sábado, 31 de março de 2012

Doação de sangue vira pena alternativa em Sorocaba

Criatividade e vidas poupadas
Desde setembro de 2010, o Judiciário paulista adotou a doação voluntária de sangue como pena restritiva de direitos para autores de infrações de menor e médio potencial ofensivo.

A medida exige que o Ministério Público ofereça mais de uma proposta de pena restritiva de direitos ao autor da infração para garantir a voluntariedade do ato, e que o futuro doador não tenha sido processado anteriormente.

No primeiro ano de aplicação da orientação, somente na 1ª Vara Criminal de Sorocaba, foram 415 doações por 165 pessoas. Para o juiz titular da Vara, Jayme Walmer de Freitas, o Judiciário pode auxiliar a saúde pública incrementando uma metodologia que privilegie a voluntariedade, o altruísmo e que eleve a auto-estima do doador, ao cumprir uma pena salvando vidas.

“Sem desmerecer o valor de uma pena pecuniária ou de uma cesta básica, a nobreza do ato é a que mais se coaduna com os anseios sociais que são a reinserção e a reeducação do infrator”, disse.

Ele ainda acrescentou que se juízes e membros do Ministério Público, espalhados pelos mais distantes lugares, unirem esforços para inserir a doação de sangue como pena alternativa à prisão, nas hipóteses inseridas na Lei 9.099/1995 — transação penal e suspensão condicional do processo —, milhares de vidas seriam poupadas. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJSP.

Fonte: ConJur

sexta-feira, 30 de março de 2012

Judiciário foi deixado para trás ainda no século XX

Esquecido
O calendário indica que o Brasil está no século XXI há pelo menos 11 anos, mas alguns setores privilegiados de nossa sociedade já estão no novo século alguns anos antes dos demais. Ponto favorável para eles porque mostra a pujança de nossa gente e nossas organizações em acompanhar os avanços e superar até mesmo o calendário gregoriano. Mas lamentavelmente os parabéns não são para todos os segmentos e a Justiça, infelizmente, é uma das tristes exceções em nossa sociedade, por não se encontrar entre os segmentos mais modernos. Sucateada em sua infraestrutura há décadas, um dos poderes da República foi deixado para trás ainda no longínquo século XX.

Há que se fazer uma ressalva quando se analisa o problema da falta de condições de trabalho na Justiça. O material humano — magistrados e demais funcionários do Judiciário — é feito da mesma matéria prima dos demais cidadãos: em sua vasta maioria composta por gente séria, abnegada, que não desiste e que, por livre e espontânea vontade, decidiu servir à coletividade ingressando no serviço público. O sucateamento da infraestrutura da Justiça começa na ponta dos dedos desses cidadãos, em suas ferramentas de trabalho. Canetas, lápis, máquinas de escrever — que meu neto acha que é um computador com impressora acoplada — e pilhas e mais pilhas de papéis povoam o cotidiano desses brasileiros que atendem outros cidadãos como eles, ansiosos por verem suas justas demandas resolvidas. Cidadãos esses que convivem em seu cotidiano com todas as mais modernas ferramentas de tecnologia e gestão, agilizando suas vidas particulares e seus negócios, posicionando suas vidas na era moderna.


Por isso, é natural que diante da morosidade estrutural — não de pessoal — do Judiciário o cidadão legitimamente questione a qualidade da Justiça que lhe é oferecida, a partir dos impostos pagos por ele. Com isso, um dos efeitos colaterais da precariedade da infraestrutura jurídica é a imagem de serviço lento e demorado que a Justiça carrega. Afinal, quem procura a Justiça vai atrás de solução e não de dor de cabeça.


Curiosamente, a confiança da população na Justiça está aumentando, a despeito da falta de infraestrutura. De acordo com os dados disponibilizados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2010 deram entrada 4,6 milhões de novos casos em primeira instância, contra 3,9 milhões de processos no ano anterior. Isso significa que 700 novas demandas foram apresentadas à Corte em busca de Justiça, mais gente acredita que a via legal e civilizada é o caminho mais seguro para fazer valer seus direitos. No outro lado do balcão, nos fóruns, a realidade do trabalho desafia a imaginação.

Atualmente, cerca de 2 mil juízes atuam nos tribunais de primeira instância, distribuídos em todo o estado de São Paulo. Eles constituem a face mais próxima que o cidadão tem da Justiça, pois são os magistrados de primeiro grau os primeiros a examinarem as demandas. Nas mãos de cada um desses magistrados há atualmente algo em torno de 9.802 processos, e é justamente na proporção desses números que reside uma parte dos problemas. Cada caso exige uma atenção mínima de duas horas e meia para ser bem examinado, porque ninguém quer que seu pleito seja visto em ritmo de fast food. Toda causa tem no mínimo duas pessoas envolvidas, além dos respectivos advogados autores das peças jurídicas incorporadas ao processo, e em respeito a elas o magistrado se debruça concentrado para conhecer os autos, que embasarão sua tomada de decisão.


Pois bem, voltando aos números podemos imaginar que os juízes de primeira instância gastariam algo como 24.505 horas ou 3.063 dias corridos, sem interrupção para finais de semana, Natal, Páscoa e os demais feriados, para dar conta do número de processos que hoje eles têm em mãos. Com oito horas de trabalho ininterruptas, sete dias por semana, ao final de 8 anos, a pilha de 9.802 processos estaria despachada. E sem esquecer uma providência importante: sem receber mais nenhum novo processo. Como isso não é possível, chega-se ao óbvio: a atual infraestrutura do Judiciário não permite que a conta feche.


