Direito e Literatura
Fato à Ficção é um programa de televisão apresentado pelo procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor da Unisinos Lênio Streck, onde se discute, com convidados, uma obra literária e seu diálogo com o Direito. A obra a seguir, é As Cartas de Pe. Antonio Vieira. Participam do debate o professor doutor de Direito da Unisinos, Antonio Carlos Nedel, e a professora doutora em Letras Maria Regina Bettiol. Assista ao vídeo e leia a resenha do programa feita pela jornalista Camila Mendonça.
Direito e Literatura - Padre Antônio Vieira from Unisinos on Vimeo.
Direito e Literatura - Padre Antônio Vieira
Desde muito jovem até os últimos dias de sua vida, que abrange grande parte do século XVII, Antônio Vieira escreveu uma volumosa correspondência que trata de todos os acontecimentos importantes para a Corte portuguesa, com especial interesse pelo Brasil e o estado do Maranhão. Estão reunidos no livro As Cartas de Pe. Antonio Vieira, organizado por João Adolfo Hansen, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, 177 cartas que tratam das questões enfrentadas pelas missões jesuíticas na administração dos negócios ultramarinos, dentre as quais se encontram as célebres " Iquazafigo.
Para a professora Maria Regina, Vieira é autor de uma obra bastante significativa, profética, de sermões e cartas, e considerado um dos precursores do pensamento brasileiro. Vieira já propôs a eleição de chefes locais, uma justiça localizada, uma moeda regional e uma certa autonomia do Brasil, sem romper os laços com a comunidade lusa.
O mediador do programa conta que o livro trabalha com as cartas referentes ao período colocial do Brasil. O recorte acaba tratando de questões de grande contemporaneidade.
O professor de Direito convidado para comentar a obra faz uma retrospectiva filosófica e pontua que Padre Antonio Vieira era um aristotélico, neo-escolástico. "É possível apreciar a obra dele por esse viés." Ao mesmo tempo, afirma que Vieira era um pensador cristão e o cristianismo mudou profundamente a compreensão do ser humano e por consequência a compreensão do Direito. "A raiz teórica que nutria o pensamento teológico, como também o jurídico, está nessa grande tradição aristotélica", explica o docente.
O professor observa que na perspectiva clássica o homem estava vinculado a polis, esta, por sua vez era estruturada com base na metafísica aristotélica. Com o advento do pensamento cristão de Santo Agostinho, vai haver a mudança. "A polis deixa de ser o centro da vida, e também o da juridicidade. Haverá sobre o influxo da visão cristã uma transcendência, e é vista com maus olhos, ainda vinculado pelo pecado original, a polis humana."
Santo Agostinho provoca uma ruptura com a racionalidade clássica, que posteriormente, com a emergência do pensamento de São Tomas de Aquino, incita uma racionalização do cristianismo, que vai reabilitar a racionalidade aristotélica. É nesse que floresce a obra de Pe. Vieira.
"Uma carta é um sussuro com um amigo no canto", recita Lênio Streck a frase de Erasmo de Roterdam, e lança a pergunta: Será Vieira o imperador da literatura?
"Ele é o imperador da língua portuguesa, título que Fernando Pessoa lhe outorgou. A carta é um fenômeno da civilização, ela se presta a abordagens variadas, jurídica, filosóficas. A partir da trilogia das cartas, nós podemos fazer uma trilogia da civilização", comenta Regina.
Para a doutora em Letras, não se pode escrever sobre cultura brasileira sem dedicar-se a Vieira, pois ele chega no país, onde o espaço de ocupação é fragmentada, onde ele convida a todos para fazerem parte do mesmo processo.
Por outro lado, Vieira também tem papel importante na restauração, porque vai tentar resgatar a imagem de Portugal, trazer de volta os tempos gloriosos, fica muito amigo do D. João IV, que costumava chamá-lo de "o lábia", pois dizia que ele era capaz de convencer qualquer um, de qualquer coisa, conta a convidada.
Outro recurso muito utilizado por Vieira, segundo a análise do programa, é em relação aos conceitos. Ele universalizava os sentidos e era um arauto da moralidade pública, o que remonta a São Tomaz de Aquino, pois juntos vão ganhar o mundo para a cristandade, mas dialeticamente.
A professora ainda coloca que, embora ele faça referências a autoridades canônicas, o escritor Vieira pleiteou a sua liberdade hermenêutica: "Os antigos não disseram tudo, os antigos não sabiam tudo, os saberes da Europa cá não servem, saberes que não estão em todos os livros." Para a docente, ele tinha essa noção de que a teoria se desenvolve diferentemente quando ela sai do seu loco e vai para um outro território.
"Ele discute teoria e propõe reformulação das políticas de ocupação do território. E aí vem as suas brigas com os colonos, com os portugueses, ele vê o Brasil não como viajante, mas como habitante, ele chega no Brasil com 6 anos de idade, 58 anos da sua vida ele passou no Brasil, então ele não passou impunemente os bosques, ele pegava sua canoa e saiu pelo país a fora, tem outra percepção", conta Regina sobre a biografia de Vieira.
Outra característica de Vieira é que ele não descreve a América portuguesa como um paraíso, mas como um lugar de guerra, fome, epidemias, sem ideologia. Ele já está a par dos sucessos e insucessos dos seus antecessores. Ele exige posição do centro, não é uma postura de subserviência, pois ele denuncia com veemência a morte dos índios, as misérias, as dificuldades e as reclamações relacionadas à probidade. Nesses aspectos as cartas dele são contemporâneas ainda hoje, explicar o professor de Direito. Outro ponto atual que Vieira denuncia é o extrativismo.
"Vieira encantava as plateias incultas, e com esse mesmo discurso, os mais refinados prelados europeus. Ele tinha esse condão mágico, de manter esse patamar elevadíssimo", relata o professor de Direito e completa que essa preocupação em se fazer entender tem haver com a missão jesuítica, com ganhar adeptos para a causa cristã.
"Não se trata de um libertário, tampouco um defensor dos índios. Na verdade, ele prega atitudes mais moderadas, aos índios poligâmicos, que praticaram rituais de magia, ele prega que seja aplicada a lei", afirma Nedel.
Por Camila Ribeiro de Mendonça
Fonte: ConJur e Unisinos on Vimeo