sábado, 24 de dezembro de 2011

Marco Aurélio não esvaziou o Conselho Nacional de Justiça

Editorial da Revista Época, edição 710
É lamentável, mas inevitável, que temas importantes sejam apequenados por disputas pessoais, partidárias ou corporativas. Mas a decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), de aceitar a tese da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não pode atropelar as Corregedorias estaduais para investigar e punir magistrados acusados de desvios deve ser isolada do barulho das desavenças menores. Mello tomou uma decisão prudente do ponto de vista jurídico e atuou perfeitamente dentro de suas atribuições.

Na semana passada, veio a público um ofício em que a corregedora do CNJ, Eliana Calmon, determinara a devassa na vida de 231 mil pessoas, entre juízes, familiares e funcionários da Justiça. Suspenso por liminar do ministro Ricardo Lewandowski, esse ofício revela o tipo de abuso a que podem estar sujeitas as investigações do CNJ. Dentro do equilíbrio essencial à questão, está claro que a decisão de Marco Aurélio Mello não liquida o poder de correição do CNJ. Não se trata também de tentar esconder que existem desvios de conduta no Judiciário. Eles existem, não são irrelevantes e precisam ser punidos com rigor. Como relator, Mello estabeleceu que a investigação de desvios tem de ser feita, antes, pelas Corregedorias locais. Só depois — e com justificativas — o CNJ pode avocar o trabalho para si.

O CNJ é essencial para o funcionamento da democracia brasileira. É preciso um órgão autorizado a cobrar eficiência e vigiar desvios do Judiciário. Se o texto constitucional dá margem a interpretações diversas, cabe ao STF dirimi-las. Ou ao Congresso aprovar uma redação mais clara, como a proposta no projeto do senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Congresso e STF devem fazer o trabalho pelo qual são sustentados pelo cidadão — o beneficiário final de tudo isso.

Fonte: ConJur

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Ministro Celso de Mello explica liminar de Lewandowski

Bom senso e equilíbrio

Ao responder que a Constituição Federal não confere ao Conselho Nacional de Justiça poderes para quebrar sigilo bancário ou fiscal, o ministro Ricardo Lewandowski apenas reproduziu a sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria. Quem garante é o decano do STF, ministro Celso de Mello — ele mesmo relator de casos pioneiros em que esse entendimento foi assentado. Um exemplo recente é o Agravo Regimental em Mandado de Segurança 27.148.


Para mostrar a idade desse entendimento, o ministro cita o Mandado de Segurança 23.851/DF, relatado por ele em 26 setembro de 2001, aprovado por unanimidade quando se determinou que "a quebra de sigilo não pode ser utilizada como instrumento de devassa indiscriminada, sob pena de ofensa à garantia constitucional da intimidade. A quebra de sigilo, para legitimar-se em face do sistema jurídico-constitucional brasileiro, necessita apoiar-se em decisão revestida de fundamentação adequada, que encontra apoio concreto em suporte fático idôneo, sob pena de invalidade do ato estatal que a decreta. A ruptura da esfera de intimidade de qualquer pessoa — quando ausente hipótese configuradora de causa provável — revela-se incompatível com o modelo consagrado na Constituição da República, pois a quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes".


Compenetrado, rigoroso, o ministro é a antítese do corporativismo. Defensor fervoroso da fiscalização e responsabilização de juízes que praticam desvios ou atos de improbidade, Celso de Mello, ao tomar posse na presidência do STF, em 1997, chocou a comunidade ao defender a ideia radical de que todos os juízes brasileiros deveriam se sujeitar a processo de impeachment, como ocorre com os ministros do STF. Mas ser a favor do CNJ não significa que se deve admitir ao Conselho o que a Constituição não autoriza, frisa ele.


"Há um grande consenso nesse sentido", afirma: "A jurisprudência do STF nega a qualquer autoridade pública, quando no exercício de função administrativa, a possibilidade de decretar quebra de sigilo bancário e ou fiscal". Por ser órgão administrativo, o CNJ jamais teve o poder reservado a magistrados em funções jurisdicionais. E até mesmo para o juiz há regras. Sem motivo claro e fundamentação a ordem é nula. A norma, lembra Celso de Mello, já foi intensamente aplicada para conter Comissões Parlamentares de Inquéritos e em casos de abusos do Poder Público, em que se tentou iniciar investigações pela quebra de sigilo.