Quantificar o custo dos investimentos é importante em qualquer organização e se torna ainda mais obrigatório quando é feito com dinheiro público. Todavia, a sabedoria popular aponta um tipo de economia muito prejudicial ao poupador: a economia de palito. Não gastar não é sinônimo de poupar ou mesmo de investir com inteligência. Mas aplicar recursos do cidadão em favor dele próprio é lição de boa gestão do dinheiro público, que merece ser repetida inúmeras vezes como exemplo. Formas de controlar o destino das verbas existem, sendo uma das mais simples é garantir a destinação pura e simples do dinheiro através de um recurso que a gíria político-administrativa chama de “carimbar a verba”, tornando seu uso obrigatório para a modernização da infraestrutura.


Aplicar recursos na implantação de uma infraestrutura tecnologicamente avançada e eficiente integrando todos os fóruns do estado e o Tribunal de Justiça representa trazer o Judiciário paulista para o século XXI. Significa dotar o Judiciário do Estado de aparelhos eficientes na agilização do cotidiano dos fóruns, levando Justiça de maneira mais rápida – porque eficiente ela já é, haja vista a qualidade de quem trabalha no aparelho Judiciário em todos os seus níveis. Em resumo, aplicar recursos em favor da sociedade sempre será matéria obrigatória e muito bem vinda em qualquer tempo e por qualquer governo. Oposições a ações como essa surgirão, inclusive com questionamentos legítimos envolvendo desde os valores gastos até a tecnologia escolhida para prestar serviço. Mas o certo mesmo é que o cidadão — com ou sem toga — agradecerá nas ruas, nos fóruns e nas urnas.

Por Roque Mesquita

Fonte: ConJur

quarta-feira, 28 de março de 2012

A corregedora Eliana Calmon e os moinhos de vento

Jogando pra pláteia
A entrada do apartamento da ministra Eliana Calmon em Brasília mostra enfileirada uma dezena de pequenas imagens de santos barrocos, conforme se fica sabendo ao folhear as sete páginas do perfil escrito pela jornalista Daniela Pinheiro e publicado na revista Piauí deste março de 2012. No dia 8 desse mesmo mês, consagrado às mulheres, a ministra esteve no programa matutino da TV Globo Mais Você, falando também de seu livro de culinária e dando uma receita da torta mousse de chocolate.

Na véspera do feriado da Proclamação da República do ano passado, Eliana esteve no centro de Roda Viva, programa da TV Cultura comandado pelo jornalista Mário Sérgio Conti. Durante quase uma hora e meia a ministra discorreu sobre a crise provocada por sua expressão “bandidos de toga” e sobre a necessidade de transparência e de mudar uma cultura de dois séculos de ausência de controle.

Numa conversa um dia antes da participação da ministra no programa matutino da Globo, uma especialista em comunicação no Judiciário de Brasília comentou que se Eliana Calmon Alves tivesse interesse em entrar para a política, sem dúvida iria longe, tamanho é o prestígio e o apelo popular dessa ministra “sem papas na língua”. Contava a especialista que, ao terminar a gravação de um programa, todos os técnicos, câmeras, diretor de TV, maquiador, iluminador e produtor, formaram fila para fotos ao lado da juíza. Algo que tem sido pouco visto no âmbito da Justiça, mas acontece, como no caso do juiz Fausto De Sanctis, do ministro Joaquim Barbosa e do quase esquecido procurador da República Luiz Francisco. Em geral, magistrados querem distância, como se constatou no caso do presidente do STJ que descontrolou-se com um estagiário por estar próximo demais na fila do caixa eletrônico.


“A ministra Eliana Calmon se define como uma batalhadora da Justiça e juíza por vocação. Critica o Judiciário, diz, pois ama a Instituição. Nascida na Bahia, começou a carreira como professora de Processo Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para onde se mudara após prestar concurso para procuradora. No meio do caminho, fez concurso para juíza federal e deslanchou a carreira. Criadora da escola da magistratura do Distrito Federal, chegou ao Superior Tribunal de Justiça em 1999, como a primeira mulher a aceder a essa instância. Nomeada coordenadora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), instituída pela Emenda 45, Eliana viajou por todo o país, ouvindo e elaborando idéias para o currículo das 82 escolas de magistratura, federais, estaduais, da Justiça do Trabalho ou Militar, espalhadas pelos mais diferentes recantos.” Esse foi o texto de introdução da entrevista que publiquei em setembro de 2006 na revista Diálogos&Debates da Escola Paulista da Magistratura (EPM), num número temático sobre para a presença feminina na Justiça.


Naquela entrevista, a ministra me recebeu na sala de estar de seu apartamento, sentando-se numa cadeira branca (a famosa Barcelona, de Mies van der Rohe) e tendo ao lado uma estátua do Quixote (sem o Sancho Pança). Não era mera coincidência. Alguns símbolos compõem um imaginário: Eliana se vê como batalhadora da causa da transparência na Justiça.


O problema talvez esteja na escolha do alvo para suas investidas. Há corrupção em qualquer área de atividade humana. Há excelentes médicos, professores, engenheiros – e há os despreparados, malandros ou golpistas. Como escreveu na década de 50 o teólogo suíço Hans Urs von Balthazar (1905-1988) no ensaio Casta Meretrix, a Igreja Católica seria a prostituta casta, uma imagem que na época rendeu calorosas polêmicas. Hoje, com os escândalos e processos vividos pela Igreja Católica, a expressão já não surpreende. Tanto que Balthazar foi nomeado cardeal pelo papa João Paulo II, um reconhecido conservador.


