J.J. Gomes Canotilho, El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 32.
[4] J.J. Gomes Canotilho, El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 32.
[5] J.J. Gomes Canotilho, El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 33.
[6] J.J. Gomes Canotilho, El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 34.
[7] Para tanto, o autor buscaria inspiração inicial tanto em Crisafulli, que há muito, com o auxílio na jurisprudência da Corte Constitucional italiana, já havia afastado qualquer dúvida quanto à aplicabilidade das normas chamadas programáticas, como também na contribuição de P. Lerche, com seu Übermass und Verfassungsrecht, onde já se concebera, além de uma “constituição dirigente” – diferente da do Professor Canotilho –, uma tipologia de diferentes classes de normas constitucionais e também se enfrentara o problema de sua operatividade, alcançando os problemas de sua teorização e aplicação prática, o que significa uma conquista definitiva. Cf. J.J. Gomes Canotilho, El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado, (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 34.
[8] Cuida-se da obra Canotilho e a Constituição Dirigente, organizada pelo querido professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, publicada pela Editora Renovar, no ano de 2003
[9] D. Grimm. Die Verfassung und die Politik: Einspruche in Storfallen. Munchen: Beck, 2001, p. 295.
Por Néviton Guedes
Fonte: ConJur