Celso de Mello ressalva que a proteção do sigilo bancário não significa restrição ao poder de investigar nem limita o poder de investigação do estado, já que o estado dispõe de meios para requerer a juízes e tribunais que ordenem às instituições financeiras a informação dos fatos. Essas regras constitucionais que proclamam direitos e garantias estão protegidas por cláusulas pétreas.


Para o ministro, a decisão de Lewandowski não só se mostra plenamente fiel à jurisprudência do STF, como traduz o exercício concreto da correta aplicação do texto constitucional. O que o STF faz, explica, é restaurar a ordem jurídica muitas vezes transgredida por excesso de poder quando é exercido ultra vires (além dos limites da competência). Para reforçar a tese, o ministro lembra duas outras decisões do plenário, que favoreceram o TJ-MA em que o CNJ atuou fora de sua esfera de poder. Negar essa realidade, diz, é contestar que "estamos todos subordinados à autoridade hierárquica da Constituição Federal". Como exemplo de citação técnica adequada, Celso de Mello destaca o artigo recentemente publicado neste site pelo professor Pierpaolo Bottini. "Abordagem corretíssima", enfatizou.


Por fim, o decano do STF, lembrou os votos dos ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski no sentido de reforçar os poderes do CNJ, como órgão de controle administrativo do Judiciário — em contraste com as críticas de que ambos sejam contrários à fiscalização do Conselho. Cezar Peluso foi o relator da ADI 3.367, no julgamento que rejeitou o pedido de declaração de inconstitucionalidade da Emenda que instituiu e disciplinou o CNJ; enquanto Lewandowski não apenas ratificou a Resolução do Conselho que baniu o nepotismo do Judiciário, como a estendeu aos demais poderes da República.


Por Márcio Chaer


Fonte: ConJur


sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Alice no País das Maravilhas e o roubo das tortas

Embargos Culturais
Quem se importa com vocês? (...) vocês não passam de um baralho de cartas![1], é o que diz Alice aos juízes e jurados, ao fim de seu depoimento, no julgamento do roubo das tortas, episódio do enigmático livro de Charles Lutwige Dodgson, que conhecemos pelo pseudônimo de Lewis Carroll.

A observação de Alice pode ser tomada como uma crítica ao sistema judiciário inglês do século XIX, a exemplo de tantas outras críticas que há, em textos literários, a propósito dos vários modelos judiciários que há no mundo; Franz Kafka é o campeão da causa. É esta a abordagem que proponho, no sentido de se apreender o direito na literatura, ainda que como argumento para se escrever. Para os juristas, a crítica literária é sempre uma fuga ou uma forma de conquista, se tomada como exercício de escrita, o que não deixa de ser[2].

A estória de Alice é um topoi, que o auditório culto conhece. Trata-se de um pequeno grande livro aberto a todos os tipos de interpretações, de jogos, de truques, de fraudes, de insinuações, e de duvidosas lições, como esta que o leitor tem pela frente. Alice propicia múltiplas intervenções entre autor e leitor, de modo sempre aberto e indefinido[3], ameaçadas pela falsificação das más interpretações, sacrificadas por problemas de tradução[4], vitimadas (ou salvas) pela inexistência da língua perfeita[5]. Alice é, na essência, texto consagrador do lexema literatura, enquanto saber relativo à arte de escrever e ler, gramática, instrução, erudição[6]. Como se indicará, Lewis Carroll até propõe lições de latim, a propósito das declinações de camundongo...

Uma exploração da percepção de justiça em Alice, invertendo-se o caminho do Direito enquanto retórica e narrativa[7], temperada pela concessão à crença nas habilidades das narrativas revelarem tensões entre vários discursos alternativos[8], parece ser o eixo conceitual que justifica o presente excerto.

Além do que, Alice é uma criança; e sempre que o Direito se relaciona com crianças, uma tensão emerge entre o propósito, básico no liberalismo, de proteger a autonomia individual e o objetivo de se proteger as crianças, restringindo-se suas atividades[9]. Alice é um livro que explora ao limite esquemas de comunicação, com variáveis de referentes que embaraçam o receptor[10]; é uma crítica à suposta (e eventualmente inexistente) crise da razão[11].

A estória da pequena heroína é rica em imagens, metáforas, símbolos e mitos. Tem-se conjunto de alegorias que nos remetem à imaginação visual de Dante[12]. Especificamente, para os presentes propósitos, a justiça com a qual Alice se encontra é mero baralho de cartas. Subjacente à apresentação do assunto, indaga-se sobre a atemporalidade da assertiva.