O alvo eleito pela ministra corregedora do CNJ rende os holofotes da mídia, pois a fraqueza humana alimenta o ibope e é assunto que a imprensa privilegia em suas manchetes (como se leu na reportagem “A morte misteriosa do desembargador Viana Santos”, publicada esta semana pela revista Veja, sobre as mazelas do ex-presidente do TJSP).

Mas, de concreto, as acusações em série da ministra apenas criam um ambiente adverso num momento em que os esforços deveriam convergir para a mudança de atitude do Judiciário. E o primeiro papel do CNJ é aumentar a produtividade, reduzir a irracionalidade do sistema e ampliar a sua transparência.

É evidente que interessa saber se a política remuneratória do serviço público segue a lei e a lógica. Mas não custa lembrar que a responsabilidade pela exação de cálculos é de quem paga, não de quem recebe. Falar em “investigação” do TJSP dá a entender que todos estão sob suspeita. E isso não deixa de criar constrangimento para tanta gente séria, trabalhadora e empenhada na mudança, conforme ouvi do desembargador Armando Toledo, diretor da EPM — figura exemplar da magistratura. Ao falar no atacado, a ministra deixa todos sob o mesmo guarda-chuva — e a Justiça não melhora nem um pouco com essa injustiça.

Criar frases de efeito não muda muita coisa, ou não muda nada. Com o agravante de desviar o foco do que realmente interessa: a modernização e a agilidade do Judiciário, para pôr fim a uma morosidade que continua disparada na frente das prioridades. Esse problema da justiça lenta se resolve com a adoção de critérios de produtividade e de eficácia, investimentos em informática e treinamento em gestão, como vem promovendo o TJ-SP e a EPM — não com polêmicas que até fazem supor interesses eleitoreiros.

O Judiciário precisa menos de posturas alarmistas e dispersivas — e mais concentração de esforços. Ao lançar farpas contra o presidente do STF, como se lê no perfil da revista Piauí, leva o que deveria ser um debate de alto teor ao nível das picuinhas. Sobrepõe uma questão pessoal ao interesse público. Ao afirmar que só conseguiria inspecionar o TJ-SP no dia em que o sargento Garcia prendesse o Zorro, Eliana comete uma boutade, mas deixa de atacar o que realmente importa e faz a diferença. Até porque ela sabe que dispõe dos meios necessários para inspecionar o que quiser e quando quiser. E o presidente do TJ-SP, desembargador Ivan Sartori, ao lançar o “desafio dos contracheques” (ele declarou que mostraria seu holerite se a ministra Eliana Calmon também revelasse o dela) apenas dá mais munição a esse quixotesco ataque a moinhos de vento.

O que importa saber são as medidas e os resultados concretos que a ministra, quase em fim de mandato como corregedora, tem a apresentar. Quantas situações de irregularidade foram esclarecidas e sanadas? Quantos passos foram dados para encerrar o que ela mesma define como dois séculos de uma cultura em que o Judiciário agiu sem controle, criando excessos de panos quentes e de corporativismo? Talvez seja hora de comparecer menos a programas de receitas e mergulhar no duro trabalho de investigar e de colocar nas grades quem realmente fez por merecer. E, sobretudo, de criar a cultura da transparência e da eficácia. Quanto à questão dos contracheques, basta tomar a decisão adotada pela Prefeitura da cidade de São Paulo – medida que foi bombardeada com ações judiciais. Hoje, os valores brutos de todos os contracheques da administração paulistana são publicados online, no site “De olho nas contas”. É questão de querer mudar. E mudar.


Por Carlos Costa, é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates.


Fonte: ConJur

segunda-feira, 26 de março de 2012

Superlotação nos presídios: Paraíba ocupa 2ª posição no número de apenados do Nordeste

Cultura punitiva

O Secretário de Administração Penitenciária Harrison Targino disse na manhã desta segunda-feira (26) que a Paraíba ocupa a segunda posição no número de apenados do Nordeste.

Segundo ele, o Estado tem cerca de 8.400 presos, enquanto a população carcerária ideal seria de 5.500. Apenas no Presídio do Róger, em João Pessoa, existem mais de 1.000 apenados, enquanto a capacidade da unidade prisional é de abrigar apenas 600 deles.

Superlotação em presídios

Harrison ainda falou que esse problema acontece em todo Brasil, onde existem aproximadamente 513.000 presos para 300.000 vagas. "Isso significa dizer que é um problema nacional o déficit carcerário", disse.

O secretário Harisson Targino também falou sobre a morte de um detento na noite deste domingo (25) por overdose no Presídio do Roger, na Capital. De acordo com ele, a droga entra de várias maneiras nas unidades prisionais e é um dos maiores problemas da atualidade.

Detento morre de overdose dentro do Presídio do Roger em João Pessoa
O presidiário Hugo Leandro dos Santos, 24 anos, passou mal durante a visita de familiares na penitenciária. Uma unidade do Samu foi acionada e fez o socorro do presidiário para o Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa, com fortes dores no peito.

Após ser atendido, por volta das 18h30, Hugo Leandro não resistiu e veio a óbito. Agentes confirmaram que a morte do presidiário está relacionada com o consumo de drogas.

A entrevista foi dada à repórter Pollyana Sorrentino, no programa Correio Debate, na 98 FM.

Por Felipe Silveira
Fonte: Portal Correio

domingo, 18 de março de 2012

Novo Código Penal

Editorial da Folha
Urge reformar a legislação criminal brasileira para restabelecer o princípio de proporcionalidade entre penas, crimes e valores

O Senado e a Câmara discutem atualmente, em comissões separadas, alterações profundas na legislação penal brasileira.

Na Câmara, debate-se uma reforma voltada a valorizar penas alternativas e a punir crimes violentos e corrupção. A direção está correta, mas, ao pôr de lado temas como aborto ou eutanásia, a comissão reforça a tendência preocupante de parlamentares a se omitirem em temas polêmicos.

No Senado, o autor do requerimento de criação da outra comissão, senador Pedro Taques (PDT-MT), afirma que o código atual, com 72 anos, já merece aposentadoria compulsória. A idade avançada não é o problema mais grave do diploma legal, e sim a colcha de retalhos em que se transformou.

Entre reformas expressivas -como a de 1984- e mudanças pontuais, 53 leis modificaram o Código Penal desde 1940. Mais de dois terços das alterações aconteceram depois da Constituição de 1988.

Foram promulgadas, ainda, diversas leis que criam crimes e estabelecem penas, mas sem alterar o código propriamente dito. Tudo somado, obtém-se um emaranhado obscuro de normas.

Um Código Penal sem coerência e clareza representa grave deficiência para a democracia. O direito criminal configura a possibilidade mais severa de interferência na vida do cidadão. Ali estão previstas as condutas que, praticadas, autorizam o Estado a privar a pessoa de sua liberdade.

O Código Penal existe para regrar essa interferência extrema e impedir que fique submetida apenas ao arbítrio dos agentes do Estado. Deve expressar a hierarquia de valores da sociedade e espelhar-se, sempre, na Constituição, fundamento do pacto político da nação.

Esse é o cerne do princípio da proporcionalidade. Uma conduta que atente contra um valor mais importante deve ensejar uma pena maior; um comportamento que afete valores menos expressivos deve resultar em penas mais baixas; e uma prática que não prejudique valor relevante para a sociedade não deve ser criminalizada.

A verdadeira barafunda jurídica em que se converteu a legislação penal claramente desrespeita o princípio da proporcionalidade.

A vida e a liberdade são os bens mais preciosos para o ser humano. Crimes como os de sequestro ou cárcere privado (pena de 1 a 3 anos de prisão) e homicídio (6 a 20 anos) deveriam figurar no ápice da hierarquia penal. Mas o código reserva penas exorbitantes a alguns crimes banais, como soltar balões (1 a 3 anos) ou molestar cetáceos de modo intencional (1 a 5 anos).

Outra falha de proporção ocorre com crimes tipificados em momentos de grande comoção popular, seguida de cenas explícitas de debate parlamentar oportunista.

Daí resultam situações esdrúxulas, como é o caso da falsificação de produto terapêutico. O delito foi codificado no calor de denúncias de adulteração de pílulas anticoncepcionais e contemplado com uma pena de 10 a 15 anos de prisão -que poderia ser aplicada até a quem falsificar um xampu anticaspa, por exemplo.

A onda de sequestros-relâmpago fez com que o Congresso aprovasse uma lei que atribui à lesão corporal durante um sequestro desse tipo pena maior que a de homicídio: 16 a 24 anos.

Certos crimes, por não serem praticados com violência, poderiam ter um tratamento menos severo, como o furto qualificado (pena hoje de até oito anos de prisão).

Caberia discutir a inclusão nessa categoria até da venda de pequena quantidade de drogas, que hoje não pode receber pena alternativa, só a de privação de liberdade.

Por outro lado, crimes que, mesmo cometidos por uma só pessoa, produzem danos profundos a toda a sociedade, recebem punições aquém do que parece razoável.

Abuso de poder e prevaricação têm pena prevista de três meses a um ano; submeter alguém a trabalho escravo, corrupção, peculato e tráfico de influência, pena mínima de dois anos; lavagem de dinheiro, três anos. E, diferentemente de países que já preveem penas altas para quem participa de organizações criminosas estruturadas (3 a 6 anos na Itália), o Brasil ainda usa a antiquada figura da quadrilha, com pena de 1 a 3 anos.

A desproporcionalidade generalizada compõe um direito penal desconectado dos valores constitucionais e produz uma situação desconcertante. Embora os cárceres estejam apinhados, e os governos admitam que não têm como criar vagas para tanta gente, o sentimento de impunidade que revolta a população só faz crescer.

Um Código Penal reformado à luz do princípio de proporcionalidade entres os delitos criaria uma base sólida para tornar a política criminal mais eficiente. As prisões não ficariam superlotadas com criminosos de pequena periculosidade e se destinariam àqueles que realmente violaram os valores mais preciosos da sociedade.

Fonte: Folha de São Paulo

sexta-feira, 9 de março de 2012

....populismo penal explode sistema penitenciário....

Realidade nua e crua
Discurso por penas rigorosas pode ser mantra eleitoral. Mas crescimento desenfreado do direito penal promete aprofundar quadro à beira do abismo.

Levantamento recente da Folha de S. Paulo concluiu que a superlotação nos presídios do Estado passou do sustentável e exigiria hoje nada menos do que a construção de dez penitenciárias por ano para se equilibrar.