Alice inicia sua aventura pouco ortodoxa aborrecendo-se com um livro que a irmã lia, e que de nada serviria porquanto não tinha nem desenhos ou diálogos[13]. A mesma irmã, que no fecho da narrativa, lembrará que a irmãzinha


(...) seria no futuro uma mulher adulta, que ela conservaria nos mais maduros o coração simples e amoroso de sua infância, que ela reuniria ao redor de si outras crianças, fazendo os olhinhos brilharem desejosos de mais uma história estranha, talvez até com o sonho do País das Maravilhas do passado, e que ela se compadeceria em todas as suas alegrias simples, lembrando-se da sua própria infância e dos dias felizes de verão[14].

A ação ganha mais vida com a chegada do coelho branco de olhos cor-de-rosa. Alice se indaga sobre os custos e benefícios do agir humano. Pergunta a si mesma se o prazer de fazer uma corrente de margaridas valeria o esforço de se levantar e colher as margaridas[15].

Um jogo interminável de palavras surpreende ao leitor, com importâncias de significado que transcendem à dimensão de equivalência das próprias palavras. É o caso, por exemplo, do prazer que Alice encontrou ao falar longitude e latitude, sobre o que não fazia ideia nenhuma, mas que simplesmente achava que eram palavras muito importantes para dizer[16].

Alice associava símbolos com fatos, ainda que apenas previsíveis. Afinal, (...) ela nunca esqueceu que se alguém bebe muito de uma garrafa marcada com a palavra VENENO, é quase certo que vai passar mal mais cedo ou mais tarde[17], ainda que o veneno fosse de um sabor misto de torta de cereja, creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga[18].

Porque diminuía de tamanho, encolhia, e temerosa de que pudesse sumir completamente como uma vela[19], Alice aconselhava-se muito consigo mesma, embora raramente seguisse aos próprios conselhos[20]. A imaginação é superlativa quando Alice, de tanto chorar, derramando galões de lágrimas, vê surgir ao seu redor uma imensa poça d´água[21]. Sentindo-se confusa, errando na tabuada e na geografia (Paris tornou-se capital de Roma, e Londres capital de Paris[22]), Alice denuncia a fragilidade de nossas lembranças.

A memória de Alice é a reminiscência dos saberes alheios. Alice usa o vocativo para chamar o camundongo (ó camundongo!) porque se lembra das lições de latim, que o irmão estudava, e de onde sua memória prodigiosa retomava todas as declinações (o camundongo, do camundongo, ao camundongo)[23]. Alice também assustou ao camundongo, presumindo-o francês, e chamando uma gata — que seria inimiga visceral do camundongo — em língua francesa, na lembrança da primeira lição de seu livro de francês: où est ma chatte? — onde está minha gata?[24].

O mundo imaginário de Alice é um espaço no qual reina certa falta de sentido. A corrida-caucus é disto um exemplo. Corria-se num círculo, ainda que a forma exata da pista não tivesse importância. Podia até não ser um círculo. Embora fosse um círculo.

Não se falava um, dois, três e já; a corrida começava quando cada um dos corredores bem o desejasse e terminava quando qualquer um dos corredores também o quisesse. Por isso, não era fácil saber se a corrida havia se encerrado. E também não havia como se saber (com segurança) quem fora o vencedor da corrida. Assim, todos ganhavam; e todos recebiam prêmios[25].

Tudo é muito insólito. Para Alice a mostarda era um mineral; e haveria uma mina de mostarda bem perto de onde ela estava[26]. A justiça era fabulizada; ó que se infere da disputa entre o vira-lata e o rato, indicada em versos: vamos os dois perante a lei: pois hei de processar você (...) tal julgamento, sinhozinho, sem júri, sem juiz, sem nada, será jogar fora conversa, vou ser o júri e o juiz (...) hei de julgar a causa inteira, você não escapará desta[27].

No mundo idílico de Alice havia muitos personagens: Diná (uma gata), Ada, Mabel, o Grifo, a Tartaruga Falsa (da qual se faz uma sopa de tartaruga falsa), o Arganaz, a Lebre de Março, o Chapeleiro (para quem não se poderia falar em desperdício de tempo, o tempo é senhor). Havia também a Duquesa, para quem tudo tem uma moral; e tudo é apenas uma questão de se encontrar esta moral[28]. E também havia a Rainha (que a todos queria decapitar, por qualquer motivo, e a qualquer hora).