Mais de vinte pessoas são presas por dia a mais daquelas que são soltas, inflando sem parar as estatísticas prisionais.

Mesmo assim, na primeira audiência pública para discutir o novo Código Penal, elevaram-se vozes a pressionar a Comissão justamente para aumentar as penas.

O encarceramento brasileiro caminha a passos largos para seguir números norte-americanos, o maior índice de aprisionamento mundial.

E o que ganhamos com isso?

Como a experiência tem nos demonstrado há décadas, mais prisão não faz diminuir a criminalidade. Ao contrário, a médio prazo só a incrementa.

Leis draconianas e interpretações rigorosas expõem um número cada vez maior de jovens ao contato com organizações criminosas, e os afastam da reinserção social.

Afinal, se todos querem um funcionário ficha limpa, quem vai empregar os egressos? E o que farão depois, sem chance de trabalho?

De outro lado, a grande mídia incensa sem parar a sanha prisional.

Os crimes são maximizados, de modo a que cada um dos leitores ou espectadores possam se sentir vítimas a todo momento.

As pessoas são convidadas a participar de julgamentos midiáticos que rapidamente se transformam em linchamentos e esvaziam o sentido do processo.

Quando um réu é absolvido, jamais pode ser simplesmente inocente. Ele apenas se "livra" da acusação.

Nem mesmo a condenação consegue aplacar a sede de punição. Todas as penas são tidas como irrisórias. O sistema progressivo, de longa tradição no direito penal, é traduzido como pura ausência de sanção. E um crime após a soltura ameaça prejudicar a liberdade de todos os demais que cumpriram as regras estabelecidas.

Apesar de estarmos em um crescimento geométrico do número de presos no país, nunca é suficiente para espantar a mística do "sentimento de impunidade".

Em resumo, é prender ou prender.

Até os juízes acabam por se contaminar com esse recrudescimento da moral punitiva.

Mas será que a sociedade está disposta a pagar o preço de um sistema fincado no crescimento contínuo das penas?

Muito em breve é possível que sejamos convidados à criação de uma nova CPMF, desta vez para as cadeias. Ou então continuaremos desviando recursos de áreas sociais para atenuar esse incontido sentimento de vingança.

É preciso entender que punir nem sempre significa prender - e aplicar a prisão a crimes menos graves é um verdadeiro contrassenso. Até porque os índices de reincidência são muito maiores dentro do que fora das grades.

A ânsia de mais e mais punição é uma forma demagógica que políticos encontram para lidar e lucrar com o medo alheio. Mas está nos fazendo apagar fogo com querosene.

Um dos mais crescentes índices de aprisionamento se encontra nos pequenos traficantes.

A "guerra contra as drogas" está lotando as cadeias de jovens primários, operários do comércio que não passam de meras peças de reposição. Suas prisões em nada esvaziam os negócios ilícitos, mas ao sair das celas terão grandes dificuldades de retornar ao convívio social. E seremos nós, não apenas eles, que perderemos com isso.

Permanece ainda uma enorme resistência dos juízes na aplicação de penas restritivas de direito, fazendo com que a jurisprudência garantista dos tribunais superiores continue acessível a poucos.

Há muito que fazer no sistema penal para corrigir suas históricas distorções.

O fim do foro privilegiado para autoridades e a expansão das defensorias públicas para os carentes, por exemplo, são medidas que podem contribuir para reduzir as enormes desigualdades da justiça.

Mas o Congresso e os governos não têm se mostrado dispostos a concentrar esforços em nome da igualdade. Continua sendo mais fácil encontrar e punir os suspeitos de sempre.

O discurso pelas penas mais rigorosas pode até ser um mantra eleitoral com dividendos sedutores.

Mas é bom ter em mente que o crescimento desenfreado do direito penal apenas promete aprofundar um quadro que já está à beira do abismo.

Por Marcelo Semer
Fonte: Blog Sem Juízo

quinta-feira, 8 de março de 2012

Magistrado gaúcho aponta morosidade do STF e benevolência com autoridades

Hora da verdade
Sob o título “A Justiça de primeiro grau funciona sim, Ministro Gilmar Mendes”, o artigo a seguir é de autoria de Pedro Luiz Pozza, juiz de direito no Estado do Rio Grande do Sul (*). O texto, publicado originalmente no blog do magistrado (**), é reproduzido com sua autorização.

As palavras do Ministro Gilmar Mendes, do STF, durante manifestação acerca do foro privilegiado para autoridades, no sentido de que a justiça de primeira instância não funciona, devem ser repudiadas de forma veemente.

Infelizmente, tem sido comum que altas autoridades do Poder Judiciário critiquem os juízes de primeiro e segundo grau, sendo essa, aliás, uma das maiores justificativas pelos quais defendem uma atuação ampla do Conselho Nacional de Justiça.

Os próprios juízes brasileiros reconhecem que a justiça não funciona como deveria. Isso, entretanto, não é culpa dos magistrados, salvo exceções, não sendo esses vagabundos, como sustenta sem dar os nomes, a ministra Eliana Calmon, Corregedora do CNJ. Ao contrário, a maioria trabalha, e muito.

Ademais, não tem o STF moral para criticar a justiça de primeiro grau, quando são aos milhares os processos que tramitam na mais alta Corte brasileira que duram vinte, trinta, quarenta anos, e alguns até mais.