A reação de Alice para com este modelo de sanções lembra-nos Voltaire quando este teria conhecido a legislação criminal de Portugal (Livro V das Ordenações Filipinas). Da mesma maneira que Alice não entendia como restava alguém vivo naquele reino, no qual se cortavam cabeças a todo tempo, e por nada, o filósofo francês se admirava como havia alguém ainda vivo em Portugal, terra de legislação tão draconiana.

E o que é indefinido perde o sentido enigmático no universo de Alice. Exemplifico com o conceito de tempo. Alice explica que os relógios não marcam os anos (...) porque o ano permanece o mesmo por um tempo muito longo[29]. E do mesmo modo que os reis portugueses resolviam tudo na forca, a rainha do mundo de Alice só tinha um modo de resolver todas as dificuldades pequenas e grandes: cortem a cabeça dele![30]. Naquele modelo de punições, tão pouco flexível, o argumento do rei era que tudo que tinha cabeça podia ser decapitado[31]. Para a Rainha, o argumento (...) era que se algo não fosse feito imediatamente, mandaria decapitar todo mundo ao redor[32].

Irreverente, refratária às instituições, Alice discutia com a Tartaruga Falsa. Esta última, orgulhosa, porque tivera a melhor das educações, com aulas todos os dias. Porém, Alice afirmava que tal notícia não era motivo para orgulho, porque também já frequentara uma escola diária[33]. O currículo da escola mencionada pela Tartaruga Falsa era indicativo de preciosismos.

A Tartaruga Falsa estudara Mistério (antigo e moderno, que era também estudado com oceanografia). O currículo da escola da Tartaruga Falsa também contava com Desenrolo, Bracejamento e Tontura em Coleios[34]. O horário da escola da Tartaruga Falsa era também pouco ortodoxo: dez horas no primeiro dia, com uma hora a menos em todos os que passassem; Alice concluiu assim que no décimo dia haveria feriado...[35]

Foi o Grifo quem anunciou a Alice que o julgamento iria começar. Mas, que julgamento?, perguntava Alice[36]. Rei e Rainha de Copas estavam sentados no trono. Alice via também uma multidão reunida ao redor dos soberanos: pássaros e animais, todos pequenos, e tudo num contexto de baralho de cartas[37].

O réu era o Valete, que Alice via acorrentado. Soldados circunspectos montavam guarda. O pregão era anunciado pelo Coelho Branco, que fazia o papel do escrivão. Mais parecia um bedel. E o Coelho Branco, com uma trombeta numa das mãos e um rolo de pergaminho na outra[38], anunciava a sequencia de atos, de intensa formalidade. Tortas e doces havia no meio da sala; Alice queria rapidez no julgamento. Pensava em avançar nos doces. E prossegue a narrativa:

Alice nunca havia estado numa corte de justiça antes, mas já tinha lido a respeito em livros, e ficou bem satisfeita ao descobrir que sabia o nome de quase tudo ’Aquele é o juiz’, disse para si mesma, ‘por causa da grande peruca’. O juiz, por sinal, era o Rei e, como ele trazia a coroa sobre a peruca (...) não parecia nem um pouco confortável, e o arranjo certamente não lhe ficava bem. ‘E ali é a banca do júri’, pensou Alice, ‘e aquelas doze criaturas’ (ela foi obrigada a dizer ‘criaturas’, sabem, porque alguns eram animais, outros eram pássaros) ‘acho que são os jurados’. Ela repetiu essa palavra duas ou três vezes para si mesma, bem orgulhosa, pois achava, e com razão, que muitas poucas meninas da sua idade sabiam o significado da palavra. Entretanto ‘membros do júri’ teria dado no mesmo[39].

O Rei ordenou que o libelo fosse lido. O Coelho Branco a todos informou que o Valete de Copas teria roubado as tortas que a Rainha de Copas assara num dia de verão[40]. Ouviu-se o Chapeleiro, a primeira testemunha. O Rei ordenou que o Chapeleiro tirasse o chapéu. O Chapeleiro respondeu que usava chapéus porque os tinha para vender. Era seu negócio. Era como ganhava a vida. O Rei anunciou que o chapéu era roubado. Ameaçou o Chapeleiro, dizendo que se não depusesse seria executado imediatamente.