Basta ver as pautas divulgadas pelo STF para suas sessões plenárias. Na sessão de 01 de março, por exemplo, um dos processos pautados (Ação Cível Originária nº 79) tem mais de 50 anos de tramitação (foi ajuizada em 17.06.1959), e ainda assim não foi julgado.

Outro processo – ADI 807, da relatoria do Ministro Dias Toffoli, foi ajuizado em 24.11.1992. E ainda assim o julgamento não foi concluído, pois a Ministra Rosa Weber pediu vista.

O próprio Ministro Gilmar Mendes é relator de uma ADI (nº 803) que foi ajuizada em 26.11.1992, e até hoje não foi colocada em pauta.

Além disso, o STF é extremamente benevolente com as autoridades que têm foro privilegiado, pois até hoje poucos foram os parlamentares condenados por crimes cometidos. E quando há condenação, no mais das vezes as penas estão fulminadas pela prescrição.

Bastaria que o STF fosse mais rigoroso com os detentores de foro privilegiado, condenando rapidamente aqueles que realmente devem ser punidos, que os próprios parlamentares mudariam a Constituição para extinguir essa excrecência jurídica, pois ao menos teriam mais chances se processados pela justiça de primeiro grau, que como disse o Ministro Gilmar, não funciona.

Lógico, o STF, quando quer, é extremamente rápido, especialmente quando seus julgamentos são de interesse da opinião pública, e dão audiência na TV Justiça, como ocorreu com a decisão sobre as uniões homoafetivas, Lei da Ficha Limpa, etc.

Também foi extremamente rápido o STF para julgar (e arquivar, obviamente), as ações de improbidade em que era réu o próprio Ministro Gilmar Mendes, por ocasião de sua ascensão à Presidência da Corte, e que diziam respeito a atos praticados por ele quando à testa da Advocacia-Geral da União.

Dessas ações, aliás, nem registro há no site do STF, devendo estar ao abrigo do segredo de justiça.

Infelizmente, basta assistir a uma sessão do plenário do STF para verificar que ali o que mais impera, é a vaidade, salvo honrosas exceções, pois a despeito de os Ministros estarem de acordo com o voto do Relator, concluindo de imediato o julgamento, ficam a tecer longas considerações sobre seus posicionamentos, com isso desperdiçando um tempo precioso que poderia ser dedicado ao julgamento dos milhares de outros processos que esperam por decisão nos escaninhos de seus gabinetes.

Triste que essas críticas generalizadas ao Poder Judiciário vêm de que não tem experiência para fazê-las.

Lamentavelmente, a maioria dos que chegam à mais alta Corte de Justiça do país não são juízes de carreira, e que nunca tiveram de trabalhar sem qualquer estrutura, sem assessoria, sem computadores, etc., como faz a grande maioria dos juízes brasileiros no primeiro grau, cuja estrutura, salvo exceções, ainda é a do século XIX (nem ao menos chegamos ao século XX em alguns rincões deste país).

É muito fácil a quem nunca foi juiz de carreira, que nunca enfrentou as grandes dificuldades que enfrentam os verdadeiros heróis do Poder Judiciário, falar mal do desempenho da justiça de primeiro grau.

Portanto, Senhor Ministro Gilmar Mendes, respeite os juízes brasileiros.

———————————–

(*) Juiz de direito no Estado do Rio Grande do Sul, professor da Escola Superior de Magistratura da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul) e com Doutorado em Processo Civil pela UFRGS. É autor de diversas obras e artigos relacionados à área jurídica.

(**) http://pedropozza.wordpress.com/

Fonte: Blog do Fred

quarta-feira, 7 de março de 2012

Tourinho Neto requenta críticas a Eliana

Da série: Liberdade de Expressão
O juiz Fernando Tourinho Neto, vice-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e membro do Conselho Nacional de Justiça, enviou ao Blog cópia de comentário que mandou para a lista de debates dos juízes federais na internet, no qual critica as últimas declarações da corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon. A mensagem, reproduzida a seguir, tem o título “Corregedora do CNJ avilta o Poder Judiciário”.

Companheiros,

É demais! O modo como a eminente Corregedora Nacional do CNJ age envilece, humilha, rebaixa o Poder Judiciário.

Há maus magistrados, sim, juízes desonestos, sim, “bandidos escondidos atrás da toga”, “vagabundos”, no dizer da Ministra, sim. Disso o povo sabe, disso ouvimos falar. Como se ouve falar que há esses maus elementos no Ministério Público, na Defensoria Pública, na Polícia, no Congresso, na imprensa (imprensa marrom). Estas mazelas existem desde que o mundo é mundo.

A Corregedora enche os pulmões e brada que há bandidos na Justiça, então sabe quem são. Por que não declara os nomes? Por que com todo seu poder não abre procedimentos contra esses maus juízes? Não dizendo os nomes, está jogando para platéia, mis-en-scene, encenação, com o objetivo de obter palmas e elogios fáceis. Em um site já cogitaram o nome de Sua Excelência para o Senado, pela Bahia, ou para presidente da República.

Os juízes estão estarrecidos!

Ela não faz isso, como afirma, “em prol da magistratura séria e decente”, pois não denuncia qual é “a meia dúzia de vagabundos que estão infiltrados na magistratura”. Ministra abra procedimentos administrativos contra eles. Aja. Se Vossa Excelência assim proceder, toda a magistratura, séria e decente, aplaudir-lhe-á, pois um “um juiz iníquo é pior do que um carrasco”.