E porque o Chapeleiro não se lembrava exatamente dos fatos, o Rei fez uma nova ameaça. O Chapeleiro deveria de se lembrar de tudo; se não o conseguisse, seria imediatamente executado![41] Nervoso e humilhado, o Chapeleiro disse ao Rei que era um homem pobre. Ao que o Rei observou que o Chapeleiro era na verdade um orador muito pobre...[42]

Um porquinho-da-índia foi reprimido porque aplaudiu o Rei (ou o Chapeleiro); impressionada com a palavra reprimido (bastante dura) Alice suscitou uma explicação. Reprimir consistia em se jogar o porquinho-da-índia num grande saco de lona, amarrado na boca com cordões[43]. Alice lembrou que lia nos jornais, com frequência, a referência a reprimir, e que agora entendia muito bem do que se tratava.

A cozinheira da Duquesa também testemunhou; trazia consigo uma caixa de pimenta. Ao entrar na sala de justiça todos os presentes começaram a espirrar; e espirraram muito[44].

Para sua surpresa, Alice também foi chamada a testemunhar[45]. Um pouco confusa, especialmente porque voltava a seu tamanho normal, Alice, ao se levantar, derrubou todos os jurados com a barra de sua saia; todos eles caíram sobre as cabeças da multidão, ficaram estatelados, lembrando a Alice um globo de peixinhos dourados que tinha derrubado por acaso na semana anterior[46].

O Rei determinou que os jurados voltassem para seus lugares. Era chegada a hora do depoimento de Alice. Quando todos retomaram seus postos o Rei perguntou a Alice o que ela sabia sobre o roubo das tortas. Nada, disse ela. E como Alice insistia que não sabia absolutamente de nada, o Rei hesitou em determinar que o escrivão anotasse que a informação seria muito importante ou desimportante[47].

Perturbado, o Rei disse que a Regra nº 42 dispunha que todas as pessoas com mais de 1 km de altura deveriam deixar a Corte[48]. Alice insistiu que não tinha tal altura. O Rei obtemperou que Alice era muito alta. A Rainha então observou que Alice teria quase 2 km de altura.

Alice desafiou o Rei. Disse que a Regra não era válida, porque não era um precedente. O Rei a teria inventado naquele exato momento. O Rei insistia com Alice que se tratava da regra mais antiga do reino. Em relação ao que, inteligentemente, Alice disse que então não poderia ser a Regra nº 42; deveria ser a Regra nº 1...

Discutiu-se, em seguida, sobre uma carta, de suposta autoria do Valete, e que deveria ter sido endereçada a alguém. Um animado debate dividiu opiniões. Poderia uma carta ser endereçada a ninguém?

O Valete teria escrito a carta. Porém, porque não estava assinada, o Rei intuiu que a falta de assinatura só poderia piorar a situação do acusado. É que o réu devia ter alguma maldade em vista, senão teria assinado (...) como todo homem honesto[49]. Rei e Rainha então concluíram que a ausência de assinatura na carta comprovava a culpa do Valete.

Alice o defendeu. Argumentou que nada provava a culpa do réu. A carta foi então lida em plenário. O Coelho Branco perguntou ao Rei como deveria ler o importante documento. O Rei então determinou que a carta deveria ser lida a partir do começo, e que o escrivão deveria continuar a leitura, até o fim, e então deveria parar. Óbvio, pensará o leitor.

A revelação do conteúdo da carta indicava um texto que não fazia nenhum sentido — nenhum átomo de sentido — segundo Alice. E justamente porque não havia sentido nenhum na carta é que o Rei, mais uma vez, concluiu pela culpa do Valete. Todas as provas, boas ou más, razoáveis ou não, verídicas ou não, eram contra o réu. A condenação era uma decisão que antecedia ao próprio julgamento.

Antes que se anunciasse a decisão final Alice discutiu com o Rei e com a Rainha. Esta ordenou que Alice se calasse. Com a recusa de Alice em ficar quieta, a Rainha ordenou que lhe cortassem a cabeça. Alice reagiu: quem se importa com vocês? (...) vocês não passam de um baralho de cartas![50]. E, prossegue a narrativa:

Quando acabou de dizer essas palavras, todo o baralho se ergueu no ar, e as cartas caíram voando sobre ela. Alice deu um gritinho, meio de medo e meio de raiva, e tentou afastá-las debatendo-se, mas se descobriu deitada na margem do lago, com a cabeça no colo da irmã, que gentilmente afastava umas folhas mortas que tinham caído das árvores e vindo esvoaçar sobre o seu rosto. ‘Acorde, Alice querida!, disse a irmã, ‘Ora, mas como você dormiu!”[51].