A ninguém importa mais do que à magistratura do que ter em seu meio um juiz digno, correto, honesto, corajoso.

A Ministra Eliana não pode destruir a Justiça. Deve, sim, instaurar o devido processo, e levar o caso ao Plenário do CNJ para que juiz tido como “vagabundo”, bandido, seja julgado. Com suas afirmações genéricas, Sua Excelência, está aviltando todos os juízes.

Abraços, Tourinho Neto

Fonte: Blog do Fred

terça-feira, 6 de março de 2012

Eliana Calmon não age como exige seu cargo

Opinião
Nenhum cargo público tem o condão de alterar a personalidade do ocupante, mas é pitoresco como alguns servidores públicos pretendem mudar a natureza de suas funções graças às suas personalidades ou, quando não, comprometer a imagem institucional da posição que ocupam diante de um capricho, de um tom particular, de uma nota pessoal.

É o caso da Corregedoria Nacional de Justiça, que deveria ser um posto de alta credibilidade compatível com uma figura sóbria, discreta, conservadora do sigilo e da elegância. Evidentemente, não seria a Corregedoria Nacional capaz de fazer uma correção ortopédica na pitoresca personalidade da ministra Eliana Calmon. Declarações de rompante com forte opinião pessoal têm marcado a triste intersecção entre o que o cargo demanda e o que a ocupante não pôde dar: sobriedade.

Os termos “vagabundo” e “criminoso”, imputados indiscriminadamente a magistrados brasileiros, são de uma infelicidade institucional para a Corregedoria Nacional e para o Conselho Nacional de Justiça, angariando antipatia generalizada de quem deveria aplaudir — o juiz. Estocadas beligerantes sem apontar nomes (aí sim, veríamos coragem verdadeira), afirmando haver togas criminosas e vagabundas no cargo da magistratura, fazem com que haja uma exposição não do criminoso e do vagabundo, mas do restante dos julgadores brasileiros, descredenciando-os junto à sociedade civil. Nada poderia ser pior.

Uma personalidade assim não pode ser punida por aquilo que é. Ninguém deverá ser apenado por seus pensamentos e opiniões, desde que não agridam qualquer cidadão. Nenhum histrionismo será punido. No entanto, lamentavelmente, opinião pessoal expressada de forma tão vulgar não só reflete o nível de educação, elegância e fineza do interlocutor, como rebaixa o próprio cargo. Porque de qualquer corregedor espera-se a máxima discrição, equilíbrio, declarações pensadas e bem arrematadas, porque importam enorme repercussão social e impacto particular no universo jurídico. No gládio entre o que o cargo exige e o que a pessoa tem para dar, não é raro sacrificar a venerabilidade do cargo, já que dificilmente alguém muda seus trejeitos, defeitos e idiossincrasias, sobretudo quando são as falhas pessoais saborosas excentricidades aplaudidas pela plateia.

Com a formação de brigadas de mocinhos contra bandidos, forma-se um clima de segregação interna no Judiciário, marcando quem é bandido e quem é mocinho, refletindo na mesma distinção da sociedade, que reclama honestidade do Poder Judiciário para o qual se socorre. Daí que o cidadão deverá consultar um oráculo, puro e perfeito, para saber se será julgado por um vilão ou um herói. E quem seria a pitonisa? Esse clima de caça às bruxas, depreciação da imagem judiciária e beligerância civil é o que há de pior numa democracia republicana que deveria ser regida pelo controle institucional, equilibrado e impessoal.

Eliana Calmon passará, mas a Corregedoria Nacional de Justiça não. Ficará, no entanto, uma sensação de faxina ética, limpezas típicas de totalitarismos ou, na melhor das hipóteses, uma frustração generalizada por não haver cadeia para supostos marginais não nominados. Além da desconfiança, esse covarde sentimento que espreita a imaginação humana. A Corregedoria Nacional deve ter desgastado emocionalmente Eliana Calmon, que talvez tenha ficado maior e mais popular, mas Eliana Calmon desgastou muito mais a Corregedoria Nacional de Justiça, que, certamente, ficou menor e mais popularesca. Desse conturbado conúbio de personalidade e cargos público, muitos filhos ficaram órfãos, entre os quais estão as irmãs isenção, discrição e serenidade, tão caras ao Judiciário.

Por Eduardo Mahon
Fonte: ConJur

domingo, 4 de março de 2012

Do Fato à Ficção: As Cartas de Pe. Antonio Vieira Por Camila Ribeiro de Mendonça

Direito e Literatura
Fato à Ficção é um programa de televisão apresentado pelo procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor da Unisinos Lênio Streck, onde se discute, com convidados, uma obra literária e seu diálogo com o Direito. A obra a seguir, é As Cartas de Pe. Antonio Vieira. Participam do debate o professor doutor de Direito da Unisinos, Antonio Carlos Nedel, e a professora doutora em Letras Maria Regina Bettiol. Assista ao vídeo e leia a resenha do programa feita pela jornalista Camila Mendonça.


Direito e Literatura - Padre Antônio Vieira from Unisinos on Vimeo.