O tribunal era um jogo de cartas de baralho. Frágil; era composto por pedaços de papel. Aleatório; porque nada mais do que um jogo. Desencontrado; era formado por peças com funções múltiplas. Dependente; porque nas mãos dos jogadores. Frívolo; equivalia a um passatempo. Subjugado; era centrado numa hierarquia imaginária. Esta, talvez, a justiça que Alice conheceu: frágil, aleatória, desencontrada, dependente, frívola e subjugada.

E se a literatura tem sentido universal e atemporal, pode-se inferir que a justiça inglesa do século XIX, tal como denunciada por Lewis Carroll, possa, numa dimensão exagerada, provocar nossa apreensão para com todas as togas.

Por isso, à luz de uma avaliação pedagógica, um alerta para que lutemos, sempre, contra o despotismo de reis e rainhas que resolvem pendências, maiores ou menores, com ordens de decapitação.

Num outro sentido, tomando-se por válida a natureza do tribunal descrito por Carroll, tem-se que o uso da Regra nº 42 indica-nos casuísmo que revela que primeiro se decide, e depois de deduz ou, ainda, que ao fim se fundamente o que na origem já decidido. O realismo jurídico, em toda sua extensão, no sentido de que o direito seja simplesmente o que definido pelos tribunais, parece ser, com um pequeno esforço de juízo analógico, o modelo de jurisprudência do País das Maravilhas.

[1] Carroll, Lewis, Alice no País das Maravilhas, Porto Alegre: LP&M, 2010. Há várias traduções disponíveis de Alice no mercado editorial brasileiro. A edição pocket da LP&M, de fácil acesso, é utilizada no presente ensaio.

[2] Cf. Sartre, Jean Paul, Que é Literatura?, São Paulo: Ática, 2006, p. 33. Tradução de Carlos Felipe Moisés.

[3] Cf. Eco, Umberto, Interpretação e Superinterpreção, São Paulo: Martins Fontes, 2001, sem indicação de tradução.

[4] Cf. Eco, Umberto, Quase a Mesma Coisa- Experiências de Tradução, Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2007, pp. 104 e ss. Tradução de Eliana Aguiar. Conferir, especialmente, a dúvida de Eco em relação, por exemplo, ao uso de camundongo ou de rato, que ele enfrenta a partir de uma passagem de Shakespeare em Hamlet, problema que também aparece em Alice.

[5] Cf. Eco, Umberto, A Busca da Língua Perfeita, Bauru: EDUSC, 2002. Tradução de Antonio Angonese.

[6] Cf. Aguiar e Silva, Vítor Manuel, Teoria da Literatura, Coimbra: Almedina, 2000, p.2.

[7] Cf. Brooks, Peter, The Law as Narrative and Rhetoric, in Brooks, Peter e Gerwitz, Paul, Law´s Stories- Narrative and Rhetoric in the Law, New Haven: Yale University Press, 1996, pp. 14 e ss.

[8] Cf. Ward, Ian, Law and Literature- Possibilities and Perspectives, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 7.

[9] Fish, Stanley, The Trouble with Principle, Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 153. Tradução livre minha.

[10] Para uma definição nítida de conceitos utilizados na teoria da comunicação, consultar Vanoye, Francis, Usos da Linguagem- Problemas e Técnicas na produção oral e escrita, São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução de Clarisse Madureira Sabóia e outros.

[11] Cf. Eco, Umberto, Viagem na Irrealidade Cotidiana, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pp. 148 e ss. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.

[12] Cf.Wellek, René e Warren, Austin, Theory of Literature, San Diego: Harvest Book, 1970, p.187.

[13] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 13.

[14] Carroll, Lewis, cit., p. 171.

[15] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 14.

[16] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 16.

[17] Carroll, Lewis, cit., p. 21.

[18] Carroll, Lewis, cit., loc.cit.

[19] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 22.

[20] Cf. Carroll, Lewis, cit., loc.cit.

[21] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 27.

[22] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 29.

[23] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 33.

[24] Cf. Carroll, Lewis, cit., loc.cit.

[25] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 41.

[26] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 122.

[27] Carroll, Lewis, cit., p. 44.

[28] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 120.

[29] Carroll, Lewis, cit., p. 94.

[30] Carroll, Lewis, cit., p. 116.

[31] Carroll, Lewis, cit., p. 117.

[32] Carroll, Lewis, cit., p. 118.

[33] Carroll, Lewis, cit., p. 129.

[34] Carroll, Lewis, cit., p. 131.

[35] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 132.

[36] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 145.

[37] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 146.

[38] Carroll, Lewis, cit., p. 146.

[39] Carroll, Lewis, cit., p. 147.

[40] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 149.

[41] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 153.

[42] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 154.

[43] Cf. Carroll, Lewis, cit., loc.cit.

[44] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 155.

[45] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 157.

[46] Carroll, Lewis, cit., p. 158.

[47] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 160.

[48] Cf. Carroll, Lewis, cit., p. 161.

[49] Carroll, Lewis, cit., p. 163.

[50] Carroll, Lewis, cit., p. 167.

[51] Carroll, Lewis, cit., pp. 167-168.

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Fonte: ConJur

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Mais juízes, mais prisões e mais violência

Realidade
Uma das grandes falácias, em relação à realidade brasileira, consiste em afirmar que mais juízes, mais prisões, mais policiais... significariam mais segurança para a população e menos crimes. Na verdade, como afirma Jeffery, mais segurança, mais gastos etc. não significam necessariamente menos crimes. Apesar dos maciços investimentos em prisões e punições como formas de diminuir a violência, os números apontam que os homicídios continuam crescendo.



De acordo com os levantamentos realizados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2011, (publicado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública), em 2009 o Brasil investiu R$ 45,5 bilhões em segurança pública, sendo mais de R$ 10 bilhões só em São Paulo. Em 2010, houve um aumento de 4,4% nesse investimento, alcançando-se a marca dos R$ 47,5 bilhões.

O número total de presos (provisórios e definitivos) nos sistemas penitenciários que era de 90 mil presos em 1990, aumentou para 500 mil em 2010. Um crescimento de 450% e uma taxa de 258 presos por 100 mil habitantes (veja-se que a população brasileira neste mesmo período teve um crescimento de somente 26,7%).


Se consideramos apenas os presos definitivos, a situação é ainda mais alarmante. De acordo com o Anuário 2011, em 1938 o Brasil contava com uma taxa de 19,1 presos condenados para cada grupo de 100 mil habitantes. Já em 2009, essa taxa havia saltado para 242,5 presos por 100 mil habitantes, significando um crescimento de 1.169% em 71 anos.

Entre 1994 e 2009 o número de presídios construídos no país cresceu 253%, chegando a 1.806 estabelecimentos prisionais em 2009 (enquanto o número de escolas caiu 19,3%, conforme cálculo realizado pelo Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes, de acordo com dados do Ipea).

Ainda entre 2009 e 2010 houve um aumento no número de juízes de 3,2%, totalizando 16.804 magistrados em 2010, bem como de servidores da justiça, chegando a 321.963 também em 2010, conforme dados divulgados pelo CNJ. Com uma despesa total de R$ 41 bilhões em 2010, houve um aumento de despesa com a Justiça entre 2009 e 2010 de 3,7%.

Investimentos no Judiciário, na segurança pública e no sistema penitenciário não faltaram no Brasil (nos últimos anos) e mesmo assim a violência não parou de crescer. É que estamos gastando muito dinheiro com os efeitos e não estamos prestando atenção nas causas. Estamos enxugando gelo com toalha quente.

Ninguém matou mais em 2009 que o Brasil em números absolutos, alcançando 51.434 homicídios dolosos (de acordo com os dados do Datasus — Ministério da Saúde). Com esse montante (26,6 pessoas a cada 100 mil habitantes), o Brasil conquistou a posição de 3º país mais homicida da América Latina e o 6º do mundo. Em 1979 tínhamos 9,6 mortes para cada 100 mil habitantes. Em 2009 pulamos para 26,6.


Os números acima são, por si sós, conclusivos: o simples “investir” em segurança pública, policiamento, sistema processual e prisional não basta. É necessário o desenvolvimento de uma política criminal que tenha por escopo fins não apenas repressivos, mas especialmente preventivos, envolvendo medidas socioeducativas, conscientização da população e principalmente dos operadores do direito. O Brasil é um país socialmente, moralmente e eticamente doente. Enquanto não cuidarmos das suas mazelas seculares (das suas doenças), não há remédio que lhe dê jeito. A política de segurança pública brasileira continua, em razão da sua extensa banda podre, servil à prata (corrupção) e ao chumbo (violência).

Por Mariana Cury Bunduky

Fonte: ConJur

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O formalismo processual nas petições por fax

Celeridade
A Lei 9.800, de 26de maio de 1999, chamada popularmente de Lei do Fax, trouxe a possibilidade das partes utilizarem sistemas de transmissão de dados para a prática de atos processuais. O fac-símile, ou outro tipo similar, passou a ser ferramenta de extrema utilidade e necessidade aos jurisdicionados para a prática de atos que dependam de petição escrita, devendo ser observado o cumprimento do prazo e a juntada dos originais até cinco dias da data do seu término.