Direito e Literatura - Padre Antônio Vieira

Desde muito jovem até os últimos dias de sua vida, que abrange grande parte do século XVII, Antônio Vieira escreveu uma volumosa correspondência que trata de todos os acontecimentos importantes para a Corte portuguesa, com especial interesse pelo Brasil e o estado do Maranhão. Estão reunidos no livro As Cartas de Pe. Antonio Vieira, organizado por João Adolfo Hansen, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, 177 cartas que tratam das questões enfrentadas pelas missões jesuíticas na administração dos negócios ultramarinos, dentre as quais se encontram as célebres " Iquazafigo.

Para a professora Maria Regina, Vieira é autor de uma obra bastante significativa, profética, de sermões e cartas, e considerado um dos precursores do pensamento brasileiro. Vieira já propôs a eleição de chefes locais, uma justiça localizada, uma moeda regional e uma certa autonomia do Brasil, sem romper os laços com a comunidade lusa.

O mediador do programa conta que o livro trabalha com as cartas referentes ao período colocial do Brasil. O recorte acaba tratando de questões de grande contemporaneidade.

O professor de Direito convidado para comentar a obra faz uma retrospectiva filosófica e pontua que Padre Antonio Vieira era um aristotélico, neo-escolástico. "É possível apreciar a obra dele por esse viés." Ao mesmo tempo, afirma que Vieira era um pensador cristão e o cristianismo mudou profundamente a compreensão do ser humano e por consequência a compreensão do Direito. "A raiz teórica que nutria o pensamento teológico, como também o jurídico, está nessa grande tradição aristotélica", explica o docente.

O professor observa que na perspectiva clássica o homem estava vinculado a polis, esta, por sua vez era estruturada com base na metafísica aristotélica. Com o advento do pensamento cristão de Santo Agostinho, vai haver a mudança. "A polis deixa de ser o centro da vida, e também o da juridicidade. Haverá sobre o influxo da visão cristã uma transcendência, e é vista com maus olhos, ainda vinculado pelo pecado original, a polis humana."

Santo Agostinho provoca uma ruptura com a racionalidade clássica, que posteriormente, com a emergência do pensamento de São Tomas de Aquino, incita uma racionalização do cristianismo, que vai reabilitar a racionalidade aristotélica. É nesse que floresce a obra de Pe. Vieira.

"Uma carta é um sussuro com um amigo no canto", recita Lênio Streck a frase de Erasmo de Roterdam, e lança a pergunta: Será Vieira o imperador da literatura?

"Ele é o imperador da língua portuguesa, título que Fernando Pessoa lhe outorgou. A carta é um fenômeno da civilização, ela se presta a abordagens variadas, jurídica, filosóficas. A partir da trilogia das cartas, nós podemos fazer uma trilogia da civilização", comenta Regina.

Para a doutora em Letras, não se pode escrever sobre cultura brasileira sem dedicar-se a Vieira, pois ele chega no país, onde o espaço de ocupação é fragmentada, onde ele convida a todos para fazerem parte do mesmo processo.

Por outro lado, Vieira também tem papel importante na restauração, porque vai tentar resgatar a imagem de Portugal, trazer de volta os tempos gloriosos, fica muito amigo do D. João IV, que costumava chamá-lo de "o lábia", pois dizia que ele era capaz de convencer qualquer um, de qualquer coisa, conta a convidada.

Outro recurso muito utilizado por Vieira, segundo a análise do programa, é em relação aos conceitos. Ele universalizava os sentidos e era um arauto da moralidade pública, o que remonta a São Tomaz de Aquino, pois juntos vão ganhar o mundo para a cristandade, mas dialeticamente.

A professora ainda coloca que, embora ele faça referências a autoridades canônicas, o escritor Vieira pleiteou a sua liberdade hermenêutica: "Os antigos não disseram tudo, os antigos não sabiam tudo, os saberes da Europa cá não servem, saberes que não estão em todos os livros." Para a docente, ele tinha essa noção de que a teoria se desenvolve diferentemente quando ela sai do seu loco e vai para um outro território.

"Ele discute teoria e propõe reformulação das políticas de ocupação do território. E aí vem as suas brigas com os colonos, com os portugueses, ele vê o Brasil não como viajante, mas como habitante, ele chega no Brasil com 6 anos de idade, 58 anos da sua vida ele passou no Brasil, então ele não passou impunemente os bosques, ele pegava sua canoa e saiu pelo país a fora, tem outra percepção", conta Regina sobre a biografia de Vieira.

Outra característica de Vieira é que ele não descreve a América portuguesa como um paraíso, mas como um lugar de guerra, fome, epidemias, sem ideologia. Ele já está a par dos sucessos e insucessos dos seus antecessores. Ele exige posição do centro, não é uma postura de subserviência, pois ele denuncia com veemência a morte dos índios, as misérias, as dificuldades e as reclamações relacionadas à probidade. Nesses aspectos as cartas dele são contemporâneas ainda hoje, explicar o professor de Direito. Outro ponto atual que Vieira denuncia é o extrativismo.

"Vieira encantava as plateias incultas, e com esse mesmo discurso, os mais refinados prelados europeus. Ele tinha esse condão mágico, de manter esse patamar elevadíssimo", relata o professor de Direito e completa que essa preocupação em se fazer entender tem haver com a missão jesuítica, com ganhar adeptos para a causa cristã.

"Não se trata de um libertário, tampouco um defensor dos índios. Na verdade, ele prega atitudes mais moderadas, aos índios poligâmicos, que praticaram rituais de magia, ele prega que seja aplicada a lei", afirma Nedel.

Por Camila Ribeiro de Mendonça
Fonte: ConJur e Unisinos on Vimeo