Quanto ao termo inicial do prazo de cinco dias para juntada dos originais, o artigo 2º da Lei 9.800/1999 não é de clareza solar, o que trouxe vários questionamentos e dúvidas na doutrina e jurisprudência. Uma corrente passou a entender que o prazo legal iniciaria da protocolização da petição, enquanto outra defendeu que o termo “a quo” incidiria a partir do último dia de prazo legal, independentemente da parte ter utilizado ou não todo o prazo. O Superior Tribunal de Justiça filiou-se à segunda corrente e deixou assentado que “quando há interposição por fax, ainda que no curso do prazo processual, o termo inicial para a apresentação dos originais é o dia seguinte ao termo final do prazo legal.” (EDcl no AgRg no Ag 813.316/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 21/08/2009).

O maior acesso à Justiça, conferido pela Lei 9.800/1999, poderia ter complicações ou restrições diante de hipóteses legais como a petição do agravo de instrumento. Isso porque o artigo 525 do Código de Processo Civil obriga a parte à formação do instrumento com peças obrigatórias, essenciais e facultativas ao dispor em seu artigo 525 que “a petição de agravo de instrumento será instruída: obrigatoriamente, com cópias da decisão agravada, da certidão da respetiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado; facultativamente, com outras pecas que o agravante entender úteis”. A inobservância dessa regra leva necessariamente ao não conhecimento do recurso.

Ora, como conciliar a utilização do fax para protocolizar a petição de agravo de instrumento e, ao mesmo tempo, observar a norma cogente estampada no artigo 525 da lei adjetiva civil? A faculdade concedida ao recorrente pela Lei 9.800/99 de utilizar sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar o exime de enviar, pelo mesmo meio, as peças que devem instruir o recurso, ou a lei o permite juntar posteriormente dentro do quinquênio legal?

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 901.556/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, pacificou o posicionamento no sentido de que, em se tratando de agravo de instrumento, não é necessário que a petição recursal transmitida via fax venha acompanhada das peças destinadas à instrução do recurso, sendo possível a juntada de tais peças quando do protocolo da petição original. A ementa do acordão elucida a matéria destacando seis pontos a embasar o posicionamento adotado:

— A Lei 9.800⁄99 não disciplina nem o dever nem a faculdade do advogado, ao usar o protocolo via fac-simile, transmitir, além da petição de razões do recurso, cópia dos documentos que o instruem. Por isso a aplicação da nova lei exige interpretação que deve ser orientada pelas diretrizes que levaram o legislador a editá-la, agregando-lhe os princípios gerais do direito.

— Observados os motivos e a finalidade da referida lei, que devem ser preservados acima de tudo, apontam-se as seguintes razões que justificam a desnecessidade da petição do recurso vir acompanhada de todos os documentos, que chegarão ao Tribunal na forma original: primeiro, não há prejuízo para a defesa do recorrido, porque só será intimado para contra-arrazoar após a juntada dos originais aos autos; segundo, o recurso remetido por fac-simile deverá indicar o rol dos documentos que o acompanham e é vedado ao recorrente fazer qualquer alteração ao juntar os originais; terceiro, evita-se um congestionamento no trabalho da secretaria dos gabinetes nos fóruns e tribunais, que terão de disponibilizar um funcionário para montar os autos do recurso, especialmente quando o recurso vier acompanhado de muitos documentos; quarto, evita-se discussão de disparidade de documentos enviados, com documentos recebidos; quinto, evita-se o congestionamento nos próprios aparelhos de fax disponíveis para recepção do protocolo; sexto e principal argumento: é vedado ao intérprete da lei editada para facilitar o acesso ao Judiciário, fixar restrições, criar obstáculos, eleger modos que dificultem sua aplicação.

Portanto, o STJ, como órgão uniformizador da interpretação da legislação federal, acabou por definir o alcance do artigo 2º da Lei 9.800/99, observando que o legislador não trouxe qualquer obrigatoriedade sobre a juntada de pecas, mas tão somente disciplinou a prática de atos processuais que dependem de petição escrita.

A meu ver, concluir de forma diversa e entender pela obrigatoriedade da parte transmitir por fax, também, as peças que formam o instrumento, é desvirtuar a finalidade da norma que veio facilitar o acesso à Justiça e garantir um processo justo, célere e prático.

Por Marcos Braid
Fonte: ConJur